António Rodrigues Sampaio 2

António Rodrigues Sampaio e o "papel civilizador da imprensa": o pensamento de um jornalista de oitocentos sobre o jornalismo do seu tempo[1]

Jorge Pedro Sousa, Sandra Tuna, Maria Érica Lima, Patrícia Teixeira

Universidade Fernando Pessoa, Centro de Investigação Media e Jornalismo e Universidade Federal do Rio Grande do Norte

RESUMO

António Rodrigues Sampaio foi um dos principais expoentes do jornalismo doutrinário e da política portuguesa no século XIX, podendo ser considerado o jornalista político de maior sucesso nessa época, pois chegou a chefe do Governo. Este trabalho, sustentado numa análise qualitativa e culturológica do seu discurso jornalístico, procura determinar qual o seu pensamento sobre o jornalismo. Concluiu-se que a sua frase “antes quero uma imprensa anárquica do que uma imprensa perseguida” se cola à parte da sua vida em que, como publicista e panfletário, combateu pela mais ampla liberdade de imprensa. Contraditoriamente, chegado ao Parlamento e, depois, ao Governo, tornou-se num paradigma do pragmatismo e intentou vários processos judiciais contra jornalistas, paradoxalmente por abuso de liberdade de imprensa, em nome de um “papel civilizador” que atribuía aos jornais.

PALAVRAS-CHAVE: António Rodrigues Sampaio; Portugal; século XIX; jornalistas; jornalismo político.

INTRODUÇÃO

Quando António Rodrigues Sampaio, nasceu, em 1806, em São Bartolomeu do Mar, Esposende, uma pequena vila litorânea do Norte de Portugal, poucos eram os jornais existentes no país. Os periódicos que circulavam tinham um cunho circunspecto ou mesmo oficioso, caso da Gazeta de Lisboa. Só com a Revolução Liberal de 1820 Portugal viu surgir no seu território o jornalismo doutrinário, acutilante e frequentemente descomedido, dominante durante todo o período em que Rodrigues Sampaio viveu.

Nesses tempos, fazer política e fazer jornalismo fundiam-se com frequência. António Rodrigues Sampaio foi mestre nessa arte de fazer do jornal uma tribuna para o orador político. Liberal de esquerda, maçom, revolucionário e quiçá republicano nos seus tempos de juventude, extremamente corajoso, defrontou a censura, enfrentou o absolutismo miguelista (1828-1834) e o cabralismo (1842-1846), foi preso por duas vezes, travou duelos e viveu na clandestinidade durante a guerra civil da Patuleia (1846-1847) para defender as suas convicções e o seu direito à palavra, o seu direito à comunicação dos seus pensamentos através da imprensa.

Rodrigues Sampaio iniciou-se no jornalismo em 1835, como tradutor-redactor de notícias do estrangeiro no jornal Vedeta da Liberdade, do Porto. No entanto, ficou conhecido pela alcunha O Sampaio da Revolução, pois o seu nome ficou indelevelmente ligado ao Revolução de Setembro, o jornal, fundado em 1840, cujo título invoca a revolta esquerdista de Setembro de 1836.

Sampaio ingressou no Revolução de Setembro quase logo após a sua fundação, em 1840, mas passados quatro anos, por causa do exílio dos fundadores do periódico na sequência de uma intentona revolucionária falhada, tornou-se redactor principal do mesmo. Foi à frente desse jornal que travou a maioria das suas batalhas contra a corrupção e, sobretudo, contra as tentativas ditatoriais e de limitação da liberdade de imprensa dos governos de Costa Cabral (1842-1846 e 1849-1851). A sua acção corajosa granjeou-lhe fama, como confirma, de resto, o título que o seu primeiro biógrafo, Teixeira de Vasconcelos deu, logo em 1859, à sua biografia de Sampaio – O Sampaio da Revolução de Setembro, reforçada pelo que diz no corpo do mesmo livro:

Um dos jornalistas portugueses que mais exclusivamente tem vivido para a imprensa periódica desde 1834, que por ela adquiriu um nome insigne em Portugal e fora do Reino, e que mais atribulado foi nas perseguições feitas à imprensa, é inquestionavelmente António Rodrigues Sampaio, geralmente conhecido pelo nome Sampaio da Revolução de Setembro (TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859, p. 30-31)

Durante a guerra civil da Patuleia (1846-1847), provocada pela nomeação, pela Soberana, D. Maria II, de um Governo cabralista sem Costa Cabral, em 1846, Sampaio não hesitou em permanecer clandestinamente em Lisboa, arrostando enormes perigos, para, com um tipógrafo amigo, setembrista como ele, redigir e imprimir clandestinamente, a partir da própria capital do Reino, controlada pelo inimigo cabralista, dois jornais clandestinos sucessivos – O Eco de Santarém (1846) e O Espectro (1846-1847) – que se tornaram em porta-vozes oficiosos e “fantasmagóricos” dos revoltosos.

Financiado por indivíduos identificados com a causa Patuleia[6], O Espectro tornou-se lendário, graças ao mistério que acompanhava a sua publicação e circulação pela totalidade do território nacional. Por isso, ufano, Sampaio escrevia no número de 13 de Abril de 1847: “o Espectro (...) podia correr sem licença do Santo Ofício, e até apesar dele. (...) O Espectro vai às Necessidades, vai às secretarias de Estado, às estações da polícia, vai aos países estrangeiros, vai a toda a parte”. E no número de 23 de Abril de 1847, acrescentava: “O Espectro vê tudo, e ninguém o vê a ele. Está em toda a parte, como Deus, porque é a emanação dele. Põe a mão sobre o coração do país e conta todas as suas palpitações”.

