14.01 Sampaio: Introdução

António Rodrigues Sampaio: jornalista (e) político no Portugal oitocentista[1]

“Pregador era a maneira antiga de ser jornalista, como jornalista é a maneira moderna de ser pregador.”

Sampaio Bruno, 1908

Jorge Pedro Sousa

Universidade Fernando Pessoa e Centro de Investigação Media e Jornalismo

Sandra Tuna

Universidade Fernando Pessoa e Centro de Estudos Culturais, da Linguagem e do Comportamento

Patrícia Teixeira

Universidade Fernando Pessoa

Liliana Mesquita Machado

Universidade Fernando Pessoa

Maria Érica Lima

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Resumo

António Rodrigues Sampaio foi um dos principais expoentes do jornalismo doutrinário e da política portuguesa no século XIX, podendo ser considerado o político jornalista, ou o jornalista político, de maior sucesso nessa época, até porque, embora por curto tempo, chegou a chefe do Governo. Este trabalho, sustentado em pesquisa bibliográfica, hemerográfica e documental e numa análise instrumental do discurso, procura: (1) reconstruir e interpretar a sua história de vida, centrando-a no exercício do jornalismo; (2) avaliar a influência que exerceu no seu tempo através do jornalismo; (3) determinar qual o seu pensamento sobre o jornalismo; e (4) apresentar os principais jornais que dirigiu – A Revolução de Setembro e O Espectro, este último um jornal clandestino do tempo da Patuleia redigido integralmente por si. Concluiu-se que a sua frase “antes quero uma imprensa anárquica do que uma imprensa perseguida” ilustra bem o seu pensamento e cola-se à parte da sua vida em que, como publicista e panfletário, combateu pela mais ampla liberdade de imprensa e por um liberalismo de esquerda, causas às quais sacrificou a própria liberdade. Contraditoriamente, chegado ao Parlamento e, depois, ao Governo, tornou-se num paradigma do pragmatismo e da defesa dos progressos materiais do país em detrimento da ideologia e intentou vários processos judiciais contra jornalistas, paradoxalmente por abuso de liberdade de imprensa. Inclusivamente, atingindo a chefia do Governo, promulgou portarias polémicas visando a sonegação de informações à imprensa. Uma delas impedia que fossem dadas aos jornalistas informações sobre a concessão de honrarias pelo Rei, sob proposta do Governo; outra, restringia o acesso dos jornalistas às informações policiais, roubando a acção policial ao escrutínio público. Em acréscimo, pela prosa de Sampaio percebe-se que muitos dos problemas do Portugal de oitocentos são os de hoje: situação periférica do país em relação à Europa; instabilidade governativa; défice orçamental; dívida externa; atraso industrial e infra-estrutural; instabilidade nas políticas da educação; justiça disfuncional; etc.

Palavras-chave: António Rodrigues Sampaio; Portugal; século XIX; jornalistas; jornalismo; jornalismo político; política; A Revolução de Setembro; O Espectro; O Eco de Santarém; A Vedeta da Liberdade.

Introdução

Quando o biografado neste texto, António Rodrigues Sampaio, nasceu, em 1806, em São Bartolomeu do Mar, Esposende, poucos eram os jornais existentes em Portugal e os que circulavam tinham um cunho circunspecto ou mesmo oficioso, caso da Gazeta de Lisboa. Só com a Revolução Liberal de 1820 Portugal viu surgir no seu território o jornalismo doutrinário, acutilante e frequentemente descomedido, dominante durante todo o período em que Rodrigues Sampaio viveu. Era o tempo do Romantismo:

(...) a presença do novo público e as novas relações entre o escritor e o público acabam por criar o estilo, os géneros e o sentido estético que caracterizam o Romantismo em relação ao Classicismo.

