14.02 O jornalismo português no tempo de Sampaio
1. O jornalismo português no tempo de António Rodrigues Sampaio
Qual a experiência que teve António Rodrigues Sampaio do jornalismo? Esta é uma questão importante para perceber o rumo que a sua vida levou.
Primeiro, torna-se importante acentuar a dinâmica jornalística com que ele contactou, bem sintetizada nas palavras de António José Saraiva e Óscar Lopes (1979, p. 809):
Nos dez anos que precederam a Revolução de 1820, a média de jornais aparecidos anualmente não chegava a quatro, incluindo neste número alguns editados em Londres e no Brasil. Nos anos de 1820-1823, na vigência da primeira Constituição, essa média eleva-se a cerca de 30, para baixar após a abolição da Constituição, subir novamente com a proclamação da Carta, de novo baixar com o miguelismo, e outra vez subir e fixar-se definitivamente num nível muito mais alto a partir da vitória liberal de 1834. As épocas de maior vitalidade popular são também aquelas de maior produção jornalística: iniciam-se 60 jornais em 1836, 57 em 1846, e o número mantém-se elevado nos dois anos (...) de guerra civil (...). As leis cabralistas repressivas da liberdade de imprensa reflectiram-se – como era aliás seu objectivo – na actividade jornalística: o ano de 1850 vê nascer apenas 15 jornais. A partir da Regeneração nota-se um desenvolvimento progressivo da imprensa provinciana (...).
O jornalismo hegemónico português que Rodrigues Sampaio conheceu ao longo da sua vida[1] – e que marcou a forma de o conceber – era um jornalismo panfletário, marcado pela opinião. Nele, o artigo pontificava, à custa da desvalorização da informação noticiosa. Inclusivamente:
Na sua grande maioria, os jornais são, nos primeiros dois terços do século, panfletos políticos em séries editadas periodicamente. (...) Em vários (...) jornais (...) exercitaram a pena os melhores escritores da época. (...) Mas já desde a primeira revolução liberal aparecem, ao lado dos jornais políticos, periódicos (...) literários e de divulgação cultural (...) e (...) jornais (...) teatrais (...). (SARAIVA e LOPES, 1979, p. 810)
O jornalismo político dos tempos de Sampaio[2] era, de qualquer modo, um jornalismo de elites, feito pelas elites para consumo das elites, ou, por outras palavras, feito para a burguesia por “escritores de jornal” e “políticos de jornal”, que se viam a si mesmos como jornalistas, mas que desempenhavam a actividade muitas vezes mais por ocupação do que por verdadeira profissão, mesmo quando dela tiravam proveitos financeiros regulares[3]. Não eram repórteres, mas sim articulistas, publicistas, opinadores e, não raramente, panfletários (ver, por exemplo TENGARRINHA, 1989; SOBREIRA, 2003; SOUSA, 2008b).
Teixeira de Vasconcelos (1859, p. 26-27), que conheceu de perto a situação, tradu-la assim:
A fundação dos periódicos políticos e de uma grande quantidade de folhas literárias criou a nova e importante classe dos jornalistas, na qual entraram, ou nela se formaram, poetas, historiadores, críticos, filósofos, economistas e homens de grande valia nas ciências e nas letras, e dela saíram para as cadeiras das câmaras ou do ministério e para os mais altos lugares do Estado. (…) Os escritores que são hoje o ornamento das letras nacionais, todos receberam o baptismo na pia jornalística.
Os primeiros jornais doutrinários portugueses, surgidos logo após a Revolução Liberal de 1820, eram publicações artesanais, feitas por um homem só. Não se limitavam a procurar ilustrar ou opinar. Facilmente caíam no insulto e na calúnia, razão pela qual são muitas vezes denominados de pasquins. Embora reportando-se à imprensa brasileira, que nessa altura evoluía a par da portuguesa, Nelson Werneck Sodré (1999, p. 85 e p. 157) caracteriza muito bem esses jornais e encara-os de forma bastante positiva ao classificá-los como “imprensa peculiar, cujos traços de grandeza e autenticidade são normalmente apresentados como impuros”:
Eram vozes (...) bradando em altos termos e combatendo desatinadamente pelo poder que lhes assegurasse condições de existência compatíveis ou com a tradição ou com a necessidade. Não encontrando a linguagem precisa (...), a norma política adequada aos seus anseios, e a forma e organização a isso necessárias, derivavam para a vala comum da injúria, da difamação (...). Não podiam fazer uso de outro processo porque não o conheciam (...) num meio em que a educação (...) estava pouquissimamente difundida (...), em que os que sabiam ler não tinham atingido o nível necessário ao entendimento das questões públicas e em que os que haviam frequentado escolas superiores se deliciavam em estéril formalismo (...), a única linguagem que todos compreendiam era mesmo a da injúria.
De qualquer modo, atentando nos aspectos positivos do vintismo, Carlos Carrasco, Cecília Cunha e Joaquim Pintassilgo (1983, p. 66) notam que ele trouxe consigo “o gosto pelo jornal”, aspecto não despiciendo para a evolução do jornalismo português. Mais do que isso, o vintismo trouxe consigo as ideias da liberdade de imprensa como extensão da liberdade de pensamento, direito natural do homem, que Alexandre Herculano (1907, p. 17) apelidava “um dogma, o primeiro da religião política moderna”. Mais do que isso, o aparecimento regular de jornais políticos permitiu a solidificação da esfera pública burguesa em Portugal.