Inicialmente desbragado, Rodrigues Sampaio terá mesmo insultado a Chefe de Estado, a Rainha D. Maria II, a quem, segundo Gomes Leal (1881, p. 29), terá chamado “grande prostituta”. Mas, entrado no período da Regeneração (após 1851), caracterizado pela desideologização da sociedade portuguesa e da governação em favor de políticas pragmáticas que favoreciam o progresso material do país (tarefa em que se distinguiu, como primeiro-ministro, o líder do partido a que pertencia Sampaio – Fontes Pereira de Melo), o jornalista acabou por moderar-se, quer no posicionamento político, quer na acutilância verbal, a ponto de os seus antigos correligionários o apelidarem de traidor, ao mesmo tempo que os seus adversários conservadores lhe relembravam, criticamente, os seus períodos revolucionários. Mas os seus apoiantes sempre o aplaudiram.

Abraçando, efectivamente, a causa da Regeneração, que por algum tempo pôs fim à instabilidade política e militar, António Rodrigues Sampaio iniciou, em 1851, uma carreira parlamentar intermitente, que, a par da jornalística, o guindou a membro do Tribunal de Contas e, já plenamente reconciliado com a Família Real, a ministro do Reino. Em 1881, alcançou, por alguns meses, a presidência do Ministério (equivalente ao cargo de primeiro-ministro), ponto culminante da sua vida cívica. Faleceu no ano seguinte.

Face ao seu percurso, e ao facto de te vivido exclusivamente do jornalismo, que António Rodrigues Sampaio terá sido o jornalista – pelo menos pelos cânones da época – que maior êxito teve em Portugal entre 1835 e 1881. A proeminência que alcançou dá legitimidade à colocação de algumas questões, desde logo: Quem foi ele? O que pensava do jornalismo que vivenciou?

Neste trabalho, metodologicamente assente em pesquisa bibliográfica, documental e hemerográfica e numa análise qualitativa e histórico-culturológica do discurso, procurar-se-á apresentar brevemente a vida de António Rodrigues Sampaio e responder, sinteticamente, às questões acima levantadas.

Para essa tarefa, ganharam particular interesse os trabalhos biográficos daqueles que com Sampaio conviveram de perto, em particular os textos de Teixeira de Vasconcelos (1858; 1859) e de Pedro Venceslau de Brito Aranha (1907). Leram-se, também, flutuantemente, o diário Revolução de Setembro (principalmente a partir de 20 de Setembro de 1851, data do primeiro artigo assinado de Sampaio, até 1882, ano da morte do jornalista), jornais em que Sampaio colaborou ocasionalmente, como A Federação, e os jornais clandestinos O Eco de Santarém e O Espectro, redigidos integralmente por est jornalista ao tempo da guerra civil da Patuleia.

Tentou-se, conjunturalmente, explicar o que o jornalismo português foi no século XIX, pois é preciso entender António Rodrigues Sampaio, como sujeito histórico de oitocentos, conforme, aliás, o fazem os seus biógrafos (TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859; FIGUEIRA, 1882; BRITO ARANHA, 1907; VELOSO, 1910; TENGARRINHA, 1963; SÁ, 1984; NEIVA SOARES, 2006). De facto, enquanto político de jornal, escritor persuasivo solitário – embora unido ideologicamente aos seus correligionários políticos, ele não foi um sujeito histórico que se possa enquadrar no actual imaginário jornalístico.

1. O JORNALISMO PORTUGUÊS NO TEMPO DE ANTÓNIO RODRIGUES SAMPAIO

Quais as características do jornalismo português ao tempo de António Rodrigues Sampaio? Tengarrinha (1989, p. 123-212) define-o como o período Romântico do jornalismo, tornado possível graças à ambição modernizadora que os emigrados liberais, fugidos do absolutismo miguelista (1828-1834), trouxeram consigo quando regressaram ao país.

Durante o Romantismo, os jornais artesanais feitos por um único homem deram, gradualmente, lugar aos jornais feitos por pequenos grupos de indivíduos unidos ideologicamente para um propósito comum – jornais de partido, portanto. Cedo começaram a ser necessários mais recursos para montar um jornal de bases sólidas, nomeadamente uma sede para a redacção e a possibilidade de utilização de uma tipografia bem apetrechada, pois também constantes eram os aperfeiçoamentos nos sistemas de composição e de impressão (TENGARRINHA, 1989, p. 155). Apareceram, nomeadamente, prensas movidas a vapor, ao mesmo tempo que a produção química de tintas melhorava e se incrementava a indústria do papel.

Explica José Manuel Tengarrinha (1989, p. 153):

Estes periódicos que aparecem depois de 1834 diferenciam-se dos anteriores (...) por (...) maior segurança nos processos jornalísticos e apetrechamento técnico mais desenvolvido [e] (...) um novo conteúdo ideológico, aparecendo como órgãos de partidos ou (...) de facções.