As grandes camadas burguesas crentes na capacidade de criar riqueza e de providenciar o destino individual encontram-se então numa fase de combatividade ideológica, animadas de uma confiança na natureza e no futuro da livre concorrência individual no jogo económico. Acreditam na eficácia da razão, e procuram fora da Igreja uma direcção espiritual. É uma grande massa que pede ao escritor, acima de tudo, ideias e sentimentos orientadores e que animem certos novos valores. O escritor encontra assim (...) oportunidades sem precedentes para se fazer ouvir, para espalhar sementeiras doutrinárias ou para provocar correntes emocionais de simpatia, até então só acessíveis aos pregadores religiosos.

Por outro lado, o público do Romantismo não tem uma grande preparação (...). Ignora as convenções e os padrões da literatura clássica (mitologia, história antiga, tópicos e figuras da tradição retórica, regras dos géneros, etc.). Não compreende os valores literários clássicos. Aprecia mais a emoção do que a subtileza; gosta da expressão concreta imediatamente acessível das imagens e símbolos que dão corpo bem sensível ao pensamento. Está enraizado em vivências locais e regionais: a terra, a rua, a paisagem local, o lar burguês, os objectos familiares (...). Tem uma noção mais sensorial do que os literatos de salão do mundo ambiente, o que o leva a apreciar o realismo descritivo. A sua própria impreparação estética torna-o sugestionável (...) pela simples intensidade e diversidade das impressões. Daqui resultam algumas das características mais geralmente apontadas ao Romantismo: estilo declamatório, por vezes redundante e um tanto vago, em que a abundância prejudica a concisão e o rigor; o gosto pelas hipérboles e pelas exclamações que dão forma tribunícia ao pensamento; o gosto das imagens, que o concretizam e popularizam; o uso de um vocabulário mais rico em alusões concretas, menos selecto, mais correntio, mais familiar e mais sensorial, a introdução de dados captados no ambiente; o recurso (...) a certos ingredientes fáceis e de quilate duvidoso, mas de resultados garantidos (exotismo, fantasmagoria...) (...); o tom e mensagem ao próximo que assume a obra (...), convertida em meio de comunicação e já não expressão de um mundo fechado de valores. (SARAIVA e LOPES, 1979, p. 713-714)

Nesses tempos, em Portugal, fazer política e fazer jornalismo fundiam-se com frequência. Os jornais, como relembrava o escritor Fialho de Almeida (2009), em 1889, eram, frequentemente, um mero trampolim para mais altos voos. Nelson Traquina (2004, p 28) aclara:

Escrever nos jornais era visto como um passo normal na carreira política (...) e um meio aceite para atingir um cargo político. Na ausência de uma imprensa de massas, o jornalismo era mais visto como um primeiro passo para outras carreiras e não uma profissão de direito próprio.

António Rodrigues Sampaio foi mestre nessa arte de fazer do jornal uma tribuna para o orador político. Idêntico juízo fazem António José Saraiva e Óscar Lopes (1979, p. 724): “Na oratória e no jornalismo, e em posição mais radical, os homens representativos seriam José Estêvão e Rodrigues Sampaio.”

Liberal de esquerda, maçom, revolucionário e quiçá republicano nos seus tempos de juventude, extremamente corajoso, Sampaio defrontou a censura, enfrentou a prisão, travou duelos e viveu na clandestinidade para defender as suas convicções e o seu direito à palavra, o seu direito à comunicação dos seus pensamentos através da imprensa. Rever-se-ia, certamente, na imagem que António José Saraiva e Óscar Lopes (1979, p. 715) atribuem a Zola, Vítor Hugo e outros: “semeadores de ideias, medem o valor da palavra pelo poder comunicativo, apreciam os grandes efeitos, têm consciência de desempenhar uma autoridade espiritual, estão animados de confiança no progresso.” Os mesmos autores acrescentam:

Entre os profissionais de jornalismo celebrizou-se António Rodrigues Sampaio (...). Colaborador desde 1826 da imprensa liberal (...), aderiu à situação setembrista e em 1840 entrou para a redacção d’A Revolução de Setembro, jornal fundado por José Estêvão para combater o domínio político crescente da alta finança, que arvorava o ideal de restauro da Carta e tinha o apoio da Rainha. Quando a restauração cartista se verifica, em 1842, José Estêvão entra directamente nas lides parlamentares e conspirativas, deixando a Rodrigues Sampaio a missão de dirigir na imprensa a árdua luta contra a ditadura cabralista. (...) A vibração indignada dos seus artigos (...) é, com a oratória de José Estêvão, o melhor testemunho de toda essa (...) luta; e, pela crítica desassombrada da Rainha e das intrigas palacianas, abriu caminho à posterior propaganda republicana. A massa enorme do seu articulismo de quase meio século de jornalista (...) [permite] ajuizar melhor da admiração, hoje esquecida, de que foi alvo. (SARAIVA e LOPES, 1979, p. 811)

Rodrigues Sampaio ficou conhecido pela alcunha O Sampaio da Revolução, pois o seu nome ficou indissoluvelmente ligado ao Revolução de Setembro, o jornal de que foi redactor principal[2] e à frente do qual travou a maioria das suas batalhas, tornando-o o principal periódico do Reino. Confirma-o o título que Teixeira de Vasconcelos deu, logo em 1859, à sua biografia de Sampaio – O Sampaio da Revolução de Setembro, reforçada pelo que diz no corpo do mesmo livro:

Um dos jornalistas portugueses que mais exclusivamente tem vivido para a imprensa periódica desde 1834, que por ela adquiriu um nome insigne em Portugal e fora do Reino, e que mais atribulado foi nas perseguições feitas à imprensa, é inquestionavelmente António Rodrigues Sampaio, geralmente conhecido pelo nome Sampaio da Revolução de Setembro (TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859, p. 30-31)

Inicialmente desbragado, Rodrigues Sampaio terá mesmo insultado a Chefe de Estado, a Rainha D. Maria II, a quem, segundo Gomes Leal (1881, p. 29), terá chamado “grande prostituta”. Mas, entrado no período da Regeneração, acabou por moderar-se, quer no posicionamento político, quer na acutilância verbal, a ponto de os seus antigos correligionários o apelidarem de traidor, ao mesmo tempo que os seus adversários conservadores lhe relembravam, criticamente, o seu período revolucionário e os seus apoiantes o aplaudiam.

Abraçando, efectivamente, a causa da Regeneração, que por algum tempo pôs fim à instabilidade política e militar em favor de programas governativos destinados a promover o progresso material do país, António Rodrigues Sampaio iniciou, em 1851, uma carreira parlamentar intermitente que, a par da jornalística, o guindou a membro do Tribunal de Contas, presidente da Câmara dos Deputados e, já plenamente reconciliado com a Família Real, a ministro do Reino. Em 1881, alcançou a presidência do Ministério (equivalente ao cargo de primeiro-ministro), ponto culminante da sua vida cívica. É possível dizer-se, assim, que Rodrigues Sampaio terá sido o “político de jornal” que maior êxito teve em Portugal, entre 1835 e 1882.

Em acréscimo, tese que se sustentará ao longo deste trabalho, pode mesmo considerar-se que, pelos cânones da sua época, António Rodrigues Sampaio foi um jornalista, ou pelo menos um profissional do jornalismo, não no sentido que actualmente lhe é dado pela sociologia contemporânea das profissões, tal como foi dissecado, por exemplo, nas obras de Nelson Traquina (2004) ou de Rosa Maria Sobreira (2003), mas sim no sentido explorado por María Cruz Seoane e María Dolores Saiz (2007, p. 23) – era alguém que ganhava a vida a escrever para jornais. Na realidade, enquanto não se tornou parlamentar e ministro, Rodrigues Sampaio ganhou a vida vivendo exclusivamente da escrita e direcção de periódicos políticos. Para ele, e no enquadramento tecido pelas autoras anteriormente citadas, o exercício do jornalismo não foi, verdadeiramente, mera ocupação, mas sim uma profissão.