A vitória do liberalismo trouxe consigo um grande impulso à imprensa e à tribuna parlamentar. (...) Estes dois géneros têm na literatura uma função importante: é através deles que se estabelece o nexo entre a literatura e o dia-a-dia. O estilo imposto pelo jornalismo e pela tribuna política a escritores que têm de se fazer entender por um público quantitativamente vasto projecta-se inevitavelmente noutros géneros literários e forja grandes correntes de gosto. (CUNHA e PINTASSILGO, 1983, p. 66)
O vintismo, recorde-se, produziu, ainda, os primeiros arremedos de reflexão sistemática sobre o jornalismo português. Autores como o polemista conservador José Agostinho de Macedo (1821a; 1821b; 1821c) criticaram os jornais por reportarem insignificâncias, explorarem as emoções, apelarem à superficialidade do conhecimento, gerarem confusão e anarquia, copiarem-se uns aos outros, dividirem o povo, quererem substituir-se ao Rei, ao Governo e ao Parlamento na definição dos caminhos a trilhar pelo País e serem redigidos por pessoas incultas e impreparadas que procuravam, principalmente, ganhar dinheiro com eles. Por seu turno, liberais como Pedro Cavroé (1821) ou Joaquim Maria Alves Sinval (1823) apresentavam a liberdade de imprensa como decorrente do direito natural dos seres humanos ao pensamento, sendo susceptível de contribuir para a emancipação do homem, para o conhecimento do mundo e, em termos mais prosaicos, para o escrutínio da governação e dos negócios públicos e para a discussão política – ou seja, afinal, para a democracia.
Graças às influências modernizadoras que os emigrados liberais trouxeram para o País, quando regressaram do exílio, em Portugal os jornais artesanais de um único indivíduo, próprios do vintismo, deram lugar, gradualmente, aos jornais do período Romântico, feitos por pequenos grupos de indivíduos unidos ideologicamente para um propósito comum – jornais de partido, portanto. Cedo começaram a ser necessários mais recursos para montar um jornal de bases sólidas, nomeadamente uma sede para a redacção e a possibilidade de utilização de uma tipografia bem apetrechada, pois também constantes eram os aperfeiçoamentos nos sistemas de composição e de impressão (TENGARRINHA, 1989, p. 155). Apareceram, nomeadamente, prensas movidas a vapor, ao mesmo tempo que a produção química de tintas melhorava e se incrementava a indústria do papel.
Explica José Manuel Tengarrinha (1989, p. 153):
Estes periódicos que aparecem depois de 1834 diferenciam-se dos anteriores (...) por (...) maior segurança nos processos jornalísticos e apetrechamento técnico mais desenvolvido [e] (...) um novo conteúdo ideológico, aparecendo como órgãos de partidos ou (...) de facções.
Eram, em consequência, jornais que não se limitavam a ecoar o que sucedia no espaço público, antes mantinham com ele um diálogo, já que cada jornal representava uma corrente de opinião política, actuando como respectivo porta-estandarte no colóquio, ou até, na maioria das vezes, no combate, com as demais correntes de opinião, frequentemente representadas, também, pelos seus próprios jornais, espécie de extensões do Parlamento. No Romantismo, o aumento do número de publicações políticas consolidava, assim, uma esfera política representativa das diversas facções em confronto, dando consistência aos passos que, nesse domínio, tinham sido dados durante o vintismo. Mais tarde, os jornais industriais, transclassistas, tentariam interferir na própria governação em nome do que entendiam por “bem-comum”, substituindo-se aos próprios parlamentos como legítimos intérpretes da opinião dos cidadãos.
À medida em que se tornavam instituições sociais e espaços de poder simbólico – e real –, os jornais românticos conseguiam propagar os projectos das diferentes facções políticas na esfera pública. Todavia, estando sujeitos à colaboração de um reduzido, e por vezes volúvel, número de colaboradores, podiam manifestar uma certa plasticidade ideológica, consubstanciada nas metamorfoses que as linhas editoriais sofriam. O Revolução de Setembro, por exemplo, de um órgão do setembrismo radical, passou, durante a Regeneração, a um periódico defensor do fontismo, deixando de lado as grandes questões ideológicas. Acompanhou, de resto, o trajecto político do seu principal mentor, António Rodrigues Sampaio.
De alguma forma, os jornais românticos portugueses até à Regeneração reproduziam o sistema político existente no país, que, embora representativo (apesar de censitário e sexista), não integrava partidos políticos como hoje são entendidos. Era um sistema meramente protopartidário ou faccionário, assente, sobretudo, na aceitação e defesa, ou não, por conjuntos mais ou menos organizado de indivíduos, de um dos vários textos constitucionais, segmentando-se em três grandes grupos principais: cartistas, constitucionalistas (incluindo setembristas) e absolutistas (miguelistas, adeptos do Antigo Regime). Dentro dessas facções, podiam surgir grupos ligados ao apoio a um único indivíduo, subservientes à rede clientelar que este juntava à sua volta, caso dos cabralistas e saldanhistas (todos eles cartistas), ou, mais tarde, dos fontistas. A essa esfera pública, juntaram-se os republicanos e outros grupos políticos (socialistas, anarquistas...) e ainda os operários, cujas organizações mutualistas e de defesa, entre as quais os sindicatos, foram responsáveis pela aparição de muitos periódicos. A partir da Regeneração, os partidos políticos tornaram-se, todavia, mais consistentes.
O poder da imprensa romântica residia, portanto, na capacidade de dar expressão simbólica e pública aos mecanismos de poder, contrapoder, balanceamento e arbitragem que permanentemente interagiam no espaço social, em torno de momentos de equilíbrio e de ruptura. Em alguns casos, a publicação de um jornal permitia mesmo a grupos não representados nas duas câmaras do Parlamento a possibilidade de usufruírem de uma voz pública. Era o jornalismo, enfim, que facultava aos grupos de cidadãos fazerem-se ouvir na esfera pública.
É de salientar que, à época, a débil organização das forças políticas e a sua infantilidade ideológica e doutrinária lhes dava pouca capacidade de acção, já de si refreada pelo facto de o Rei deter, segundo a Carta Constitucional, o poder Executivo e o poder Moderador. Os partidos, num estado ainda embrionário, reflectiam a segmentação da sociedade burguesa em grupos de interesses doutrinária e hierarquicamente pouco coesos e fracos. Aliás, em vários casos, conforme sucedeu durante o cabralismo e durante o fontismo, os partidos pouco mais eram do que organizações internamente pouco estruturadas e pouco hierarquizadas que se articulavam em torno de uma personalidade dotada de capital social que conseguia satisfazer, ou manter na esperança de serem satisfeitas, as suas clientelas, até porque os negócios dos principais partidos políticos eram profundamente articulados com a governação[4] (vendas de empregos públicos, benesses económicas, contratos com o Estado...).
