Para uma historiografia da historiografia portuguesa do jornalismo
Para uma historiografia da historiogafia portuguesa do jornalismo: livro pioneiros sobre a história do jornalismo publicados por autores portugueses em Portugal até a Revolução de Abril de 1974
Jorge Pedro Sousa
Universidade Fernando Pessoa e Centro de Investigação Media e Jornalismo
» Trabalho integral ou parcialmente publicado em:
Revista de Estudos em Comunicação, vol. 10, n.º 22.
http://www2.pucpr.br/reol/index.php/COMUNICACAO?dd1=3580&dd99=view
» Trabalho apresentado em:
VI Encontro Nacional de História da Mídia
Resumo
Este trabalho, baseado em pesquisa bibliográfica e em análise documental descritiva, apresenta, sinteticamente, as obras pioneiras dedicadas à história do jornalismo publicadas em Portugal por autores portugueses até à Revolução de 25 de Abril de 1974. Foi objectivo do autor resgatar para a memória colectiva obras ensombradas pela marcha do tempo, dando conta, simultaneamente, dos assuntos nelas abordados e das suas eventuais peculiaridades discursivas. Mostra-se que as histórias do jornalismo em Portugal, começadas a publicar, como noutros países, no século XIX e princípios do século XX, se dividiram por várias categorias, nomeadamente: histórias biográficas (26%); histórias do jornalismo regional e local (18%); histórias do jornalismo português (15%); e histórias do jornalismo colonial (13%). Conclui-se, face a esses dados, que os historiadores portugueses do jornalismo elegeram por objecto de estudo as personagens ou os objectos que lhes estavam próximos e eram acessíveis. O autor considera que entre as obras mais relevantes, duas delas merecem particular atenção: Elementos para a História da Imprensa Periódica Portuguesa, de Alfredo da Cunha (1941), obra assinalável pelo seu pioneirismo e por avançar com dados factuais amplamente citados, por vezes ocultando a origem, em obras posteriores; e História da Imprensa Periódica Portuguesa, de José Manuel Tengarrinha (1965, reeditada em 1989), obra que ainda hoje é a mais representativa da historiografia portuguesa sobre jornalismo, sendo uma das que representa, em Portugal, o abandono das teses da historiografia positivista nascidas no século XIX em favor de uma concepção mais complexa e multidimensional da História.
Palavras-chave: História do Jornalismo; Portugal; historiografia.
Introdução
Os historiadores cedo compreenderam que os jornais e, mais tarde, outros meios de comunicação jornalística, são também documentos históricos, fontes para a edificação da história, capazes de “mostrar a realidade” ou, pelo menos, uma realidade, com elevada capacidade de indicidade ou até de iconicidade. O jornalismo é, na verdade, uma memória discursiva dos acontecimentos e problemáticas a que, em cada contexto particular, uma sociedade deu importância. Aliás, a relação entre jornalismo e historiografia é próxima, algo em que reparou, desde logo, o primeiro doutor em Jornalismo no mundo, Tobias Peucer (1690). Na sua tese pioneira, o nosso primeiro doutor deu abundantes conselhos sobre a retórica da escrita da história, fazendo, nomeadamente, recomendações sobre concisão, precisão, factualidade, verdade, clareza, rigor, crítica às fontes e outras. Ao reflectirem sobre o seu próprio ofício, os historiógrafos influenciaram decisivamente o estilo jornalístico e os próprios valores culturais dos jornalistas enquanto classe profissional. Aliás, para Peucer fazer jornalismo era uma forma de fazer história. Se os “gazeteiros” de então faziam aquilo que ele designava por uma história “desordenada”, a proposta teórica de Peucer era a de que passassem a fazer uma história ordenada, ou seja, num certo sentido, que se transformassem em verdadeiros historiadores.
No século XIX, alguns historiadores deram conta de que os jornais, para além de serem relevantes documentos históricos, são, também, dispositivos sociais de relevo. Os historiadores oitocentistas não puderam, de facto, deixar de notar, no seu tempo, o impacto que os jornais tinham, particularmente a partir do momento em que os periódicos populares começaram a tirar milhares ou mesmo milhões de exemplares. Surgiram, assim, as primeiras histórias do jornalismo. Pode dizer-se, em concomitância, que a história do jornalismo, em particular a história da imprensa, é uma das disciplinas fundadoras dos Estudos Jornalísticos ou, se quisermos, do Jornalismo como campo científico, que se estrutura no século XIX, a partir da emergência das ciências sociais e das primeiras teorias que olharam para a imprensa como instituição social. De facto, desde essa época que as Ciências Históricas contribuem para os Estudos Jornalísticos elaborando histórias do jornalismo.
A história das Actas Diurnas, resgatada por Le Clerc, em 1838, ou a história da génese do jornalismo alemão, de Prutz, dada à estampa em 1845, são apenas dois dos exemplos a que poderíamos aludir para defender a tese do contributo fundacional da História para a definição do campo dos Estudos Jornalísticos. Mas não são os únicos. No Reino Unido, Alexander Andrews (1859) publicou uma monumental história do jornalismo britânico, a que se seguiram estudos similares de Bourne (1887), Morison (1932), Stutterheim (1934) e outros. Por seu turno, Ernst Bernheim, da Universidade de Leipzig, fez um esboço histórico do jornalismo antigo, em 1908. Eugène Hatin (1859-1864) escreveu uma monumental obra em oito volumes sobre a história política e literária da imprensa francesa, a que se seguiu, em 1866, um ensaio bibliográfico e estatístico sobre o aparecimento e desenvolvimento da imprensa periódica na Europa e nas Américas. O alemão Ludwig Salomon (1900-1906) elaborou, por sua vez, uma história da imprensa alemã, com especial ênfase para o período até 1850, na qual recupera, em particular, os contributos dos primeiros diários alemães do século XVII para o desenvolvimento do jornalismo. Em 1914, Luis del Arco y Muñoz publicou um estudo histórico-bibliográfico sobre a imprensa periódica espanhola durante a Guerra da Independência[1], a que se seguiu, também em Espanha, uma história do jornalismo, dada à estampa por Edmundo González-Blanco, em 1919.