Eram, em consequência, jornais que já não se limitavam a ecoar o que sucedia no espaço público, antes mantinham com ele um diálogo, já que cada jornal representava uma corrente de opinião política, actuando como respectivo porta-estandarte no colóquio, ou até, na maioria das vezes, no combate, com as demais correntes de opinião, frequentemente representadas, também, pelos seus próprios jornais, espécie de extensões do Parlamento. No Romantismo, o aumento do número de publicações políticas consolidava, assim, uma esfera política representativa das diversas facções em confronto no espaço público, dando consistência aos passos que, nesse domínio, tinham sido dados durante o vintismo[7].

À medida em que se tornavam instituições sociais e espaços de poder simbólico – e real –, os jornais românticos conseguiam propagar os projectos das diferentes facções políticas na esfera pública. Todavia, estando sujeitos à colaboração de um reduzido, e por vezes volúvel, número de colaboradores, podiam manifestar uma certa plasticidade ideológica, consubstanciada nas metamorfoses que as linhas editoriais sofriam. O Revolução de Setembro, por exemplo, de um órgão do setembrismo radical, passou, durante a Regeneração, pela mão de António Rodrigues Sampaio, a um periódico defensor do fontismo, deixando de lado as grandes questões ideológicas. O jornal acompanhou, de resto, o trajecto político do seu redactor principal.

O poder da imprensa romântica residia, portanto, na capacidade de dar expressão simbólica e pública aos mecanismos de poder, contrapoder, balanceamento e arbitragem que permanentemente interagiam no espaço social, em torno de momentos de equilíbrio e de ruptura. Em alguns casos, a publicação de um jornal permitia mesmo a grupos não representados no Parlamento a possibilidade de usufruírem de uma voz pública. Era o jornalismo, enfim, que facultava aos grupos de cidadãos fazerem-se ouvir na esfera pública.

Nessa conjuntura, conforme dá conta Teixeira de Vasconcelos (1859, p. 78), a vida de um jornalista político, especialmente se provasse o sucesso na política e chegasse ao Governo, tal como aconteceu com Sampaio, não era fácil. O próprio Sampaio foi desafiado para três duelos, dos quais teve de travar um, por causa do que escrevia.

O ofício de periodiqueiro tem seus ossos (…). A entrada é de rosas. Os colegas cumprimentam o redactor esperançoso, que debuta, e auguram-lhe um grande futuro. Poucos dias depois, chamam-lhe asno, boçal e estúpido. Passam seis meses, e se ele sobe as escadas de uma secretaria, acusam-no de ladrão e de concussionário, e por dá cá aquela palha mandam-lhe a casa dois padrinhos (…) para combinarem com outros dois sujeitos chamados também padrinhos o modo mais decente de o matarem ou de serem mortos por ele. Osso que custou a vida a Armand Carrel e que por várias vezes pôs em risco a de Sampaio. (TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859, p. 78).

Como se organizavam os jornais portugueses do tipo do Revolução de Setembro, aquele no qual António Rodrigues Sampaio se distinguiu, a meio de oitocentos, em pleno Romantismo? Explica, mais uma vez, o principal estudioso da imprensa periódica portuguesa durante a Monarquia, José Manuel Tengarrinha (1989, p. 189-190):

um jornal de certa importância era, em geral, constituído por um editor (responsável perante as autoridades), por um redactor-responsável (ou chefe da redacção), por um ou dois noticiaristas encarregados da tradução das folhas estrangeiras e da informação nacional (...) e um folhetinista (...). Uma secção que toma então grande desenvolvimento é a de «cartas ao redactor», através da qual se estabelece uma comunicação íntima e constante entre o jornal e o leitor. (...) O chefe da redacção era o verdadeiro espírito e a alma da publicação. O jornal, geralmente, era um homem, mais até do que um partido. (...) Era o redactor responsável (...) quem (...) imprimia ao jornal uma direcção própria. Cada jornal importante definia-se por uma grande figura: (...) A Revolução de Setembro “era” António Rodrigues Sampaio (...). As polémicas que (...) tomavam frequentemente carácter pessoal acentuavam esta característica. Sendo o jornal todo, nele se concentravam não apenas as funções de redacção, mas também (...) as de direcção e administração. (...) Além dos elementos da redacção, o jornal contava com colaboradores eventuais, mais ou menos identificados com a linha política do jornal.

Havia, portanto, pouco profissionalismo nos jornais de então. A profissionalidade jornalística só então dava os primeiros passos no território português.

Uma outra característica pode ser apontada aos jornais do período Romântico, sobretudo quando comparados com os jornais vintistas. Neles colaboraram grandes nomes das letras e humanidades, como Alexandre Herculano, Almeida Garrett e, mais tarde, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. Pode dizer-se, inclusivamente, que a actividade jornalística ganhou prestígio suficiente para alguém como António Rodrigues Sampaio ter ascendido social e politicamente apenas graças a ela, pois ele, antes de se dedicar à política partidária, exercia o jornalismo em exclusividade, num tempo em que eram raros os que o conseguiam fazer. De qualquer modo, começavam a surgir três tipos de pessoas envolvidas nos jornais: os “políticos jornalistas” que produziam textos emotivos e persuasivos num estilo fluente; os “escritores de jornal”, literatos que emprestavam aos textos a marca da elevação literária e da perfeição; mais tarde, os repórteres e noticiaristas, que redigiam informações da mais variada índole, em especial notícias da política e da polícia (SOUSA, 2008b, p. 100-102).