Nessa conjuntura, conforme dá conta Teixeira de Vasconcelos (1859, p. 78), a vida de um jornalista político, especialmente se provasse o sucesso na política e chegasse ao Governo, tal como aconteceu com Sampaio, não era fácil. O próprio Sampaio foi desafiado para três duelos, dos quais teve de travar um, por causa do que escrevia.
O ofício de periodiqueiro tem seus ossos (…). A entrada é de rosas. Os colegas cumprimentam o redactor esperançoso, que debuta, e auguram-lhe um grande futuro. Poucos dias depois, chamam-lhe asno, boçal e estúpido. Passam seis meses, e se ele sobe as escadas de uma secretaria, acusam-no de ladrão e de concussionário, e por dá cá aquela palha mandam-lhe a casa dois padrinhos (…) para combinarem com outros dois sujeitos chamados também padrinhos o modo mais decente de o matarem ou de serem mortos por ele. Osso que custou a vida a Armand Carrel e que por várias vezes pôs em risco a de Sampaio. (TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859, p. 78).
Como se organizavam os jornais portugueses do tipo do Revolução de Setembro, aquele no qual António Rodrigues Sampaio se distinguiu, a meio de oitocentos, em pleno Romantismo? Explica, mais uma vez, o principal estudioso da imprensa periódica portuguesa durante a Monarquia, José Manuel Tengarrinha (1989, p. 189-190):
um jornal de certa importância era, em geral, constituído por um editor (responsável perante as autoridades), por um redactor-responsável (ou chefe da redacção), por um ou dois noticiaristas encarregados da tradução das folhas estrangeiras e da informação nacional (...) e um folhetinista (...). Uma secção que toma então grande desenvolvimento é a de “cartas ao redactor”, através da qual se estabelece uma comunicação íntima e constante entre o jornal e o leitor. (...) O chefe da redacção era o verdadeiro espírito e a alma da publicação. O jornal, geralmente, era um homem, mais até do que um partido. (...) Era o redactor responsável (...) quem (...) imprimia ao jornal uma direcção própria. Cada jornal importante definia-se por uma grande figura: (...) A Revolução de Setembro “era” António Rodrigues Sampaio (...). As polémicas que (...) tomavam frequentemente carácter pessoal acentuavam esta característica. Sendo o jornal todo, nele se concentravam não apenas as funções de redacção, mas também (...) as de direcção e administração. (...) Além dos elementos da redacção, o jornal contava com colaboradores eventuais, mais ou menos identificados com a linha política do jornal.
Havia, portanto, pouco profissionalismo nos jornais de então. A profissionalidade jornalística só então dava os primeiros passos no território português. Brito Aranha (1907, p. 74-75), por exemplo, ao evocar a figura de José Estêvão, um dos fundadores do jornal Revolução de Setembro, descreve como se passavam as coisas na redacção:
José Estêvão entrava na redacção, às vezes depois da uma hora [da manhã]. Esperava-o aí um pobre velho, que ele tinha às ordens para escrever o que ditava, pois era sabido que a letra dele ninguém entendia. (...) E José Estêvão zangava-se quando lho diziam e provavam (...).
– Vocês não o entendem? Ora essa! – interjectava ele.
E depois acudia:
– Nem eu... – e ria-se.
O velho secretário, que muito lhe aturou, aguardava a chegada do ilustre jornalista e professor com ar sonolento e aborrecido. José Estêvão não lhe ganhava. Sentava-se à mesa de trabalho na frente do secretário e ditava as primeiras frases do começo do artigo de fundo. Bocejava, fechava os olhos e a cabeça pendia-lhe para a mesa. Passados alguns minutos despertava como se o tivessem acordado com ímpeto e perguntava:
– Então, o que você pôs lá?...
Ao que o velho respondia secamente:
– O que ditou.
– Só isso?
– Mais nada.
– É pouco. Vamos ao resto.
E o processo de ditar continuava com as mesmas intermitências. Ao cabo de duas horas, estava o artigo pronto e deitava a composição do periódico pouco mais do que três quartos de coluna.
Meia hora depois de mandar entregar o original, José Estêvão gritava:
– Chamem-me o Coutinho.
Aparecia logo o chefe da composição tipográfica e, sendo interrogado, respondia:
– O original foi entregue há poucos minutos e era impossível apresentá-lo já em provas. Mas não tem demora.
No dia seguinte, quem lia a Revolução de Setembro, não podia apreciar as ralações por que passara o pessoal operário para a dar ao público, mas regalava-se com o artigo enérgico, fogoso, que tinha saído do cérebro privilegiado de José Estêvão.
Uma outra característica pode ser apontada aos jornais do período Romântico, sobretudo quando comparados com os jornais vintistas e com os jornais industriais que lhes sucederam. Neles colaboraram grandes nomes das letras e humanidades, como Alexandre Herculano, Almeida Garrett e, mais tarde, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. A sua colaboração serviu para elevar e até individualizar o estilo dos textos, o que, aliado a uma apresentação gráfica crescentemente cuidada, promoveu a adesão do público. Pode dizer-se, inclusivamente, que a actividade jornalística ganhou prestígio suficiente para alguém como António Rodrigues Sampaio ter ascendido social e politicamente apenas graças a ela, pois ele, antes de se dedicar à política partidária, exercia o jornalismo em exclusividade, num tempo em que eram raros os que o conseguiam fazer. De qualquer modo, começavam a surgir três tipos de pessoas envolvidas nos jornais: os “políticos jornalistas” que produziam textos emotivos e persuasivos num estilo fluente; os “escritores de jornal”, literatos que emprestavam aos textos a marca da elevação literária e da perfeição; mais tarde, os repórteres e noticiaristas, que redigiam informações da mais variada índole, em especial notícias da política e da polícia (consultar, entre outros, CUNHA, 1941; TENGARRINHA, 1989; SOUSA, 2008b; SOBREIRA, 2003).