Nos Estados Unidos, o interesse pela história do jornalismo também foi despoletado no século XIX, prosseguindo ao longo do século XX, com trabalhos de Hudson (1873), Lee (1917), Bleyers (1927) e Mott (1941). A grande novidade trazida pelas obras destes autores norte-americanos foi a atenção que devotaram à institucionalização da profissão de jornalista. Uma teórica norte-americana, Ishbel Ross (1936), orientou a historiografia jornalística para as questões e género, ao escrever sobre as Ladies of the Press. Em 1944, Kobre lançou, também nos Estados Unidos, uma história da imprensa colonial, na qual encara esta última como instituição social. O estudo de Kobre (1944) contextualiza, assim, o aparecimento e evolução dos jornais em consonância com a própria evolução da sociedade, na mesma perspectiva que Park tinha apontado, em 1923, no seu trabalho sobre a história natural do jornal. O trabalho de Kobre chamou também a atenção para o facto de o historiador do jornalismo se deparar com um objecto vasto e complexo, que pode analisar-se desde diferentes perspectivas, desde a história clássica à sociológica, económica ou tecnológica, entre outras. Mais, o jornalismo não é um objecto de estudo isolado, está relacionado com outros objectos e práticas sociais, institucionais e culturais, entre as quais as práticas políticas, as económicas e as empresariais.
Num outro tom, Ernst Bernheim (1908) publicou, em Leipzig, o livro Lehrbuch der Historischen Methodik under Geschichtphilosophie, no qual ele relembra os contributos dos autores alemães do século XVII para a teorização do jornalismo. Aparentemente, terá sido o primeiro esforço para historiografar não apenas o jornalismo mas também os estudos jornalísticos[2].
Um outro tipo de livros coadjutor do campo dos estudos jornalísticos é constituído pelas obras hemerográficas (inventários de livros e artigos sobre jornalismo) e bio-bibliográficas (biografias e bibliografias de jornalistas, memórias de jornalistas, etc.). As últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX são bastante ricas nesse tipo de estudos, de que são exemplos os trabalhos histórico-hemerográficos de Gracias (1880), Leal (1898), Noronha (1857), centrado na tipografia, e Pereira (1895 e 1897).
A abundância de trilhos historiográficos percorridos pelos historiadores do jornalismo pode fazer levantar a questão: que história interessa aos Estudos Jornalísticos? Uma história que, por exemplo, incorpore a análise do discurso e a análise das condições de produção desses discursos, como tentaram fazer Sousa et al. (2007), o que remete para a história política, social e económica e para a história das ideias e das mentalidades ou até para o cruzamento de todas essas histórias? Uma história que evidencie as intersecções entre a realidade e os discursos que a noticiam? Uma história que relacione o jornalismo com a cultura, a política, a economia e a vida das empresas, a sociedade em geral? Uma história factual e cronológica, positivista, que procure registar factos, sem outra interpretação que não seja a da selecção desses factos e as escolhas sobre a forma como esses factos são discursivamente apresentados? Provavelmente, todas as histórias interessam aos Estudos Jornalísticos.
Ora, apesar da abundância de histórias do jornalismo, não deixa de ser curioso que alguns dos mais antigos contributos para a construção de conhecimento histórico sobre o jornalismo tenham sido ofuscados pelo tempo. Pouco conhecidos, pouco citados, por vezes parece que algum do conhecimento posterior divulgado pelas histórias do jornalismo mais recentes nada deveu aos precursores que desbravaram o campo e reuniram muitos dos dados que hoje são amplamente referidos como factos pelos historiadores mais recentes do jornalismo. Impõe-se, portanto, resgatar as obras pioneiras sobre história do jornalismo, fazer uma historiografia da própria construção de conhecimento histórico sobre o jornalismo, de maneira a ser possível avaliar quanto do que se sabe hoje em dia sobre esta nobre, útil, importante e influente actividade estratégica de comunicação em sociedade se deveu ao trabalho dos historiadores que primeiro se debruçaram sobre ela.
1. Objectivos e metodologia da pesquisa
O discurso histórico procura descrever factos ou acontecimentos que existem ou existiram fora dele, ou seja, que existiram ou existem na própria história. No entanto, os factos ou acontecimentos têm relevância dentro do discurso histórico em que são construídos e não fora dele, sendo essa relevância conferida pelo historiador, mas também pelo valor que culturalmente é dado a cada um desses factos e acontecimentos. Mais ou menos indiciáticos e verdadeiros em relação ao que aconteceu, os discursos históricos não deixam, portanto, de ser objectos de conhecimento cujo valor social e cultural é criado pelo contexto e cuja relevância científica é dada pelo rigor com que se define o problema histórico a resolver, os objectivos da pesquisa histórica, a metodologia de investigação desse problema e as fontes usadas. No caso da presente pesquisa, o problema identificado foi precisamente o da necessidade de colmatar uma brecha no conhecimento histórico do jornalismo português – construir uma historiografia da historiografia portuguesa sobre jornalismo.