Tengarrinha (2006, p. 137) sugere que foi o combate ao cabralismo que transmitiu “apaixonada impetuosidade” ao jornalismo político romântico:

O estilo jornalístico (...) nada tem do equilíbrio e regras dominantes dos textos clássicos. É visível a influência que recebe da oratória romântica (...). Em geral, é a mesma impetuosa carga emocional, o mesmo estilo declamatório, empolado, cheio de expressões redundantes. Causava o maior efeito não apenas em quem lesse, mas também em quem ouvisse, pois com muita frequência os editoriais eram lidos em voz alta nos sítios públicos (...).

Traço marcante é a relação que esse jornalismo (...) estabelece com o leitor. Ao contrário da “fase industrial” que se seguirá (...), com carácter pretensamente objectivo, o intento então era transmitir opiniões que estabelecessem uma relação de fidelidade com os leitores. Formavam-se, assim, correntes de opinião (...). E (...) projectava-se a ideia e a palavra na acção, impelindo à intervenção pública.

Luz Soriano (1854, p. 22), que conviveu de perto com essa imprensa, não tinha dela boa opinião, apelidando-a de “depravada”, “imprensa de partido (...) monopolizada nas mãos de meia-dúzia de jornalistas, só serve para falar às paixões, aos ódios e aos rancores pessoais, indo como tal (...) devassar tudo quanto há de mais privado”. Também Teixeira de Vasconcelos (1859, p. 27) evoca o jornalismo do meio do século XIX, atentando nos problemas da actividade:

A influência dos jornais é grande em Portugal e podia ser muito maior se os ataques à vida particular dos cidadãos e a pouca compostura de linguagem lhes não diminuíssem consideravelmente a autoridade. Há muita gente que finge em público desprezá-los, mas que os lê com avidez em particular. (…) Esses mesmos, se uma linha os molestou (…), acodem logo ao escritório do periódico ou à caça dos redactores com uma resposta de duas colunas e se as coisas públicas não andam a seu gosto, não largam os redactores.

Os jornais políticos eram lidos, principalmente, pela “burguesia triunfante”, que “não tinha uma educação literária requintada (...) nem cultura profunda, nem grandes preocupações e exigências formais, e procurava sobretudo uma aquisição fácil e rápida de conhecimentos gerais e o debate dos problemas concretos da administração pública.” (TENGARRINHA, 1989, p. 151)

De qualquer modo, a generalidade dos jornais publicados em Portugal, ao tempo de António Rodrigues Sampaio, prosseguiam a tradição da apaixonada e individualista combatividade política dos pasquins de um homem só. E para além disso, acentuavam a sua diversidade, correspondendo, portanto, a equivalente segmentação das ideias políticas e do público burguês, incluindo cada vez mais mulheres. Tengarrinha (1989, p. 155) é da mesma opinião:

Surpreendemos no jornalismo político após 1834 (...) um novo conteúdo ideológico (...). A imprensa vintista (...) exprimia a luta entre o absolutismo e o constitucionalismo (...). Agora aparecem jornais progressistas defensores dos estratos mais baixos da população, em especial da pequena burguesia, e jornais partidários de uma ordem cartista moderada, que beneficiava especialmente os grandes proprietários de terras e a alta burguesia comercial. Mas além destes, surgem também os primeiros periódicos (...) nem progressistas nem moderados (...). O que neles se exprime (...) é apenas um estado de insatisfação, de desacordo (...), uma posição meramente negativa.

Qual seria, no entanto, a sua real influência? Conjectura José Manuel Tengarrinha (1989, p. 205-206):

Foi nesta (...) época que o jornalismo exerceu mais vincada influência na opinião pública. O âmbito dos leitores alargou-se (...) até à pequena burguesia. (...) Os jornais (...) eram (...) o centro da vida política e social. Por eles se liam os debates nas câmaras, se conheciam as disposições oficiais, se discutiam as directrizes do partido ou da facção expressas nos artigos de fundo, se sabiam os principais acontecimentos (...), se adquiriam conhecimentos (...), se dispunha de um meio de distracção e divertimento. Essa influência é tanto mais evidente quanto é certo que os leitores se agrupavam em torno dos jornais com que se identificavam (...), sendo de admitir (...) que as opiniões expostas (...) fossem reforçar ou corrigir as suas ideias. (...) Mas neste ponto da questão não podemos esquecer a esclarecida afirmação de R. Manevy: “A imprensa faz a opinião (...) na medida em que esta se quer deixar fazer”.

Com a vantagem de com eles conviver, Teixeira de Vasconcelos (1859, pp. 28-29) reflecte, identicamente, sobre a influência que os periódicos da sua época teriam na sociedade portuguesa e, pertinentemente, alarga essa à própria língua portuguesa:

Os jornais têm, pois, uma importância considerável nos negócios públicos, como é de justiça num governo livre, e tanto os periódicos políticos, como os literários, contribuem diariamente para a propagação da leitura, instruem e recriam as pessoas (…) e excitam a mocidade ao exercício das funções literárias. A língua portuguesa perdeu por intervenção deles uma parte da sua pureza vernácula (…), mas adquiriu maior elasticidade do que tinha antes. Eu creio que a cessação dos jornais em Portugal seria uma grande calamidade pública, porque ao Governo faltaria o meio mais fácil de conhecer a opinião geral, e aos governados o desafogo de pôr no papel as suas boas e más paixões, que teriam de manifestar-se por outros meios, mais perigosos. O jornal contribui para obstar às conspirações, como o duelo evita a (…) emboscada (…).