Tengarrinha (2006, p. 137) sugere que foi o combate ao cabralismo que transmitiu “apaixonada impetuosidade” ao jornalismo político romântico:
O estilo jornalístico (...) nada tem do equilíbrio e regras dominantes dos textos clássicos. É visível a influência que recebe da oratória romântica (...). Em geral, é a mesma impetuosa carga emocional, o mesmo estilo declamatório, empolado, cheio de expressões redundantes. Causava o maior efeito não apenas em quem lesse, mas também em quem ouvisse, pois com muita frequência os editoriais eram lidos em voz alta nos sítios públicos (...).
Traço marcante é a relação que esse jornalismo (...) estabelece com o leitor. Ao contrário da “fase industrial” que se seguirá (...), com carácter pretensamente objectivo, o intento então era transmitir opiniões que estabelecessem uma relação de fidelidade com os leitores. Formavam-se, assim, correntes de opinião (...). E (...) projectava-se a ideia e a palavra na acção, impelindo à intervenção pública.
Luz Soriano (1854, p. 22), que conviveu de perto com essa imprensa, não tinha dela boa opinião, apelidando-a de “depravada”, “imprensa de partido (...) monopolizada nas mãos de meia-dúzia de jornalistas, só serve para falar às paixões, aos ódios e aos rancores pessoais, indo como tal (...) devassar tudo quanto há de mais privado”. Também Teixeira de Vasconcelos (1859, p. 27) evoca o jornalismo do meio do século XIX, atentando nos problemas da actividade:
A influência dos jornais é grande em Portugal e podia ser muito maior se os ataques à vida particular dos cidadãos e a pouca compostura de linguagem lhes não diminuíssem consideravelmente a autoridade. Há muita gente que finge em público desprezá-los, mas que os lê com avidez em particular. (…) Esses mesmos, se uma linha os molestou (…), acodem logo ao escritório do periódico ou à caça dos redactores com uma resposta de duas colunas e se as coisas públicas não andam a seu gosto, não largam os redactores.
Igualmente Guimarães Fonseca (1874, p. 19), que dirige a Sampaio uma carta laudatória, não tinha boa opinião dos jornais de que era contemporâneo:
A moderna geração não visa tão alto no diurno gladiar de questiúnculas e nas apoteoses guindadas aos anónimos viscondes do high-life. A imprensa, com honestíssimas e brilhantes excepções, que escuso de especificar porque se filiam ainda na escola de V. Ex.ª, negoceia as vulgaridades argentarias, ou adula os dispensadores das graças régias. Não discute com a ciência dos factos, com a crítica dos acontecimentos. Não agride o mal, não verbera o crime (…), acusa fantasiosamente, deprime por cálculos egoístas, rouba o estímulo do louvor (…), assim desvirtuada, esta grande vestal da opinião pública, assim prostituída e esguedelhada nas orgias imundas assim arrastada no lodo vil das paixões brutais.
Em 1889, quase na viragem do século XIX para o XX, o escritor Fialho de Almeida (2009, p. 32-33), criticava, com palavras irónicas e corrosivas, os jornalistas, num texto que, na altura, se tornou célebre. As suas palavras descrevem bem o arrivismo daqueles que faziam do jornalismo um trampolim para outros voos e a forma atamancada e deformante de praticar um velho-novo género jornalístico – a reportagem:
Em Portugal estamos assistindo há anos a este emergir de impunes à superfície do charco social: e os tímidos vêem com assombro formilharem das baiucas dos jornais (...) criaturinhas que vêm para a política como quem vai para o Brasil, de tamancos ainda, falando a galegagem da sua cidade natal, (...) quatro frases e meia na memória (...); e instalarem-se, começarem a tramar, a rastejar pela Arcada, a rabiar pelos locais dos jornalecos, solicitando a apresentação deste, o aperto de mão daquele, licença para escreverem a biografia daqueloutro; até que um dia aparecem já patrões, grandes concessionários (...), absolvidos do primeiro escândalo por uma opinião que os não vergasta, dobrando as energias (...) pelo estridor das insolências que vomitam, e espavorindo enfim as consciências, pelo tropel de escândalo de que fazem estendal.
Destes Barry Lindon[5] que vêm à capital tentar fortuna, o mais típico é o jornalista (...) pimpão, lesto em moral, intransigente em fórmulas de honra, desabusado porém de todas as crenças, batido de todas as misérias, esfomeado de todos os prazeres, (...) que (...) põe a sua fortuna num artigo (...), incorrendo na alternativa de acordar director-geral, ou ter de fazer saltar os miolos (...).
O público já tem assistido à alvorada duns poucos desses (...) e sabe que interpretação esses homens têm dado ao direito de pensar alto (...). Sob o consulado destes, a imprensa deixou de ser a voz da inquietação pública (...). Eles torceram o espírito de controvérsia de que vive o jornalismo (...) em testemunho falso e vilipêndio: a bela e calma linguagem falada outrora, nas pugnas vivas, porém nobres, do jornal, eles a tornaram (...) ódio, que se vomita (...) em inqualificáveis grosserias. E nem vislumbre de espírito alto, ironia pungente, ou dum ideal filosófico (...).
Quanto aos jornalistas, dêem-me seis que tenham passado a vida a defender os interesses do povo, sem fazer da redacção elevador para uma aposentadoria; dêem-me quatro onde eu escolha um grande homem de letras, ou simplesmente um grande homem de espírito (...). E a razão salta sem esforço. Os jornais (...) foram fundados para a aerostação política dum nome, para a defesa de um sindicato, ou para fazer ganhar dinheiro a um imbecil. (...) O jornalismo é um sítio de passagem (...) onde cada qual se demora o menos que pode.
Todos (...) contam fazer nos jornais apenas uma estação de preparo para esta ou aquela tentativa de fortuna, (...) uma ocupação sem nobreza (...).
Dada (...) a duração efémera da vida jornalística, nenhum homem de talento pode fazer do jornal a sua obra, nem convergir para artigos de transição, rápidos e destinados a viver vinte e quatro horas, o mais impressivo das suas faculdades (...). Se toco os outros, bastará dizer que o mais exclusivo e tenaz dos nossos jornalistas teve (...) uma mocada nos cascos (...).