Este trabalho tem, assim, por objectivo geral contribuir para recuperar para a nossa memória colectiva os contributos dos primeiros historiadores portugueses do jornalismo para a construção de conhecimento histórico sobre esta actividade de comunicação social. Pretendeu-se, especificamente:
1. Inventariar os livros sobre história do jornalismo publicados em Portugal, por autores portugueses, até ao 25 de Abril de 1974;
2. Referir o contributo específico de cada um desses livros para a produção de conhecimento histórico sobre o jornalismo.
As perguntas que nortearam a pesquisa ativeram-se aos objectivos específicos delineados:
1. Quais foram os livros sobre história do jornalismo publicados em Portugal, por autores portugueses, até 25 de Abril de 1974?
2. Quais os assuntos abordados nesses livros? (Do que falam esses livros?)
3. Quais as particularidades discursivas notadas nesses livros? (Como se fala da história do jornalismo nesses livros?)
A fixação da data de 25 de Abril de 1974 para balizamento da pesquisa foi estabelecida algo arbitrariamente, mas tendo em conta que a transição do Estado Novo para a democracia se deu, precisamente, nessa data. A entrada em funcionamento de várias licenciaturas em Ciências da Comunicação em Portugal poucos anos após a Revolução, em 1979, implica que, após este ano, já não se possa falar de pioneirismo ou de desbravamento do campo ao referirmo-nos aos livros publicados sobre história do jornalismo.
Uma vez definido o problema, os objectivos e os parâmetros da investigação, procurou-se estruturar uma metodologia apropriada à pesquisa, que permitisse encontrar as fontes apropriadas:
1. Inventariação e localização dos livros a incluir no estudo, através de pesquisas na Porbase (catálogo on-line da bibliotecas portuguesas) e em catálogos manuais da Biblioteca Nacional e da Biblioteca Municipal do Porto. Registe-se, no entanto, que alguns dos livros foram previamente identificados graças às bibliografias incluídas em livros mais recentes.
2. Leitura crítica dos livros localizados e inventariados.
3. Elaboração de sumários dos livros.
2. As histórias do jornalismo em português e por portugueses até ao 25 de Abril de 1974
O interesse de autores portugueses pela história do jornalismo, em particular pela história da imprensa, data do século XIX. O primeiro indício que se pode recolher sobre esse interesse, tanto quanto se pôde apurar, data de 1857. Trata-se de um pequeno livro, intitulado Ensaios Sobre a História da Imprensa, escrito por Tito de Noronha, sobre a introdução e evolução da tipografia em Portugal. Nele, colateralmente, são apresentados dados sobre as primeiras relações[3] e folhas noticiosas bem como sobre os primeiros jornais portugueses (onde foram impressos, quem os imprimiu, etc.). José António Ismael Gracias (1880) desenvolveu o mesmo tipo de pesquisa, mas circunscrevendo-a à Índia Portuguesa, concretamente a Goa.
Foi a partir das duas últimas décadas do século XIX que se tornou constante o interesse pela história do jornalismo em Portugal. Eduardo Coelho (1881) evocou o nascimento e desenvolvimento do jornalismo em Portugal numa comunicação apresentada ao Congresso Literário Internacional de Lisboa, tendo feito o mesmo em 1898 (Coelho, 1898), por ocasião da celebração, também na capital do país, do V Congresso Internacional da Imprensa, evento em que foi acompanhado, no tratamento do mesmo tema, por Alfredo da Cunha (1898), que 43 anos mais tarde publicaria uma importante história do jornalismo português até 1821 (Cunha, 1941a), na qual autores posteriores recolheram abundantes dados.
A partir do final do século XIX, há várias orientações no tratamento da história do jornalismo. Alguns autores publicam obras sobre a história do jornalismo em geral (por exemplo: Pereira, 1895; Pereira, 1897; Bessa, 1904; Cunha, 1930; Cunha, 1939; Cunha, 1941a; Cunha, 1941 c; Cunha, 1942; Martins, 1942; Salgado, 1945; Tengarrinha, 1965); outros debruçam-se sobre a imprensa e o jornalismo nas colónias ou em regiões e cidades do país (por exemplo: Brito Aranha, 1885; Cunha, 1893; Silva Leal, 1898; Aragão, 1900; Fernandes, 19__; Freitas, 1908; Marta, 1921; Grave, 1929; Carvalho, 1931; Galrão, 1937; Branco, 1938; Basto, 1940; Monte, 1955; Jesus, 1955; Gama, 1956; Lapa, 1956; Dias e Eça, 1957; Oliveira, 1958; Nunes, 1962; Costa, 1963; Teixeira, 1965; Gonçalves, 1964, 1965b, 1966 e 1966/1967; Oliveira, 1969; Codam, 1973); outros ainda restringem-se à história do jornalismo especializado, nomeadamente nas áreas da medicina (por exemplo: Pina, 1945; Silva, 1974), do cinema (Costa, 1954) e da imprensa operária (Oliveira, 1973). Este último trabalho (Imprensa Operária no Portugal Oitocentista: 1825 – 1905, de César Oliveira) é particularmente interessante porque aborda temas sensíveis, como a imprensa socialista e anarquista e o respectivo discurso, numa época em que o regime ditatorial e corporativista censurava tudo o que pudesse soar a subversão. Também é relevante por cruzar sociologia política com a história, como advogavam as correntes que reagiram contra a história positivista de Oitocentos.