Foi, logo, com um jornalismo político e doutrinário, exacerbado e truculento, apaixonado e polémico, arrebatado e até insultuoso, que questionava permanentemente os limites da liberdade de imprensa, que Rodrigues Sampaio conviveu e foi nele que se habituou a ver um “verdadeiro” jornalismo – porque o outro, o jornalismo de notícias, reportagens e entrevistas, feito para informar e dar lucro mais do que para arregimentar e animar partidários de uma causa, só se afirmaria verdadeiramente no país a partir da fundação do Diário de Notícias, em 1864 (números de apresentação), apesar das infrutíferas tentativas anteriores de criação de jornais predominantemente noticiosos, caso do Jornal de Utilidade Pública (1841) e do Telégrafo (1845), cujo insucesso se poderá ter devido à incapacidade de fornecer notícias actuais, conforme sugere Tengarrinha (1989, p. 216). De facto, foi somente na Regeneração que se criaram ou estabilizaram as estruturas que permitiram o surgimento de uma imprensa industrial capaz de oferecer um produto mais centrado no relato de ocorrências do que na discussão de problemáticas, ainda que estas também nela pudessem ter lugar quando abordadas em nome do “bem comum”.

2. O PENSAMENTO DE ANTÓNIO RODRIGUES SAMPAIO SOBRE A IMPRENSA

Na conjuntura atrás relatada, o que pensava António Rodrigues Sampaio do jornalismo que vivenciava?

Tanto quanto foi possível apurar, Sampaio não escreveu muito sobre jornalismo, apesar de se definir como um jornalista que aceitava pacificamente a luta política através da imprensa e que admitia vozes discordantes no seu próprio jornal, conforme apregoou na Câmara dos Deputados, em Abril de 1856[8], dirigindo-se a outro parlamentar, que o acusava de acumular o jornalismo com o cargo de deputado, usufruindo, assim, de vantagens:

sou deputado e sou jornalista e não sei que a qualidade de deputado me inibia de exercer o ofício de jornalista, e declaro (...) que se tivesse de optar (...), optava pelo de jornalista. E o que me admira é que o ilustre deputado que (...) expõe aqui as suas opiniões, as não exponha também pela imprensa. Eu vou para lá, todos o sabem. Redijo os meus artigos e assino-os com o meu nome, não apareço só como editor responsável, mas também como redactor, e nem todos fazem assim, o que prova que a franqueza é mais fácil de alardear do que de seguir. Não censuro nisto ninguém, mas (...) seria mais curial que aqueles que se julgam ofendidos pela imprensa, recorressem à mesma imprensa, e se o ilustre deputado não tem um jornal que lhe admita os seus escritos, eu de muito boa vontade lhe ofereço um jornal (...).

Essa é que é a questão, e acho sempre inconveniente vir trazer para a tribuna as questões da imprensa. Se a imprensa pode falar agora aqui pela minha boca, não pôde falar sempre, e o ilustre deputado (...) pode responder-me pela imprensa (...), que eu aceito todas essas armas.

Assim, foi mais pelo seu exemplo de vida e acção que Sampaio demonstrou a sua fé na liberdade de imprensa, bem expressa na frase “antes quero uma imprensa anárquica do que uma imprensa perseguida”, que proferiu no calor da luta contra o cabralismo (Revolução de Setembro, 7 de Fevereiro de 1850). Contraditoriamente, o exemplo que deu enquanto político, após 1851, foi o de alguém que passou a desconfiar da “imprensa anárquica” e que pretendeu, através dos tribunais e das leis, refrear o que entendia serem os excessos dos jornais, em nome de uma “missão civilizadora” que atribuía à imprensa (Revolução de Setembro, 10 de Abril de 1851).

Há alguns registos do pensamento de António Rodrigues Sampaio sobre a imprensa. Por exemplo, no Espectro de 26 de Fevereiro de 1847 escreve:

O jornalista é o sacerdote de uma religião, duma crença social – expõe a sua doutrina, discute, convence ou é convencido. A sua alma deve respirar sempre amor, o seu apostolado é um apostolado de paz. Se o seu irmão peca, deve dizer-lhe como o sacerdote do Evangelho: – Fili, pecasti, non adjicias iterum.

Portanto, para Sampaio, jornalismo é engajamento doutrinário, militância e panfletarismo, e o jornalista é o intérprete dessa missão. Mas deve ser um intérprete cordato, que aponte paternalmente os erros dos adversários. Essa visão corresponde, aliás, aos juízos que os contemporâneos de Sampaio fizeram sobre a sua pessoa: adversário corrosivo, frontalmente corajoso, mas leal e bondoso, pouco dado a vinganças.

O excerto de texto anterior evoca também a ideia do jornalista como sacerdote e do jornalismo como sacerdócio, comum nos escritos dos que reflectiram sobre a natureza da profissão em Portugal (SOUSA, 2008a; 2008b; 2008c; SOBREIRA, 2003). Sendo sacerdócio, o jornalismo implicaria a total disponibilidade do jornalista, crença e convicção. Essa visão opôs-se, por muitos anos, à do jornalista como técnico capaz de obter, produzir e difundir informação. Opos-se, enfim, à visão do jornalista como repórter.