O tirocínio destes famélicos é curto. Quase todos começam por imprimir atitudes de puros e de austeros; têm a palavra pronta, bravatas hábeis, apoplexias de cólera no argumento; e intransigentes na fórmula, esses homens surgem para a crendice os tolos como umas transfigurações da ombridade antiga e portuguesa. (...) Ninguém exige um passado a estes charlatães, como garantia de futuras responsabilidades. (...) Quatro ou cinco meses depois de mortos, não restará desses homens uma ideia, uma frase sequer, uma palavra. Serão lembrados (...) pelo crime de haverem desviado a consciência pública de (...) ideias justas (...); por haverem lançado (...) perturbações (...); por explorarem a tolice; pela lisonja; por haverem preterido o mérito ao empenho e formulado em evangelho a posse da riqueza (...). Quanto à reportage dos faits divers, essa abusa do escândalo, intervém nas deliberações dos magistrados, deturpa factos, reabilitando ou maculando, consoante as flatulências do génio em que amanhece.
Os jornais políticos da época eram lidos, principalmente, pela “burguesia triunfante”, essa mesma que, segundo Teixeira de Vasconcelos (1859), não largava os redactores, e que “não tinha uma educação literária requintada (...) nem cultura profunda, nem grandes preocupações e exigências formais, e procurava sobretudo uma aquisição fácil e rápida de conhecimentos gerais e o debate dos problemas concretos da administração pública.” (TENGARRINHA, 1989, p. 151)
De qualquer modo, a generalidade dos jornais publicados em Portugal, ao tempo de António Rodrigues Sampaio, prosseguiam a tradição da apaixonada e individualista combatividade política dos pasquins de um homem só. E para além disso, acentuavam a sua diversidade, correspondendo, portanto, a equivalente segmentação das ideias políticas e do público burguês, incluindo cada vez mais mulheres. Tengarrinha (1989, p. 155) é da mesma opinião:
Surpreendemos no jornalismo político após 1834 (...) um novo conteúdo ideológico (...). A imprensa vintista (...) exprimia a luta entre o absolutismo e o constitucionalismo (...). Agora aparecem jornais progressistas defensores dos estratos mais baixos da população, em especial da pequena burguesia, e jornais partidários de uma ordem cartista moderada, que beneficiava especialmente os grandes proprietários de terras e a alta burguesia comercial. Mas além destes, surgem também os primeiros periódicos (...) nem progressistas nem moderados (...). O que neles se exprime (...) é apenas um estado de insatisfação, de desacordo (...), uma posição meramente negativa.
Qual seria, no entanto, a sua real influência? Conjectura José Manuel Tengarrinha (1989, p. 205-206):
Foi nesta (...) época que o jornalismo exerceu mais vincada influência na opinião pública. O âmbito dos leitores alargou-se (...) até à pequena burguesia. (...) Os jornais (...) eram (...) o centro da vida política e social. Por eles se liam os debates nas câmaras, se conheciam as disposições oficiais, se discutiam as directrizes do partido ou da facção expressas nos artigos de fundo, se sabiam os principais acontecimentos (...), se adquiriam conhecimentos (...), se dispunha de um meio de distracção e divertimento. Essa influência é tanto mais evidente quanto é certo que os leitores se agrupavam em torno dos jornais com que se identificavam (...), sendo de admitir (...) que as opiniões expostas (...) fossem reforçar ou corrigir as suas ideias. (...) Mas neste ponto da questão não podemos esquecer a esclarecida afirmação de R. Manevy: “A imprensa faz a opinião (...) na medida em que esta se quer deixar fazer”.
Com a vantagem de com eles conviver, Teixeira de Vasconcelos (1859, pp. 28-29) reflecte, identicamente, sobre a influência que os periódicos da sua época teriam na sociedade portuguesa e, pertinentemente, conjectura sobre os efeitos do jornalismo na própria língua portuguesa:
Os jornais têm, pois, uma importância considerável nos negócios públicos, como é de justiça num governo livre, e tanto os periódicos políticos, como os literários, contribuem diariamente para a propagação da leitura, instruem e recriam as pessoas (…) e excitam a mocidade ao exercício das funções literárias. A língua portuguesa perdeu por intervenção deles uma parte da sua pureza vernácula (…), mas adquiriu maior elasticidade do que tinha antes. Eu creio que a cessação dos jornais em Portugal seria uma grande calamidade pública, porque ao Governo faltaria o meio mais fácil de conhecer a opinião geral, e aos governados o desafogo de pôr no papel as suas boas e más paixões, que teriam de manifestar-se por outros meios, mais perigosos. O jornal contribui para obstar às conspirações, como o duelo evita a (…) emboscada (…).
A crítica mais sarcástica, e talvez também a mais engraçada, aos jornais portugueses de oitocentos veio pela pena sempre corrosiva de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, logo no primeiro número de As Farpas, lançado em Maio de 1871[6]. É um excerto longo, mas que vale a pena ler por completo, já que levanta uma questão central: seriam os jornais políticos românticos portugueses assim tão diferentes uns dos outros?
Vejam a imprensa. A imprensa é composta de duas ordens de periódicos: os noticiosos e os políticos.
Os políticos têm todos a mesma política:
A – quer ordem, economia e moralidade.
B – queixa-se de que não há economia nem moralidade, o que ele receia muito que venha a prejudicar a ordem.
C – diz que a ordem se não pode manter por mais tempo, porque ele nota que principia a faltar a moralidade e a economia.
D – observa que no estado em que vê a economia e a moralidade, lhe parece poder asseverar que será mantida a ordem.
Os periódicos noticiosos têm todos a mesma notícia:
A – noticia que o seu assinante, colaborador e amigo X partiu para as Caldas da Rainha.
B – refere que o seu amigo, colaborador e assinante que partiu para as Caldas da Rainha é X.
C – narra que para as Caldas da Rainha partiu X, seu colaborador, assinante e amigo.