No âmbito da produção historiográfica portuguesa sobre jornalismo encontram-se, igualmente, obras sobre a história de determinados jornais (por exemplo: Cunha, 1914; Carqueja, 1924; Carqueja, 1934; Freire, 1939; Teixeira, 1940; Morais, 1941; Cerqueira, 1952; Maciel, 1958, Pacheco, 1964; Baptista, 1966), com especial destaque para o Diário de Notícias e O Comércio do Porto. A obra de Jacinto Baptista (1966) é singularmente interessante por se tratar de uma profunda análise do discurso do número do jornal republicano O Mundo de 5 de Outubro de 1910, data em que a República foi proclamada em Portugal. Aliás, é uma das primeiras análises do discurso realizadas em Portugal, uma das primeiras histórias a tentar integrar um problema histórico no seu contexto, ultrapassando os limites da história clássica positiva.
Descobriram-se, ainda, catálogos que descrevem jornais, como o de João Pereira da Silva (1892) e o de José Luciano Castro (1897), preciosos auxiliares para o estabelecimento de uma história do jornalismo em Portugal, e até um livro sobre a história da imprensa brasileira editado em Portugal por um português (Bessa, 1929).
A história das organizações jornalísticas e das personagens que nelas intervieram não foi esquecida pelos autores portugueses, sendo abordada por Luís Gomes (1925), Alfredo da Cunha (1941b) e por Boavida Portugal (1959), neste último caso restrita à Casa da Imprensa.
Finalmente, um derradeiro grupo de livros historiográficos é constituído pelas biografias de jornalistas e “escritores de jornais”, normalmente já falecidos. Estas obras tendem a enaltecer, frequentemente em tom apologético, os biografados, mas são úteis para resgatar os contributos de determinados vultos − autores − ao jornalismo português. São, entre outros, exemplos desse tipo de obras a de Morais (1941) sobre Lourenço de Anvers, impressor do primeiro e outros números da Gazeta “da Restauração”; a de Anselmo (1882), a de Veloso (1910 a) e a de vários autores (Autores Vários, 1882) sobre o jornalista e político António Rodrigues Sampaio, redactor principal do jornal A Revolução de Setembro; a de Pedro Venceslau de Brito Aranha (1886) sobre Mendes Leal Júnior, outro dos jornalistas-políticos oitocentistas portugueses; o jornal especial (número único) dirigido por Alberto Bessa (1899) e dedicado à memória do escritor romântico e jornalista Almeida Garrett; a biografia e colectânea de textos sobre o jornalista Joaquim Martins de Carvalho, elaborada por Carvalho (1924); a biografia do fundador do Diário de Notícias Eduardo Coelho elaborada por Alfredo da Cunha (1891) e a elegia que vários autores (1904) fizeram ao mesmo jornalista; a obra de Martins (1964) sobre Manuel de Galhegos, primeiro concessionário da edição do primeiro periódico português, a Gazeta “da Restauração”, e seu primeiro presumível redactor; as biografias do truculento jornalista Padre José Agostinho de Macedo, partidário do Antigo Regime, elaboradas por Mello (1854) e Olavo (1938); os livros dedicados a Reinaldo Ferreira, o famoso “Repórter X”, que se distinguiu pelas suas reportagens de pendor sensacionalista (Mendes et al., 19__; Portela, 1956); as biografias de Emídio Navarro, fundador de um importante jornal do final do século XIX e princípios do século XX, o Novidades (Noronha, 1913; Veloso, 1910 b); as biografias do autor de Relações seiscentistas Manuel Severim de Faria elaboradas por Vasconcelos (1914; 1917); a biografia do jornalista e político José Luciano de Castro redigida por Pereira (1890); o livro biográfico sobre o jornalista Norberto de Araújo (Portela, 1953); e as biografias dos jornalistas e políticos do final de Oitocentos e princípios de Novecentos Mariano de Carvalho, Barbosa Collen, José d’Alpoim e Cunha e Costa, escritas por Rodrigo Veloso (1911 a; 1911 b; 1911 c; 1911 d).
O quadro 1 mostra a distribuição por categorias das diversas histórias do jornalismo publicadas em Portugal e inventariadas no âmbito deste estudo.
Quadro 1
Distribuição temática dos livros historiográficos do jornalismo publicados em Portugal, por autores portugueses, até 25 de Abril de 1974
Pode concluir-se, face aos dados apresentados, que os investigadores portugueses que escreveram livros sobre história do jornalismo antes do 25 de Abril de 1974 deram particular atenção a objectos de estudo que lhes estavam próximos e/ou que lhes eram acessíveis, pelo que preferiram as histórias biográficas (26% dos livros), as histórias do jornalismo regional e local (18% dos livros), as histórias do jornalismo colonial (13% dos livros) e as histórias de determinados órgãos jornalísticos (9%). A história do jornalismo nacional em geral constituiu o foco de atenção de apenas 15% dos livros e a história do jornalismo em geral foi tema de apenas 6% dos livros, valores que podem traduzir um certo desinteresse académico e profissional autóctone quer pelo jornalismo internacional quer mesmo pelo jornalismo nacional em geral. Menos surpreendentes são as percentagens de livros dedicados à historiografia do jornalismo especializado (6%) e das agremiações profissionais dos jornalistas (3%), temas que interessarão a poucos historiadores e que têm pouca repercussão pública.
2.1 O caso de Augusto Xavier da Silva Pereira no final do século XIX
A. Xavier da Silva Pereira é talvez o primeiro caso particular a registar entre os historiadores portugueses do jornalismo. Embora cheios de incorrecções, os seus catálogos sistemáticos e hemerográficos dos jornais portugueses (Pereira, 1895; Pereira, 1897) representam o resultado de um esforço pessoal hercúleo, nunca feito até então, de inventariação de todos os jornais publicados em Portugal até à data, com indicações preciosas sobre os fundadores, anos de publicação, etc.