Num outro número do Espectro, o de 9 de Janeiro de 1847, Sampaio lamenta “a cegueira de certos publicistas que sustentam uma Corte corrupta com receio de outra pior”. Publicista, para Sampaio, era aquele que se dedicava à publicidade, entendida como a publicitação de factos e ideias através da imprensa. Portanto, publicista era sinónimo de jornalista. Ora, segundo se depreende das palavras de Sampaio, a missão jornalística teria uma dimensão moral. Os jornalistas, embora doutrinários, não poderiam ser cegos, isto é, não poderiam ignorar a verdade e muito menos apoiar cegamente um Poder Régio e um Governo corruptos.

A 6 de Fevereiro de 1844, após o insucesso da revolta anti-cabralista de Torres Vedras, e num tempo em que a ofensiva cabralista contra a liberdade de imprensa recrudescia, Sampaio redigiu o seguinte texto no Revolução de Setembro:

daqui a pouco, a publicidade, condição indispensável do sistema constitucional, será vedada, os prelos condenados como aríetes da anarquia, os tipos destruídos como projécteis da revolução. Calar-se-á o jornalismo. O silêncio da escravidão pesará sobre este país como uma campa de mármore negro sobre o túmulo.

Essa passagem permite perceber que António Rodrigues Sampaio considerava o jornalismo livre indispensável aos estados democráticos de direito, graças ao seu papel na publicitação e no escrutínio dos actos de poder. Sem jornalismo, impor-se-ia o “silêncio da escravidão” a um povo. Amordaçado, este ficaria incapaz de se sintonizar com a actualidade e de julgar com consciência de causa os actos de poder.

Também no Revolução de Setembro, mas a 10 de Abril de 1851, igualmente num texto contra Costa Cabral, escreveu o seguinte:

A imprensa é civilizadora, é conselheira de paz, é mensageira da verdade. Pondo a mão sobre o coração do país, conta todas as suas palpitações, espreita todos os seus movimentos, e procura dar-lhes uma solução pacífica e racional. A imprensa não diz ao povo que se insurja, mas diz e repete cem vezes ao Governo que o seu sistema leva o povo direito à insurreição. A imprensa não excita as paixões do país contra as autoridades, mas tem a obrigação de dizer que o roubo, o peculato e a concussão são motivos suficientemente fortes para excitar todas as sensibilidades e levantar todos os corações honestos e todos os ânimos pundonorosos.

O que se intui desse excerto de texto é que, para Sampaio, o jornalismo tem uma missão civilizadora, na linha dos argumentos liberais sobre a liberdade de imprensa. Efectivamente, para os liberais oitocentistas portugueses, conforme se pode observar, por exemplo, pelos textos de Casal Ribeiro (1850), Silva Ferrão (1850), Cavroé (1821) ou Sinval (1823), a imprensa livre é veículo de conhecimento e de confronto de pontos de vista, impede o despotismo, permite o escrutínio do poder e dá expressão pública aos pensamentos individuais, expandindo a liberdade de pensamento, vista como um direito natural do homem. Aliás, registe-se que Sampaio, no editorial do último número do Espectro (3 de Julho de 1847), tem uma frase, dirigida aos leitores, em que revela a sua crença na imprensa como veículo das luzes: “A imprensa livre vos ilustrará.”

De acordo com essa missão civilizadora, a imprensa seria ainda, de acordo com Sampaio, “conselheira de paz”. Aqui, estará já em destaque a faceta da imprensa como espaço através do qual os indivíduos podem confrontar pontos de vista sem necessidade de se encontrarem e, muito menos, de entrarem em guerra. Ele próprio diz que a imprensa pode contribuir para dar “uma solução pacífica e racional” aos problemas do país.

Mas mais importante, para Sampaio a imprensa também é “mensageira da verdade”. Comprometer-se com a verdade, exprimir o mundo com verdade, é o valor central do jornalismo, tomado à historiografia (SOUSA, 2008a). Os artigos de Sampaio podem, assim, ser lidos como uma luta pela verdade, ou pelo menos como uma luta pela supremacia de uma verdade, mas também como pregões de determinadas causas. Registe-se, aliás, que as insinuações caluniosas e as acusações nem sempre justas que dirigiu a D. Maria II e aos Cabrais, especialmente a Costa Cabral, fogem à ideia de luta pela verdade. Alguns dos seus textos são mesmo exemplos de “jornalismo” de causas e neles a verdade dos factos é subordinada à conveniência das causas. O próprio excerto de texto acima inserido demonstra claramente a fé de Sampaio na imprensa como veículo de mobilização popular para a defesa dessas mesmas causas – “A imprensa não excita as paixões (...), mas tem a obrigação de dizer que o roubo, o peculato e a concussão são motivos (...) para excitar todas as sensibilidades e levantar todos os corações honestos e todos os ânimos pundonorosos.”

Uma outra passagem do texto acima merece destaque. Para António Rodrigues Sampaio, a imprensa consegue auscultar o “coração do país”, dar conta de “todas as suas palpitações”, observar “todos os seus movimentos”. Aqui transparece a crença de Sampaio na imprensa como indício, ou talvez mesmo espelho, do que se passa no país. Afinal, ontem como hoje os jornais servem para dar a conhecer o que se passa.