A proeminência que Sampaio alcançou entre os seus contemporâneos, o sucesso que teve no tempo em que viveu, dá legitimidade à colocação de algumas questões. Quem foi ele? Como obteve sucesso? Como se envolveu no jornalismo? Que papel teve nos jornais em que interveio e como actuava? Qual a influência que exerceu no seu tempo? Através dos seus escritos na imprensa, é possível intuir qual o seu pensamento sobre o jornalismo e sobre a actualidade do seu tempo?

Neste trabalho, metodologicamente assente em pesquisa bibliográfica, documental e hemerográfica em bibliotecas, arquivos e hemerotecas, bem como na leitura e análise do discurso[3] quantitativa e qualitativa dos jornais que liderou, procurar-se-á apresentar a vida de António Rodrigues Sampaio, centrando-a, no entanto, na sua actividade jornalística, apesar desta ser indissociável da sua actividade política, e tentar-se-á responder às questões acima levantadas. Visou-se perceber como Sampaio plasmou a sua mundividência no seu discurso jornalístico, que também era um discurso político, incorporando-a no universo simbólico da sociedade portuguesa oitocentista ou, pelo menos, no universo simbólico das elites politizadas da época.

Para essa tarefa, ganharam particular interesse os trabalhos biográficos daqueles que com Sampaio conviveram de perto, em particular os textos de Teixeira de Vasconcelos (1858; 1859) e de Pedro Venceslau de Brito Aranha (1907), fontes principais para a construção da sua biografia, porque se constata que foram eles que deram o tom às reconstituições biográficas posteriores da vida do referido político jornalista, self-made man notável do seu tempo, e aduziram os factos que são multiplicadamente referidos nas suas biografias posteriores. Havendo bastante bibliografia sobre a vida de António Rodrigues Sampaio (por exemplo, NEIVA SOARES, 1982, 2006; 2007; SÁ, 1984), incluindo várias obras dos seus contemporâneos (TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859; FIGUEIRA, 1882; BRITO ARANHA, 1907; VELOSO, 1910), não foi, assim, tarefa complicada reconstruir, em traços gerais, a vida desse sujeito maior da história portuguesa do século XIX – centrando-a, para o caso, nas questões do exercício do jornalismo.

Consultaram-se, também, os jornais Revolução de Setembro (principalmente a partir de 20 de Setembro de 1851, data do primeiro artigo assinado de Sampaio[4], até 1882, ano da morte do jornalista), O Eco de Santarém e O Espectro, redigidos integralmente por Sampaio, pois foi neles que ele concretizou mais intensamente a sua acção jornalística e o seu pensamento. Do Espectro, usou-se a edição integral de 1880, disponível on-line na Hemeroteca Digital de Lisboa. Porém, essa edição não é totalmente conforme à original e, em alguns números, até apresenta diferenças significativas, conforme se constatou ao compará-la com a edição original (disponível na secção de Reservados da Biblioteca Nacional) e com a edição disponibilizada pela Google Books, que, às vezes, também foi usada, embora menos, por causa da fraca qualidade da impressão de muitos números (hipoteticamente, consequência das vicissitudes que rodearam a impressão do jornal ou por deficiências da própria digitalização).

A análise do discurso, método que, conforme explica Sousa (2006, p. 343), procura “desvelar a substância de um discurso no mar de palavras” que este possa possuir, incidiu sobre (1) os artigos assinados por Sampaio no jornal A Revolução de Setembro, sobre (2) textos não assinados[5] nos quais se reconhece – ou parece reconhecer – o discurso do autor (principalmente sobre os artigos de fundo do Revolução de Setembro, já que seria este o espaço apropriadamente reservado para o redactor principal do periódico), (3) sobre matérias às quais Neiva Soares (1982) atribui a autoria a António Rodrigues Sampaio, ainda que também não sejam assinadas, e (4) sobre a totalidade do Eco de Santarém e do Espectro, já que foram jornais escritos por este jornalista. Para a sua concretização, fez-se uma leitura flutuante, embora sistemática, dos jornais referidos; leram-se os textos considerados relevantes e deles recolheram-se os excertos que, tendo em atenção o contexto discursivo, mais contribuíram para dar resposta às questões atrás equacionadas e para ilustrar as constatações que se fizeram sobre a forma e o sentido dos próprios textos.