Os dois livros publicados por Silva Pereira foram extraídos da obra maior manuscrita, nunca impressa (pesem embora os esforços do autor), intitulada Dicionário Jornalístico Português, conservada na biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa.
O Dicionário de Xavier da Silva Pereira é o mais relevante levantamento de periódicos portugueses realizado até ao final do século XIX. É constituído por 13 volumes e identifica cerca de seis mil periódicos portugueses publicados ou em circulação até ao final do reinado de D. Luís I, em 1889, englobando os publicados no estrangeiro, nos territórios ultramarinos e no Brasil até à independência. Inclui, igualmente, uma história cronológica da legislação da imprensa portuguesa até 1898.
O autor identifica sete épocas na história do jornalismo português, inserindo os jornais nas suas respectivas épocas: Infância do Jornalismo Português (1625 a 1750); Época Pombalina (1750 a 1807); Dominação Estrangeira (1807 a 1820); Lutas entre Absolutistas e Constitucionais (1820 a 1833); Lutas entre Cartistas e Setembristas (1833 a 1851); Regeneração (1851 a 1861); e Reinado de D. Luís I (1861 a 1889).
Os dados avançados por Silva Pereira para cada jornal, embora com bastantes imprecisões e erros, dizem respeito ao título, índole, datas de fundação e término de publicação, fundadores, proprietários, directores, redactores, administradores, localidade e tipografia onde se imprimiu o jornal em causa, formato, mudanças de título e formato, etc. Em alguns casos, o autor reporta o papel dos jornais referenciados na política, artes e letras, ciências, economia, etc. Os dados apresentados por Silva Pereira no seu trabalho são, assim, um importante apoio para os estudos históricos.
2.2 Alfredo da Cunha: o prolixo
Alfredo da Cunha começou a interessar-se pela história do jornalismo no final do século XIX, quando apresentou no V Congresso Internacional da Imprensa, realizado em Lisboa, em 1898, uma comunicação sobre a origem e desenvolvimento do jornalismo nacional, tema que não mais abandonará (Cunha, 1930; Cunha, 1941a; Cunha, 1941c; Cunha, 1942). Em especial, o autor debruçou-se, nessas obras, sobre o aparecimento do periodismo português e batalhou para que se considerasse a Gazeta “da Restauração” (1641 – 1647) o primeiro jornal português, em detrimento das Relações de Manuel Severim de Faria, o que fez, inclusivamente, adiar para 1941 as comemorações do tricentenário da imprensa jornalística portuguesa, que alguns queriam realizar em 1926 (tricentenário da primeira Relação de Manuel Severim de Faria).
Alfredo da Cunha escreveu, também, uma excelente história do Diário de Notícias (1914) e ainda um importante texto sobre a história das organizações jornalísticas em Portugal, o primeiro devotado a esse tema (Cunha 1941b), no qual relembra a conturbada história das associações e sindicatos jornalísticos desde 1880 até 1941 e discute as divisões no seio da classe jornalística (elites literatas vs. “proletários”, incluindo nestes últimos os que queriam aglutinar todos os trabalhadores da imprensa sob um único telhado) e as indefinições sobre os conceitos de jornalismo (ramo da literatura, profissão liberal...) e de jornalista (“escritor de jornal”, profissional...). Recorda, ainda, nesse mesmo texto, as tentativas nunca concretizadas de fundação de uma Ordem dos Jornalistas em Portugal.
O livro principal escrito por Alfredo da Cunha é Elementos para a História da Imprensa Periódica Portuguesa 1641 – 1821, editado em 1941. Com esta obra, Alfredo da Cunha pretendeu dar a conhecer o trajecto da imprensa periódica portuguesa nos séculos XVII, XVIII e XIX (essencialmente até à Revolução Liberal e período subsequente). Trata-se de um livro clássico e minucioso sobre a história do jornalismo em Portugal, no qual foram beber obras posteriores.
Ao contrário de autores anteriores, designadamente de Bessa (1904), Alfredo da Cunha opta por não se pronunciar sobre os fenómenos pré-jornalísticos, preferindo considerar que o verdadeiro jornalismo apareceu em Portugal com a Gazeta “da Restauração”, em 1641, apesar de também se referir às Relações de Manuel Severim de Faria e a dispositivos pré-jornalísticos anteriores a estas Relações, recordando, por exemplo, a Miscelânea de Garcia de Resende, espécie de reportagem em forma de verso, que poderá ter circulado sob a forma de folha volante.
O autor começa por contextualizar o jornalismo português, equacionando-o em função do grau de liberdade de imprensa de que beneficiou em cada época. Relembra, desde logo, que uma lei implementada por D. João IV proibiu, em 1642 (poucos meses após o início da publicação da Gazeta “da Restauração”), a circulação de gazetas, o que impediu, na versão do autor, um começo salutar da imprensa periódica portuguesa. Este juízo de Alfredo da Cunha pode ser lido como uma crítica indirecta à censura exercida pelo regime ditatorial de Salazar. Aliás, Alfredo da Cunha (1941a: 8) faz uma observação curiosa quando se refere às contradições do uso da expressão “liberdade de imprensa”, afirmando que “o (...) intuito [do uso dessa expressão] não tem sido outro senão restringir ou refrear aquela liberdade”.
Para Alfredo da Cunha (1941a: 4), o jornalismo tornou-se um “género de primeira necessidade” de enorme impacto social. O autor relembra, a propósito, que devido ao impacto social do jornalismo se foram inserindo novos vocábulos na língua, correspondentes a outros tantos novos conceitos, por exemplo: jornalismo e jornalista; repórter; periodismo; periodístico, periodista e periodiqueiro; folhetinista e foliculário; diarista e gazeteiro; jornal, revista; artigo, reportagem, entrevista, crónica, etc.