D – que se esqueceu de contar oportunamente o caso, traz ao outro dia: “Querem alguns dizer que partira para as Caldas da Rainha o nosso amigo, assinante e colaborador. Não demos fé.”
Se a imprensa é assim harmónica na exposição da doutrina, nem sempre o é na apreciação dos factos.
Assim, por exemplo, o ministério Fulano propõe em Cortes que – atentos os serviços da ostra – o Governo seja autorizado a declarar que se considera a ostra como um verdadeiro pai!
Então, os jornais Fulanistas exclamam:
O Governo acaba de se declarar pai da ostra. É uma medida de grande alcance! É uma garantia para a ordem, é um penhor solene de zelo pelos serviços públicos. Quando um Governo assim procede, pode dizer-se que ampara com mão segura o leme do Estado, e que caminha na senda do progresso.
Mas no imediato, por qualquer coisa, o Ministério Fulano cai. Sobe o Ministério Sicrano e logo em seguida propõe em Cortes: – que de ora em diante, atentas grandes vantagens para a causa pública, o Governo se declare para todos os efeitos, em relação à ostra, mais do que um pai, uma verdadeira mãe.
Dizem os mesmos jornais Fulanistas: “O Ministério é ominoso, que com mão tão incerta dirige o leme da causa pública, declarou-se mãe da ostra, É mostrar um profundo desprezo pela ordem e pela economia! Quando um Ministério assim pratica é que vai no caminho da anarquia e leva-nos ao abismo. Que se acautele! Ficamos de atalaia a esta questão.”
Também não é igualmente harmónico o processo para julgar as pessoas.
O Sr. Fulano é feito presidente de ministros: vai à Câmara.
Ao outro dia, dizem os jornais ministeriais: “O nobre presidente do Conselho tinha ontem à sua entrada na Câmara umas magníficas botas de pelica. Que admirável pelica! Só quando se tem como Sua Ex.ª um tão grande zelo pelo bem do País e uma tão grande experiência das coisas públicas, se pode encontrar uma tão boa pelica.
Os jornais moderados, em expectativa, de meia oposição, dizem: – Não somos aduladores do poder, dizemos-lhe em face a verdade: conhecemos a longa experiência, os altos dotes oratórios, do Sr. presidente do Conselho, mas apesar do seu tacto político, S. Ex.ª tinha apenas umas botas moderadas de vitela francesa.
Os jornais de oposição feroz exclamam: – Insensatos! Quereis lançar-nos no abismo das revoluções? Desafiais a cólera do Povo? Que vindes vós falar na experiência, nas virtudes cívicas do Sr. presidente do Conselho? É um sujeito ominoso. Não! As suas botas não são de vitela francesa, como quer a oposição hipócrita, nem de pelica fina, como quer uma maioria venal. As suas botas demonstraram que caminhamos para a anarquia: são de coiro de Salvaterra!.
Mais à frente, Eça e Ramalho, no mesmo número das Farpas (Maio de 1871), reforçam a ideia de que os jornais políticos seriam um tanto ou quanto insensatos e trabalhariam para a sua própria descredibilização, escrevendo o seguinte:
– E vós, jornais políticos, não confessais vós todos os dias a impotência dos vossos políticos? Não vos tendes dito uns aos outros os extremos insultos? Não vos tendes destruído uns aos outros? (...) Não é verdade que o Diário Popular tem dito dentro do sistema que o sr. Fontes é incapaz de organizar o país? É. – Não é verdade que a Revolução [de Setembro] tem provado à saciedade, dentro do sistema, que o sr. bispo de Viseu é incapaz de organizar o país? É. – Não é verdade que a Gazeta do Povo tem provado que ambos eles são incapazes? E não é verdade que a Revolução e o Diário Popular têm dito uniformemente que o incapaz é o Sr. Braamcamp? É. Por consequência, parece que estais inutilizados uns pelos outros. (As Farpas, n.º 1, Maio de 1871)
Por isso, os autores, ainda no mesmo número das Farpas, aconselham a imprensa política a deixar as discussões fúteis e fulanizadas para abordar os temas que verdadeiramente interessariam aos portugueses:
lembrem-se de que o que o País necessita é – força para o seu carácter, ciência para o seu espírito, justiça para sua consciência! Falai-lhe das questões económicas, do salário, do trabalho, da família, da sanção moral, da educação – e sobretudo da pacífica revolução agrária que deve transformar as condições da vida portuguesa. A política, deixai-a sempre ficar consigo mesma. (As Farpas, n.º 1, Maio de 1871).
A permanente agitação política e militar em que o país viveu ao longo da primeira metade do século XIX teve uma consequência: o interesse pela informação e pela opinião sobre o país recrudesceu. O Reino ocupava cada vez mais páginas nos jornais, enquanto o noticiário do estrangeiro se reduzia na mesma proporção (TENGARRINHA, 1989, p. 156). Porém, teve também uma consequência negativa, pois por variadas vezes se constrangeu a liberdade de imprensa no País, quer durante o miguelismo, quer durante o cabralismo e a posterior guerra civil da Patuleia. De facto, os períodos de 1828 a 1832 e de 1840 a 1851 foram negros para a liberdade de expressão e para o jornalismo português, suscitando, por vezes, reacções violentas. Por exemplo, logo em 1840, autor anónimo, num opúsculo relatando o Processo de Arresto na Tipografia Onde se Imprime “O Atleta” ou Alguns Monstruosos Atentados do Ministério Público Contra a Liberdade de Imprensa, escrevia o seguinte:
A liberdade de imprensa é o escolho em que os déspotas costumam naufragar, e por isso é que a guerra que estes lhe fazem é tão cruel! Um governo representativo sem liberdade de imprensa seria o mais despótico e tirano de todos os governos – as prevaricações e torpezas dos governantes ficariam em tal caso cobertas com o véu da obscuridade e assim poderiam eles caminhar desenfreados na estrada do crime, livres das censuras da imprensa, e a coberto dos tiros da opinião pública! (p. 4)
Registe-se, inclusivamente, que quando o perigo de imposição de novos constrangimentos ao jornalismo aumenta, intensificam-se as acções em defesa dessa liberdade. Foi o que aconteceu em 1850, ocasião em que se ergueram várias vozes contra os projectos de restrição da liberdade de imprensa acalentados pelo (segundo) Governo de Costa Cabral. No libelo A Imprensa e o Conde de Tomar, por exemplo, José Maria do Casal Ribeiro (1850), na linha do que António Rodrigues Sampaio fez nos jornais e pela sua acção, denuncia os processos contra a imprensa intentados por Costa Cabral e critica o projecto da futura “Lei das Rolhas”. Vaticina Casal Ribeiro (1850, p. 7-9) que, com essa lei, a imprensa livre iria acabar, pois destruiria as garantias dos réus, imporia a censura sob a forma de “prevenção administrativa”, aboliria “as garantias à livre comunicação dos escritos”, impediria críticas às acções dos governantes, dos titulares do poder judicial e dos funcionários públicos, possibilitaria a suspensão de jornais pela simples decisão de um ministro e obrigaria à apresentação de garantias pecuniárias insuportáveis para a fundação de jornais políticos.