Assim sendo, embora sistemática, a análise do discurso efectuada centrou-se nos exemplos que permitiram perceber, em termos formais, a forma como António Rodrigues Sampaio construía os seus textos e, em termos de conteúdo, qual era o seu pensamento jornalístico – ou seja, como é que ele encarava o jornalismo e os jornalistas – e qual era o seu posicionamento sobre os acontecimentos e problemáticas do seu tempo. A perspectiva não é histórica, mas comunicacional e até especificamente jornalística. Embora os resultados possam contribuir para lançar luz sobre a história do século XIX em Portugal, o objectivo é o de olhar para Sampaio como produtor de um discurso jornalístico (embora também com valor político) sobre as realidades do seu tempo, atentando, fundamentalmente, nas temáticas que ele abordava, na forma como o fazia e nas fontes que usava.

Espere-se, portanto, uma análise do discurso instrumental, subordinada ao propósito de reconstrução da vida jornalística e da acção jornalística de Sampaio. Procurou relevar-se o sujeito histórico por trás do discurso, isto é, o sujeito histórico autor de discurso, e tornar mais nítida a maneira como (inter)agiu no palco social da época. Essa instrumentalidade da análise conferiu-lhe, necessariamente, um pendor mais culturológico do que crítico, traduzido mais pela tentativa de clarificação dos pontos de vista (ou seja, dos “enquadramentos” – ou frames) expressos nos textos de António Rodrigues Sampaio e dos valores que neles se impregnam do que pelo desvelamento de hipotéticas relações de poder e domínio que se pudessem plasmar simbolicamente nos mesmos. De qualquer modo, seguiu-se, em geral, a orientação proposta por Sousa (2004; 2006, p. 343-374) para uma análise do discurso global, quantitativa e qualitativa, de matriz essencialmente culturológica. Assim, fez-se uma análise do discurso pouco preocupada com o confinamento a uma linha teórica e mais centrada no aproveitamento operacional e, quando necessário (como é o caso), instrumental, daquilo que os vários posicionamentos teóricos sobre este método pudessem dar à investigação dos fenómenos comunicativos objectos do presente estudo.

Tentou-se, conjunturalmente, explicar o que o jornalismo português foi no século XIX, para depois se apurar qual a acção que sobre ele exerceu António Rodrigues Sampaio, na convicção de que o estudo da dimensão histórica do jornalismo e das suas figuras históricas chave auxilia a compreender a trajectória desta estratégia de comunicação em sociedade até ao momento presente. Várias obras contribuem para lançar luz sobre esse período. É o caso, nomeadamente, da História da Imprensa Periódica Portuguesa, de Tengarrinha (1989), e do livro Elementos para a História da Imprensa Periódica Portuguesa, de Alfredo da Cunha (1941) – que incide, todavia, apenas no período até 1820. Biografias de “jornalistas” da época, como a de Alexandre Herculano, elaborada por Jacinto Baptista (1977), ou os trabalhos biográficos sobre publicistas oitocentistas realizados pelos seus contemporâneos, como os de Sampaio Bruno (1906) e de Brito Aranha (1907), são, também, particularmente relevantes para o desvelamento do ecossistema jornalístico e político português da época de Rodrigues Sampaio[6].