O autor explica que a invenção da tipografia gutemberguiana promoveu o conhecimento e foi também o invento por trás da aparição dos jornais, que se propõem satisfazer, com relativa frequência e a intervalos regulares, a curiosidade pública, proporcionando-lhe o conhecimento de “histórias presentes” e “casos que aconteceram”. (Cunha, 1941a: 35)
O autor lembra que a génese da imprensa periódica em Portugal ocorreu com a publicação da Gazeta “da Restauração” e do Mercúrio Português. Estes foram, na designação de Alfredo da Cunha, os “patriarcas do jornalismo português”, que não teve, no século XVII, outros representantes dignos de recordação. De acordo com Cunha (1941 a: 42), à Gazeta pode atribuir-se o título de primeiro periódico de notícias que se publicou em Portugal e ao Mercúrio o título de primeiro periódico político, de redacção literariamente cuidada. De qualquer maneira, fazendo o balanço do século XVII jornalístico português, Alfredo da Cunha (1941 a: 65) é cáustico: “do mesmo modo que a dois livros se não chama biblioteca, nem a dois quadros compete a classificação de museu, as duas folhas seiscentistas não podiam representar o jornalismo como força social, ou sequer deixar entrever o predomínio que ele viria a ter na vida dos povos modernos ”. Portanto, para o autor não se pode considerar um grande feito terem existido dois periódicos no século XVII, uma vez que não tinham contribuído para a edificação do jornalismo como instituição social nem determinaram a aparição de jornalistas profissionais.
O Século XVIII é considerado por Alfredo da Cunha como um período amorfo no que diz respeito à evolução da imprensa periódica portuguesa. Ele recorda que apesar de alguns periódicos, noticiosos (com especial destaque para a Gazeta de Lisboa, a que dedica muitas páginas) ou literários, enciclopédicos e de ideias, terem sido publicados em Portugal nesses cem anos, o jornalismo teve de enfrentar forte censura, inclusivamente do marquês de Pombal, apesar deste desconsiderar a imprensa, quer a “insípida” imprensa noticiosa quer a de ideias, nem sequer vendo nelas bons agentes de propaganda (Cunha, 1941a: 103). O autor explica, igualmente, que dos periódicos publicados no século XVIII, nenhum era de carácter político, de combate partidário; nenhum pretendia representar a “opinião pública”, uma vez que, de acordo com Alfredo da Cunha, a opinião dominante, que abafava ou sufocava todas as tímidas opiniões divergentes, “era a de quem governava”. “Não havia lugar a controvérsias ou comentários sobre a matéria de administração e não havia partidos políticos que se digladiassem pela obtenção do poder, porque este concentrava-se no Rei, segundo as doutrinas que prevaleciam no país”. (Cunha, 1941a: 114)
Alfredo da Cunha (1941a: 121), antes de começar a descrever a imprensa periódica portuguesa no século XIX, cita Henry Maret, segundo o qual “escrever a história do jornalismo no século XIX seria escrever a história do próprio século”. Este foi, de facto, em conformidade com Alfredo da Cunha, o século onde se denominou, pela primeira vez, o jornalismo como o “quarto poder”, uma vez que era a força que desfazia as outras três forças. Jules Claretie (cit. in Cunha, 1941a: 121) chamou a esse século, o século “dos jornalistas”, já que estes teriam conseguido, na versão de Cunha, que o público aderisse às suas ideias.
Em Portugal, diz Alfredo da Cunha, só apareceram periódicos de combate político no primeiro quartel do século XIX, devido quer às invasões napoleónicas quer ao influxo das ideias revolucionárias e liberais, em luta com as dos absolutistas.
“Fundavam-se umas folhas para defenderem outras para atacarem a separação do Brasil; umas criavam-se para provocarem a convocação das Cortes, outras para a combaterem; umas eram partidárias de D. João VI, outras de Carlota Joaquina, e ainda outras de D. Pedro ou de D. Miguel; umas eram dos jacobinos ou malhados, outras dos apostólicos ou corcundas; e até algumas nasciam principalmente para atacarem as redigidas por inimigos pessoais ou antagonistas políticos, como, por exemplo, o Espectador Português, de José Agostinho de Macedo, cujo fito foi agredir O Observador Português, de Pato Moniz.” (Cunha, 1941a: 122)
Apesar de reconhecer que a pressão do regime absolutista refreou bastante a liberdade de imprensa e o ritmo de fundação de jornais, Alfredo da Cunha (1941a: 162) regista, igualmente, que “Do que não há dúvida é de que a imprensa de parcialidade ou de facção [em Portugal] nasceu do embate das ideias liberais com as absolutistas, pois, enquanto estas forem as únicas professadas e predominantes, os periódicos não tiveram, para se desenvolverem e robustecerem na ginástica da discussão, o estímulo da polémica partidária e da controvérsia política”.
Alfredo da Cunha refere, ainda, que, no Portugal do século XIX, raro foi o homem de letras ou homem político que não cultivou o jornalismo combativo e partidário e nele não tentou conquistar renome, quando, pelo contrário, no século anterior, os grandes prosadores, poetas, oradores ou políticos raramente se notabilizaram como jornalistas. Entre todos, embora nem sempre pelos melhores motivos, uma personagem sobressai no panorama das lutas entre os jornais políticos das primeiras décadas do século XIX: o talentoso, mas também turbulento, violento, desenfreado e indecoroso padre José Agostinho de Macedo, redactor de diversos periódicos pró-absolutistas, que merece a Alfredo da Cunha uma análise de dez páginas (Cunha, 1941a: 141-151).