Interessantemente, no mesmo opúsculo, José Maria do Casal Ribeiro defende que a liberdade de imprensa deve ser antidogmática, razão pela qual ataca, igualmente, uma cláusula da proposta de lei que impedia qualquer discussão sobre “o dogma político da legitimidade do chefe de Estado” (CASAL RIBEIRO, 1850, p. 13). Para ele, é necessário convencer com inteligência acerca das questões políticas, e não proibir a discussão.
Expondo, por outro lado, o seu ponto de vista doutrinário em matéria de liberdade de imprensa, o autor explica:
Há dois sistemas opostos em relação à comunicação dos pensamentos – o da censura e o da liberdade. O primeiro nega o direito; o segundo exige responsabilidade ao exercício dele. O primeiro previne e impede; o segundo pode castigar. O primeiro é estacionário e falso, conduz (...) ao obscurantismo; o segundo é amplo e progressista, o seu fim é a ilustração. No primeiro sistema, o escrito não tem garantia que lhe assegure a publicidade (...), o escritor tem a certeza de não ser punido; no segundo, o escrito é livre (...), o escritor responde perante a lei pelo uso que faz dessa liberdade. A Carta Constitucional adopta o segundo sistema, e rejeita completamente o primeiro. Nada porém mais absurdo, nada mais iníquo, nada mais despótico do que um misto dos dois sistemas. Embaraçar por todos os modos a publicação dos escritos, cercar a imprensa de peias e estorvos, impedir directa e arbitrariamente pela acção administrativa a comunicação do pensamento, e redobrar depois a responsabilidade do escritor, é revestir o poder de uma armadura impenetrável e, ao mesmo tempo, armá-lo com uma espada de dois gumes. (CASAL RIBEIRO, 1850, p. 23)
O jornalismo político seria, portanto, indispensável à democracia:
O jornal político é (...) o que mais pode prejudicar um governo imoral, assim como é o mais firme esteio de um governo justo. É a sentinela constante do poder, que lhe vigia os passos, que lhe segue os movimentos, que os discute diariamente, que o entrega à admiração ou ao desprezo, à estima ou ao ódio da opinião pública.” (CASAL RIBEIRO, 1850, p. 24)
Pelo que se infere das palavras de Casal Ribeiro, a liberdade de imprensa deveria ser entendida como uma liberdade não apenas antidogmática, mas também fundamental para o controlo dos poderes, para o controlo da licitude e legitimidade dos actos políticos, para combater a corrupção, expondo os prevaricadores, e para evitar que o uso do poder se convertesse em abuso. Ou seja, a meio do século XIX, trinta anos passados sobre a Revolução Liberal, já havia em Portugal plena consciência dos valores que norteiam a aceitação do princípio da liberdade de imprensa – valores esses também reconhecidos por António Rodrigues Sampaio.
Também Silva Ferrão (1850, p. 8), em O Uso e o Abuso da Imprensa, discute os novos constrangimentos à imprensa, em virtude da promulgação da “Lei das Rolhas”. Ele considera que “Na ordem política, a imprensa é para as Nações modernas o mais poderoso e talvez o único baluarte das liberdades pátrias.” E o autor recorda que ainda não havia governo que não tivesse tentado “escravizar” a imprensa. Defende, todavia, “a maior liberdade na comunicação das ideias, dos pensamentos (...) por meio da imprensa”. Escreve ele:
Não há (...) nação alguma (...) em que não exista um tribunal (...) da opinião pública. Se o povo é ignorante e corrompido, (...) desconhece (...) os seus (...) interesses e, pela omnipotência dos decretos, perpetua o mal e impede o bem. Mas se o povo se acha precavido contra o erro (...) será sempre justo e esclarecido (...). Mas de que maneira poderá esse tribunal ser instruído da instrução de uma lei, dos vícios de outra, dos erros da administração, do mal que o Governo tem feito ou que media fazer? Como poderá reunir-se nele o sufrágio universal a favor de uma medida útil? Como poderá ele conhecer os projectos de um ministério iníquo ou os abusos de autoridade de um magistrado? (...) Por nenhum outro meio (...) que pela liberdade de imprensa, que as leis devem (...) proteger (...). Assim o exigem (...) o interesse público [e] (...) a justiça. (SILVA FERRÃO, 1850: 10-11)
Para o referido autor, a liberdade de imprensa seria fundada no direito natural de cada membro da sociedade pensar e contribuir para o seu bem comum. Mas ele reconhece, porém, que há quem abuse dessa liberdade e que, pela imprensa, em vez de se ilustrar o povo e guiar a opinião pública, se podem propagar a subversão, a desunião e a maledicência (SILVA FERRÃO, 1850, p. 14-15). Ainda assim, diz que “a liberdade de tudo escrever será sempre mais vantajosa do que as falsas restrições”, pois “o que é bom, razoável e útil triunfará sempre” (SILVA FERRÃO, 1850, p. 17).