Igualmente importantes para aclarar o “ambiente político-jornalístico” oitocentista são as monografias sobre determinados jornais ou tipos de imprensa, como sejam as obras de Fernando Egídio Reis (2005) sobre o Jornal Enciclopédico Dedicado à Rainha; de João Pedro Rosa Ferreira (1992) sobre o Jornalismo na Emigração, trabalho que se debruça sobre O Correio Brasiliense; de António do Carmo Reis (1999) sobre A Imprensa do Porto Romântico (1836-1850); de Luís Bigotte Chorão (2002) sobre O Periodismo Jurídico Português do Século XIX; de José Augusto dos Santos Alves (2005) sobre Ideologia e Política na Imprensa do Exílio – “O Português” (1814-1826) e Nas Origens do Periodismo Moderno – Cartas a Orestes (SANTOS ALVES, 2009). Histórias da literatura, como a de António José Saraiva e Óscar Lopes (1979) ou a dirigida por Forjaz de Sampaio (1929-1942), contribuem, igualmente, para explicar o estilo “jornalístico” oitocentista.

No caso concreto de António Rodrigues Sampaio, adquire particular relevância entendê-lo, como o fazem os seus biógrafos (TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859; FIGUEIRA, 1882; BRITO ARANHA, 1907; VELOSO, 1910; TENGARRINHA, 1963; SÁ, 1984; NEIVA SOARES, 2006), enquanto político de jornal, escritor persuasivo solitário – apesar de unido ideologicamente aos seus correligionários políticos. De facto, António Rodrigues Sampaio, conforme transparece deste trabalho, não se enquadra no actual imaginário jornalístico, marcado pela socialização dos jornalistas nas redacções. Consequentemente, para explicar a sua vida jornalística e as acções que empreendeu, é importante compreender a conjuntura oitocentista portuguesa, sobretudo no que respeita ao jornalismo e à política. Principalmente, é importante entender, como o faz Rui Ramos (2010), como após a Revolução de 1820 (apesar do interregno miguelista), e especialmente após a Regeneração (1851), se foi construindo, em Portugal, uma república com Rei, de que a queda da Monarquia, a 5 de Outubro de 1910, constituiu apenas o culminar do divórcio entre a Dinastia de Bragança e a direita liberal, desiludida pelas cedências feitas à esquerda pelos últimos monarcas portugueses:

A República é incompreensível sem a revolução liberal de 1834 e a republicanização da monarquia. Os liberais reduziram a monarquia a uma “república com um rei”, hostil à antiga nobreza e ao “ultramontanismo”. Depois da Regeneração de 1851, a esquerda radical ficou incorporada no regime. Por isso, os republicanos puderam ter empregos do Estado, publicar jornais, manifestar-se, ganhar eleições. (...) O 5 de Outubro não foi o resultado da falta de liberdade, política ou religiosa, mas do impasse a que chegara a governação liberal. (...) Os conspiradores republicanos avançaram contra um governo de esquerda desanimado e inseguro, contra o qual a direita também preparava um golpe. (RAMOS, 2010, p. 37)

É nossa convicção de que foi essa republicanização da Monarquia após a queda do absolutismo miguelista que permitiu a Rodrigues Sampaio, homem da esquerda liberal, integrar-se perfeitamente no regime após a Regeneração de 1851.

É de advertir, contudo, que aqui não se faz uma problematização do estatuto epistemológico da história nem das categorias que no trabalho são utilizadas. A opção talvez não seja a mais lícita para um historiador, mas será, pelo menos, aceitável para um estudo que, embora histórico, é assumidamente de natureza comunicacional e até, mais concretamente, um estudo jornalístico, inserindo-se num campo teoricamente sustentado e consolidado por quase quatro séculos de pesquisa e reflexão (SOUSA, 2008a) – o do Jornalismo. Contudo, embora controversamente, pode dizer-se que se opta por uma abordagem associável à da “velha história”, que perspectiva como sendo papel do historiador recuperar, ordenar e relacionar factos históricos provados e documentados, “averiguar por que é que ocorreu aquilo que ocorreu no contexto das múltiplas e variadas coisas que poderiam ter ocorrido” (BONIFÁCIO, 1993a, p. 624-625). Neste sentido, a interpretação da história pode ser uma versão do que sucedeu, “uma opinião fundamentada sobre o mundo”, que não dispensa a imaginação, mas não é uma mera ficção, nem arbitrariedade, nem “subjectividade à solta”, até porque “alguma objectividade” é possível, sem o que essa mesma história não poderia ser comunicada (BONIFÁCIO, 1993a, p. 629-630).