O livro encerra com dados hemerográficos, parte deles retirados das obras de Augusto Xavier da Silva Pereira (1895 e 1897), e índices onomásticos.
2.3 Augusto de Lacerda (1904): uma história canónica do jornalismo
O livro de Augusto de Lacerda (1904) é consagrado ao papel do jornalismo na “irradiação do pensamento”, mas a primeira parte, justamente intitulada “Através do Passado”, atem-se à história do jornalismo, a pretexto da tendência do homem em exprimir o seu pensamento por escrito desde que a escrita apareceu.
Mergulhando, como outros, na tese da origem sócio-cultural do jornalismo no Mundo Antigo, o autor relembra os escritos historiográficos de babilónios e gregos, as Efemérides gregas, segundo ele instituídas por Alexandre o Grande, e ainda o discurso de Demóstenes contra Filipe da Macedónia, amplamente copiado e distribuído na Grécia Antiga. Conclui Augusto de Lacerda (1904: 11), assim, que na “infância do jornalismo” estiveram “três aspectos capitais: histórico, noticioso e político”. Pode pois dizer-se que, segundo a visão do autor, na génese do jornalismo se encontra a historiografia, a necessidade de transmitir notícias à distância e ainda a política. Recorde-se, a propósito, sobre este último aspecto, que no início do século XX muitos jornais eram políticos, pelo que o texto de Augusto de Lacerda reflecte o contexto da época.
Augusto de Lacerda detém-se, em particular, sobre as Actas Diurnas romanas, salientando que historiadores como Du Cange, Beckmann e Victor Le Clerc “fazem datar das Acta Diurna a existência do jornalismo”, devido à função noticiosa e pública que elas tinham. As Hebdomadae de Varrão também são relembradas por Lacerda como uma espécie de protótipo de revista ilustrada.
Seguidamente, o autor passa em revista os fenómenos medievais que contribuíram para a génese do jornalismo, como sejam as crónicas, os registos historiográficos diários dos frades dietários e ainda Pasquim e Marfório, considerados pelo autor precursores do jornalismo satírico. O autor conta que Pasquim era um sapateiro conhecido pelas suas tiradas humorísticas, mas “a sua popularidade generalizou o nome aos que usavam e abusavam da graça pesada” (Lacerda, 1904: 13). E continua: “No pedestal de uma estátua, Pasquim afixava pequenos cartéis com perguntas maliciosas; as respostas, ainda mais maliciosas, apareciam no pedestal de outra estátua, baptizada com o nome de Marfório” (Lacerda, 1904: 13-14).
As folhas volantes renascentistas e os panfletos são, igualmente, considerados pelo autor como fenómenos jornalísticos, até porque o aparecimento da tipografia de Gutenberg potenciou a sua afirmação. Seguidamente, e seguindo o percurso histórico do jornalismo, o autor relembra as gazetas e mercúrios do século XVII, primeiros jornais. Refere, em particular, mas nem sempre com rigor, alguns dos periódicos mais conhecidos dessa época, como a Gazette de Renaudot. Relembra que Manuel Severim de Faria publicou as suas Relações, “primeira folha de feição jornalística” portuguesa, mas erra ao dizer que eram mensais (na realidade, só foram impressos dois números e uma reedição do primeiro número, intervalados por cerca de um ano cada um). Recorda, também, a Gazeta “da Restauração”, que se iniciou em 1641 e que foi o primeiro periódico português. Diz, ainda, que após a Gazeta surgiram em Portugal “mais ou menos regularmente várias folhas impressas, umas com feição jornalística, outras que tinham por fim tornar conhecidos certos e determinados factos isoladamente (...) e que à falta de melhores documentos são muitas vezes valiosos auxiliares históricos.” (Lacerda, 1904: 24-25) Fala, depois, dos periódicos portugueses setecentistas e ainda dos jornais que surgiram em Portugal graças à Revolução Liberal de 1820. Recorda, também, que antes da independência surgiram no Brasil vários jornais políticos nos quais predominava o ideal separatista.
O autor considera que as convulsões políticas foram “a legítima e poderosa força que daria decisivo impulso ao jornalismo” (Lacerda, 1904: 25), devido ao agudizar das necessidades informativas da população em situações de crise. Destaca, nesse âmbito, a Revolução Francesa e os conflitos entre absolutistas e liberais em Portugal, mas, reflectindo a francofilia da época, nada diz, por exemplo, sobre a evolução da imprensa inglesa, bastante mais relevante para a emergência do modelo Ocidental de jornalismo.
Encerrando a primeira parte do livro, o autor diagnostica os factores que propiciaram o desenvolvimento do jornalismo em Portugal. Classicamente, evoca o Correio, que a partir de 18 de Janeiro de 1797 deixou de ser entregue a particulares e passou a ser um serviço público oficial; os caminhos-de-ferro, que potenciaram a circulação de notícias e permitiram uma melhor e mais rápida distribuição de jornais; o telégrafo, que tornou célere a transmissão de notícias; e ainda as medidas legislativas que facultaram a criação de jornais e instituíram e regularam a liberdade de imprensa.
2.4 Alberto Bessa (1904): a primeira história internacional do jornalismo publicada em Portugal
O Jornalismo – Esboço Histórico da Sua Origem e Desenvolvimento Até aos Nossos Dias, de Alberto Bessa, prefaciado por Edmundo d’Amicis, editado em 1904, é o primeiro exemplo de uma verdadeira história (internacional) do jornalismo publicada no país, embora o autor, como outros da mesma época, extravase o seu objecto de estudo para desenvolver, por exemplo, várias considerações sobre o jornalismo nacional e estrangeiro que se praticava na altura.