Mesmo depois da Regeneração, em 1851, vários governos – e paradoxalmente mesmo aqueles a que pertenceu o próprio António Rodrigues Sampaio, tido até então por um campeão das liberdades – perseguiram os jornais oposicionistas, embora recorrendo mais a constantes processos judiciários do que à promulgação de legislação restritiva da liberdade de imprensa (ver, nomeadamente, GOMES LEAL, 1881). Luz Soriano (1854, p. 47), por exemplo, revela, com ironia, que António Rodrigues Sampaio, visto por muita gente como “patriarca da liberdade”, ter-lhe-ia movido um processo judicial por abuso de liberdade de imprensa. E diz: “Eis aqui a verdade do encarniçamento com que ele, até hoje, advogava a mais ampla liberdade de escrever (...). Eis aqui o homem que pela prática das suas (...) acções nos vai dar (...) o desmentido de tudo sobre que tal assunto escrevera.” (LUZ SORIANO, 1854, p. 47)
De qualquer modo, talvez algumas pessoas estivessem cansadas da imoderação da imprensa política. Por exemplo, em 1859, Luciano de Castro deu à estampa uma Colecção da Legislação Reguladora da Liberdade de Imprensa na qual, como introdução relembra que apesar de o direito de pensar não merecer discussão, a comunicação dos pensamentos exige responsabilidade, “que põe balizas aos arrojados voos da razão desvairada ou deploravelmente desencaminhada” (LUCIANO DE CASTRO, 1859, p. 7). Por isso, o autor é crítico contra a falta de responsabilidade pessoal, que levava, muitas vezes, a abusar-se da liberdade de imprensa:
Muitas vezes, a paixão substitui a fria imparcialidade da razão esclarecida e a voz dos interesses políticos ou pessoais levanta-se sobre os ditames da verdade e da lógica dos factos. (...) Nem sempre a imprensa (...) tem em consideração os seus deveres de rigorosa imparcialidade na justa apreciação dos homens e das coisas, e (...) por vezes o amor imoderado a exaltadas convicções e a demasiada fé nas ideias (...) encaminham-na para (...) excessos (...). Daqui têm deduzido argumento contra ela os seus numerosos adversários (...). E foram logrando os seus intentos, porque (...) as leis repressivas da liberdade de imprensa (...) revestiram sucessivamente mais austeras feições (...). (LUCIANO DE CASTRO, 1859, p. 26-27)
Pior ainda, o público também estaria ressabiado contra os abusos de liberdade de imprensa:
Cansado o público de contemplar muitas vezes a razão casada à injustiça, a paixão no lugar da verdade, a mentira e a calúnia no lugar da rectidão do julgar, e da imparcialidade no descriminar a inocência e o crime, confunde no mesmo sentimento (...) os bons e os maus jornais (...). A indiferença geral pelo que se diz (...) na imprensa (...) é a (...) consequência desta situação. (LUCIANO DE CASTRO, 1859, p. 28)
Portanto, para Luciano de Castro, se a imprensa quisesse ter influência, teria de usar a sua força moderada e discretamente.
Foi, logo, com um jornalismo político e doutrinário, exacerbado e truculento, apaixonado e polémico, arrebatado e até insultuoso, que questionava permanentemente os limites da liberdade de imprensa, que Rodrigues Sampaio conviveu e foi nele que se habituou a ver um “verdadeiro” jornalismo – porque o outro, o jornalismo de notícias, reportagens e entrevistas, feito para informar e dar lucro mais do que para arregimentar e animar partidários de uma causa, só se afirmaria verdadeiramente no país a partir da fundação do Diário de Notícias, em 1864 (números de apresentação), apesar das infrutíferas tentativas anteriores de criação de jornais predominantemente noticiosos, caso do Jornal de Utilidade Pública (1841) e do Telégrafo (1845), cujo insucesso se poderá ter devido à incapacidade de fornecer notícias actuais, conforme sugere Tengarrinha (1989, p. 216). De facto, foi somente na Regeneração que se criaram ou estabilizaram as estruturas que permitiram o surgimento de uma imprensa industrial capaz de oferecer um produto mais centrado no relato de ocorrências do que na discussão de problemáticas, ainda que estas também nela pudessem ter lugar quando abordadas em nome do “bem comum”.
[1] Sampaio contactou amiúde com jornais estrangeiros, e usou-os, frequentemente, como fonte, conforme se provará ao longo deste trabalho. No entanto, não era uma pessoa viajada e não pôde observar as dinâmicas entre a imprensa e a população noutros países mais desenvolvidos. Tanto quanto se sabe, aliás, somente terá estado fora do país em 1867, ano em que rumou a Vichy, França, para fazer termalismo.
[2] Pelo menos até ao aparecimento do Diário de Notícias, em 1864 (números de apresentação)/1865 (publicação regular).
[3] Ainda que regulares, eram parcos. Segundo Tengarrinha (1989, p. 190), António Rodrigues Sampaio ganharia apenas 40 mil réis mensais como redactor principal do Revolução de Setembro no terceiro quartel de Oitocentos. Marques Gomes (1882, p. 61), um dos jornalistas portuenses que participaram no livro de homenagem a Sampaio editado colectivamente pela imprensa do Porto, afirma que ele recebia como colaborador do Revolução 19200 réis mensais, tendo passado a receber 60 mil quando passou a redactor. E diz, como de resto outros dos redactores do mesmo livro, que Sampaio morreu pobre num tempo em que fazer política enriquecia. (Aliás, será que o país mudou muito nessa matéria?)
[4] Vistas bem as coisas, na verdade talvez nada de relevante tenha mudado.
[5] Personagem de um romance inglês que retrata a sorte de um arrivista.
[6] Diga-se que n’As Farpas, Eça e Ramalho são pródigos a criticar com ironia a imprensa oitocentista portuguesa. No número de Outubro de 1871, por exemplo, revelam o seguinte: “Há um mês, (...) um telegrama do sr. visconde de S. Januário comunicou ao Governo a lívida notícia de uma sublevação em Goa (...). O telegrama (...) era como uma charada (...). Segundo a Revolução de Setembro, aquilo queria dizer vitória; segundo o Diário Popular, catástrofe. (...) Veio finalmente o correio trazendo resolvido o problema (...).