O renascimento da narrativa trará consigo o renascimento da história, não como ciência social, mas como disciplina literária. Como tal, a história reabilitará o seu terreno de pesquisa tradicional: a política, as grandes figuras, as instituições, a história do pensamento e das ideias, a diplomacia e as relações internacionais, a história militar e constitucional. (...) A história (...) é (...) uma disciplina literária, mas de um género literário específico, com regras próprias e rigorosas (...). Contrariamente à ficção, os factos estão sujeitos a verificação documental e (...) [a história] tem de respeitar regras de inferência conformes à lógica aceite pelo senso comum e tem de satisfazer os requisitos de coerência exigidos pela lógica. (BONIFÁCIO, 1993a, p. 628-629)

Esta ideia vai, igualmente, ao encontro das preocupações de Marialva Barbosa (2008, p. 129), que também vê na história uma interpretação plausível de processos históricos singulares do passado, “um artefacto literário” na qual “o passado é um construto do presente” que depende das perguntas que o historiador lança sobre ele[7].

Assim, um sujeito histórico com o calibre de António Rodrigues Sampaio não será visto unicamente como o fruto de uma estrutura nem será apresentado à luz exclusiva das ciências sociais. Antes será apresentado como um sujeito que, através do livre exercício da sua vontade, agiu sobre o meio e transformou-o, na linha do que defende Maria de Fátima Bonifácio (1993a), para quem, nos estudos históricos, se deve recuperar a tradição literária, embora documentalmente provada, da história, e buscar-se a “empatia” com os sujeitos históricos:

explicar (note-se que não digo “descodificar”) o comportamento de um sujeito (note-se que não digo “prática” nem “actor”) , isto é, explicar o comportamento de alguém que sente, pensa, decide e actua, exige (...) compreensão e empatia (...). Mas o certo é que explicar a partir da “compreensão empática” pressupõe a capacidade de “vivermos” a subjectividade dos outros, de vibrarmos com as suas ambições, de nos infectarmos com as suas invejas, de partilharmos as suas vinganças, de nos emocionarmos com as suas paixões. (BONIFÁCIO, 1993a, p. 627-628)

Procurar-se-á, portanto, neste trabalho, construir uma moldura histórica que permita a compreensão do jornalismo e do ambiente político português oitocentista enquanto fenómenos culturais e não enquanto peças de museu, para, a partir daqui, com base nos registos documentais encontrados, mas também com a imaginação, enquadramento e interpretação possíveis, se construir uma versão informada da vida jornalística de António Rodrigues Sampaio e do seu pensamento jornalístico. Apesar desta faceta da sua vida ser indissociável da sua actividade política, privilegiar-se-á o entendimento que esse sujeito histórico teve do jornalismo, da liberdade de imprensa e do mundo do seu tempo.

[1] Pesquisa apoiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e com co-financiamento da União Europeia através do QREN, programa COMPETE, fundos FEDER. Projecto PTDC / CCI-JOR/100266/2008 e FCOMP-010124-FEDER-009078.

[2] Nominalmente, António Rodrigues Sampaio surge como responsável pelo jornal A Revolução de Setembro entre 5 de Outubro de 1850 e 14 de Janeiro de 1860. Aliás, tanto quanto foi possível perceber pela análise ao jornal, a acção jornalística de Sampaio decai consideravelmente a partir de meados da década de 60, coincidindo com a sua maior envolvência na política.

[3] A grafia de alguns dos excertos de texto aqui citados foi adaptada ao português actual.

[4] Os editoriais começam a ser assinados com regularidade somente a partir de 26 de Setembro de 1851. No entanto, a 20 e 24 de Setembro são publicados textos assinados por António Rodrigues Sampaio no jornal A Revolução de Setembro. O primeiro deles era um editorial; o segundo uma espécie de carta resposta.