Diga-se, por outro lado, que n’O Espectro, Sampaio condenou o uso da linguagem desbragada do mais violento dos jornais clandestinos da Patuleia, O Popular. Escreve, efectivamente, Rodrigues Sampaio no Espectro de 26 de Fevereiro de 1847:

Apareceu (...) O Popular. O Espectro faltaria à sua missão se ficasse silencioso à vista da linguagem que nele se emprega. Magoou-se-nos o coração ao lê-lo. Quiséramos que a mais santa das causas fosse também a mais generosa e a mais pura e que a soberania da nação não aprendesse nos delírios da soberania da corte o exercício dos seus direitos. (...) O Paço dos Reis é um foco de corrupção política, mas não o é de corrupção moral. Não há Rainha mais virtuosa como esposa, nem como mãe de família. A Sua casa pode servir de exemplo a todas da Europa! (...) Assim pudéssemos achar que louvar no funcionário como achamos no indivíduo.

Noutro número do Espectro, o de 24 de Junho, também defende a Soberana, vincando, interessantemente, a necessidade de defesa da reserva da vida privada e familiar:

Lemos no Brado da Lealdade uma acusação que nos cobriu de vergonha. Diz o papel cabralista que a família do Rei está devassando o paço, que o esposo da Rainha se vai enchendo de vícios (...). Os ministros espalham a mãos largas estes infames papéis.

O partido popular, a quem a Rainha persegue, contra o qual mandou vir forças estrangeiras, respeitou sempre a vida privada da Real Família. Não merece ser Rainha depois que chamou contra nós os aliados, mas não merece ser caluniada. O Espectro não a pode amar, porque não pode amar a tirania. Mas é preciso ser justo e clamar que o Brado da Liberdade é um infame e que os ministros que o espalham são uns traidores e aleivosos.

Assim, dos excertos acima, é possível concluir que os ataques de Sampaio, através do Espectro, aos jornais O Popular e Brado da Lealdade, que visavam a vida familiar de D. Maria II, demonstra que este jornalista cria na separação entre a vida privada, que não deveria ser objecto do jornalismo, e a vida pública, que legitimamente poderia ser objecto de cobertura e interpretação jornalísticas.

Num dos traços mais paradoxais do seu percurso de vida, uma vez chegado ao poder, António Rodrigues Sampaio usou os tribunais para querelar vários jornalistas por abuso de liberdade de imprensa. Porquê? Numa carta ao seu advogado Manuel Maria Beirão, publicada no jornal Futuro de 10 de Abril de 1860, a respeito do insucesso de uma acção que tinha interposto contra O Português, ele procura justificar, defensivamente, o recurso aos tribunais para dirimir uma questão que dizia essencialmente respeito à imprensa:

Quando me argúem de um facto falso e desonroso, não discuto na imprensa, porque aí devem discutir-se as opiniões e não as calúnias, peço a reparação nos tribunais, único lugar onde se julgam tais pendências.

(...)

Não me desconsola a decisão do júri. A acusação era que eu tinha vendido a consciência e o voto. Pedi que O Português retirasse aquelas expressões, e não o fez.

(...)

Estranhou o sr. Bruschy que eu largasse as armas da imprensa para ir aos tribunais acusar um colega (...). Não há dúvida que a honra do sr. Bruschy já foi maculada pela imprensa. Não há dúvida que s. s.ª não foi aos tribunais (...). Não há dúvida que se socorreu de dois padrinhos e que julgou que a questão da imprensa devia sair da mesma imprensa, não para os tribunais, mas para o campo onde a agilidade, a força, uma estocada ou um tiro deviam decidir quem tinha razão.

O que se nota no excerto da referida carta acima inserido é efectivamente uma certa contradição entre aquela que tinha sido a prática jornalística de Sampaio e o facto de considerar ofensivo, e motivo de uma querela judicial por abuso de liberdade de imprensa, a acusação eminentemente política (uma apreciação, portanto), de que teria “vendido a consciência e o voto”, quando ele próprio de coisas muito mais graves tinha acusado os seus adversários, nem sempre com provas conclusivas, e às vezes baseado em puros rumores. Nessa fase da sua vida, para ele já não podiam, paradoxalmente, ficar na imprensa as questões de honra levantadas na própria imprensa. De qualquer modo, é de salientar a firme convicção de Sampaio na utilidade das instituições de Justiça do Estado de Direito – os tribunais – para resolver as questões relativas aos ilícitos de abuso de liberdade de imprensa, principalmente quando comparada com a alternativa de lavagem da honra em duelo.

CONCLUSÃO

Este trabalho teve por objectivo apresentar sumariamente a vida e a obra de António Rodrigues Sampaio, um dos portugueses civicamente mais interventivos do século XIX e também, seguramente, um dos homens mais notáveis do seu tempo. Foi seu objectivo tentar responder à seguinte questão principal: Através dos seus escritos na imprensa, é possível intuir qual o seu pensamento sobre o jornalismo da sua época?