[5] Obviamente, não é possível oferecer a garantia de que todos os textos não assinados recolhidos para exemplo no decurso deste trabalho sejam da autoria de António Rodrigues Sampaio. Com elevado grau de probabilidade – atendendo ao espaço onde foram publicados e ao estilo – parecem sê-lo e provavelmente são, pelo que se assume, no decorrer do trabalho, que o são de facto. Se o procedimento não fosse este, um largo período da vida jornalística de Sampaio não poderia ser ilustrado com textos. De qualquer modo, deve registar-se que mesmo a partir de 1851, ano do primeiro artigo assinado por Sampaio, o Revolução de Setembro não manteve uma política constante de identificação dos autores dos textos. Por vezes, eram assinados; mas depois havia interrupções nessa política, sem motivo aparente, e podiam passar-se vários meses até que os textos voltassem a ser assinados.

[6] Noutros países da Europa, também há várias obras “de época” que auxiliam à compreensão do que era o jornalismo continental no tempo de António Rodrigues Sampaio. Particularmente interessante é a Monografia da Imprensa Parisiense, de Honoré de Balzac (2009), datada de 1843. Nela, o famoso escritor ataca demolidora mas comicamente o jornalismo francês da sua época, distinguindo entre duas grandes tipologias de redactores de jornais: os publicistas, “escrevinhadores que fazem política” (que se enquadrariam nas seguintes categorias: jornalistas, jornalistas-homens de estado, panfletários, vulgarizadores, falsos publicistas, escritores monobiblo, tradutores, autores de convicções – com vários subtipos em cada uma das categorias); e os críticos, “autores incapazes especialistas na literatura dos outros” (cujas categorias seriam as seguintes: críticos de linhagem antiga, jovens críticos arrivistas, grandes críticos, folhetinistas e pequenos jornalistas – categorias que também admitem vários subtipos). Balzac, que não tinha grande opinião sobre os redactores de periódicos, brinda os leitores com axiomas como “para o jornalista, tudo o que é provável, é verdadeiro”. E conclui, criticando a incipiente mediatização do mundo, que o jornalismo não era mais do que um “alegado sacerdócio” que “submeteu às suas leis a justiça, aterrorizou o legislador (...), submeteu a realeza, a indústria privada, a família e todos os interesses, enfim, converteu a França numa aldeia em que é mais importante o que dirão [os jornalistas] do que os interesses do país. O número de levitas desta moderna divindade não excede um milhar. O mais insignificante entre eles é um homem sábio, apesar da sua mediocridade, que sempre é relativa. E para que nada falte à imprensa, tão singular, nela encontramos duas mulheres e dois padres (...). O que se passa com os assinantes ainda é mais inexplicável. Os subscritores de jornais vêem como os seus periódicos mudam de inimigos, destilando amabilidades para com os políticos contra os quais antes abriam fogo todos os dias, elogiando hoje o que até ontem depreciavam, aliando-se como colegas aos que golpeavam na véspera (...), defendendo teses absurdas, e continuam a lê-los e a subscreverem-nos com uma intrépida abnegação jamais vista entre as pessoas. A imprensa, como a mulher, é admirável e sublime quando conta uma mentira, não nos deixa ir embora até que nos força a crer nela, e emprega nesta luta as suas melhores qualidades, a ponto de que o público, tão tonto como o marido, sempre sucumbe.”

[7] A autora, porém, enfatiza a dimensão fictícia do relato histórico e a predominância da interpretação e da análise sobre os próprios factos históricos, que para Marialva Barbosa (2008, p. 129) não são dados objectivos nem descobertas. Esta visão de Barbosa não será a assumida neste trabalho. Nele não se recusa a ideia de facto – incluindo os registos documentais – como dados objectivos que servem de prova histórica, nem se recusa a ideia de que, apesar dos discursos históricos serem versões interpretadas e opinativas do que aconteceu, neles alguma objectividade – entendida como predominância do objecto de conhecimento sobre os diferentes sujeitos que conhecem – é possível.