Deve relembrar-se, primeiro, que a vida de António Rodrigues Sampaio foi marcada pelo exercício do jornalismo doutrinário, num tempo e num espaço onde os factos não eram segregados do comentário, em que a liberdade de opinião, exacerbada, incluía o insulto, a calúnia e a truculência, onde fazer política e fazer jornalismo, no sentido de “escrever política em jornais”, eram quase sinónimos. Dessa fusão entre o fazer da política e o fazer do jornalismo, a que se juntaria, depois, o fazer da literatura (emersão do fenómeno dos “escritores de jornal”), resultaria, aliás, a discussão que, em Portugal, se prolongou até ao século XX, sobre a natureza do “verdadeiro” jornalismo – se arte liberal assente na produção de informação sob a forma de notícias, entrevistas e reportagens, e portanto passível de ser ensinada e aprendida, ou se capacidade inata assente na capacidade de persuasão e numa elevada erudição (SOUSA, 2009a).

Ontem como hoje, portanto, os políticos orientam-se para a comunicação social, com a diferença de que, no século XIX, fazer jornalismo e fazer política confundiam-se. No século XIX português, pelo menos até à fase de industrialização da imprensa, após 1864/1865 (surgimento do Diário de Notícias), não havia grande distinção entre ser-se político e ser-se jornalista, tal como não havia entre ser-se escritor e ser-se jornalista, até porque não existiam repórteres profissionais. Hoje, o jornalista profissional não é, por definição, um profissional da política e considera-se mesmo que os dois campos não se devem misturar, por muito que interajam, mas no Portugal dos primeiros três quartos do século XIX não existia um campo da política separado de um campo do jornalismo, já que quase todos os jornais eram, essencialmente, um prolongamento impresso e público da política. Foi, portanto, Sampaio um jornalista? No contexto da época – e os factos históricos devem ser lidos em função do contexto de cada época – sem dúvida que o foi. Durante grande parte da sua vida, foi essa, aliás, a sua principal e remunerada profissão. Sampaio foi, de facto, um profissional remunerado para escrever textos com informação interpretada e opinião para jornais e mesmo quando se envolveu na política parlamentar e no Governo continuou a dirigir o Revolução de Setembro e a receber remuneração pela tarefa. Era um repórter? Não. Mas tal como o jornalismo não se esgota na reportagem nem na notícia, também a figura do jornalista não se esgota no repórter e muito menos se esgotava no contexto oitocentista do exercício da actividade. Aliás, o conceito de profissão em jornalismo, mesmo à luz das leis actuais, passa muito pela dedicação ao ofício como ocupação profissional principal, permanente e remunerada.

Através dos escritos de António Rodrigues Sampaio, é possível intuir qual o seu pensamento sobre o jornalismo? Esta foi a grande questão de pesquisa colocada e a ela é possível responder que, principalmente, ele acreditava numa imprensa combativa que apregoasse “a verdade” (uma verdade), escrutinasse o poder, sustentasse a democracia, combatesse o despotismo e expusesse os atentados ao bem comum – a corrupção, o compadrio (acto em que paradoxalmente terá ele próprio incorrido, talvez sem consciência de causa, de tal forma era comum), a extorsão, a ladroagem, os abusos. Talvez não tenha deixado amplos e consistentes escritos sobre o seu pensamento jornalístico, mas a sua acção jornalística permite entender qual seria o seu entendimento sobre o papel do jornalista e dos jornais. Paradoxalmente, como parlamentar e governante, nem sempre agiu de acordo com esses nobres princípios.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FIGUEIRA, Francisco da Silva. Discurso que nas solenes exéquias que o Partido Regenerador mandou celebrar na igreja paroquial de Santa Justa e Rufina em 13 de Outubro de 1882 pela alma do insigne patriota António Rodrigues Sampaio. Lisboa: Tipografia Universal, 1882.

GOMES LEAL, [António Duarte]. O Renegado. A António Rodrigues Sampaio. Carta ao velho panfletário sobre a perseguição da imprensa. Lisboa: Tipografia do Largo dos Inglesinhos, 1881.

SÁ, Victor de. O Sampaio da “Revolução” nas fracturas do século. Porto: Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, 1984.

SILVA FERRÃO, Francisco António Fernandes. O uso e abuso da imprensa ou considerações sobre a proposta de lei regulamentar do § 3 do art.º 145º da Carta Constitucional. Lisboa: Tipografia do Panorama, 1850.

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SOUSA, Jorge Pedro. Pesquisa e reflexão sobre jornalismo: até 1950... e depois. In: Jorge Pedro Sousa (Org.), Jornalismo: História, Teoria e Metodologia da Pesquisa. Porto: Edições Universidade Fernando Pessoa, 2008a, p. 154-226.

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VELOSO, Rodrigo. Jornalistas portugueses: António Rodrigues Sampaio. Famalicão: Tipografia Minerva, 1910.

[1] Trabalho apresentado no GP de História do Jornalismo, DT1 – Jornalismo, X Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.

[2] Professor e pesquisador da Universidade Fernando Pessoa (Porto, Portugal) e do Centro de Investigação Media e Jornalismo (Lisboa, Portugal), livre-docente (agregado), pós-doutor e doutor em Jornalismo.

[3] Professora e pesquisadora da Universidade Fernando Pessoa (Porto, Portugal), doutora em Linguística.

[4] Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Natal, Brasil), doutora em Comunicação.

[5] Mestre em Jornalismo pela Universidade Fernando Pessoa (Porto, Portugal).

[6] António Rodrigues Sampaio confessa-o no último número.

[7] Período posterior à Revolução Liberal de Agosto de 1820, evento que representa o fim do Antigo Regime em Portugal e o ingresso do país num sistema democrático liberal.

[8] Diário da Câmara dos Deputados, vol. IV, 1856, p. 38-39.

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