No seu livro, Bessa passa em revista a génese e desenvolvimento do jornalismo na Europa, perfilhando a tese da origem sócio-cultural do jornalismo, uma vez que considera as Actas Diurnas romanas, as Efemérides gregas e ainda fenómenos como o dos pregoeiros como dispositivos de natureza jornalística ou, pelo menos, pré-jornalística.
O autor consagra particular atenção ao aparecimento e desenvolvimento do jornalismo em Inglaterra, Espanha, França, Itália, Rússia e Portugal. Fala, também, do jornalismo nos Estados Unidos, China, Japão, Uruguai e Argentina. O Brasil merece-lhe, igualmente, particular atenção. Surge mesmo no livro uma resenha cronológica e alfabética dos jornais brasileiros com uma adenda sobre os jornais publicados no Estado de São Paulo, coisa que o autor não faz para Portugal. O autor também inclui várias referências aos jornais portugueses publicados nos territórios coloniais e noutros países, como a Inglaterra (em particular durante a emigração liberal), o Uruguai, a Argentina, os Estados Unidos e o Brasil.
Transparece do livro uma certa indistinção entre jornalismo e literatura, jornalista e literato, o que não é de estranhar tendo em conta que o jornalista do tempo era, essencialmente, um “escritor de jornal” e que nos periódicos colaboravam, como folhetinistas e redactores (de artigos de fundo), altos vultos da intelectualidade e da política da época. Por exemplo, para o autor, o jornal L’Echo de Paris, surgido em 1884, conseguiu “democratizar a literatura”, graças às colaborações de grandes nomes das letras francesas. No entanto, o autor também dá repetidamente conta de que existia tensão entre o que o público queria e o que alguns entendiam dever-lhe dar. Por isso, os “pessimistas” diziam, segundo Bessa (1904: 178), que o jornalismo português tinha “falseado a sua missão, descendo a satisfazer o gosto depravado do grande público e esquecendo o seu papel de guia da opinião”. O povo, descreve Bessa (1904: 178-179) quer “a notícia desenvolvida e ridiculamente pormenorizada de uma cena de facadas na rua Suja ou de um caso de adultério na Baixa” e não os artigos dos “escritores consagrados”, “por melhor escritos e melhor pensados”, excepto nos poucos casos em que estes se notabilizem pela “virulência da linguagem, pela revelação grosseira do escândalo ou pelo ataque descabelado e irrespeitoso a qualquer dos poderes do Estado”.
A consideração de Bessa pelo jornalismo norte-americano e por alguns jornais ingleses, como o próprio Times, era ambivalente. Para ele, os jornalistas americanos, sob a pressão exacerbada do tempo [o autor estava perfeitamente consciente dos constrangimentos que o factor tempo provoca na actividade jornalística], tinham de fazer notícias “breves, sérias e secas, a não ser que se trate de casos verdadeiramente sensacionais” (Bessa, 1904: 208), o que obviamente “escandalizava” um autor, como Bessa, habituado ao artigo grave, solene, profundo e sério que constituía uma das imagens de marca de algum jornalismo português. O Times, por seu turno, “dá por uma insignificância a parte que pode chamar-se intelectual” (Bessa, 1904: 71). No entanto, o autor manifesta a sua admiração pelo número, dinamismo, poder, número de páginas, capacidade de cobertura e recursos humanos e tecnológicos (Bessa enfatiza a importância do telégrafo e, em menor grau, do telefone) dos jornais britânicos e americanos, graças à riqueza proporcionada pelas enormes tiragens, muitas vezes alimentadas pelos brindes distribuídos aos assinantes, pelos concursos, e pela massiva inserção de anúncios publicitários. De qualquer maneira, o autor não via o jornalismo português como “inferior ao das restantes nações da Europa”, pelo menos nos jornais politicamente independentes e “pelo que respeita ao seu pessoal que chamarei graduado” (Bessa, 1904: 183).
Em variadíssimas passagens, Bessa mostra também o seu assombro pela capacidade de improviso e “desenrascanço” dos seus colegas estrangeiros para obtenção das melhores informações em primeira-mão, qualidade internacionalmente apreciada em qualquer repórter, o que denota a transnacionalidade dos valores da tribo jornalística, também ela trans-nacional. A capacidade de envio de correspondentes para várias partes do mundo demonstrada pelos maiores jornais e o engenho por eles revelado para obterem e mandarem exclusivos para os seus jornais, escapando à censura, mesmo em situações de guerra, também são realçados pelo autor.
Outra qualidade que Bessa considera importante nos repórteres é a capacidade de dissimulação quando tomam contacto com uma informação importante, referida indiscreta ou imprevistamente. O repórter, para Bessa, não deve, nessas ocasiões, dar ao seu interlocutor a ideia de que este lhe deu matéria relevante, para que, na sequência da conversa, novas informações possam vir à superfície.
Uma das passagens mais interessantes do livro diz respeito a um jornal telefónico que Bessa diz que existia em Budapeste, que antecipa os radiojornais:
“Chama-se Telefon-Hirmondo e (...) [foi] criado em 1893. A empresa tem uma rede telefónica que distribui um fio e um aparelho auditor a cada assinante.
(...)
Na sala de redacção, os empregados (...) têm o seu serviço perfeitamente detalhado (...). Um tem o artigo de fundo, outro a crítica teatral, a científica, a literária, a secção de modas, a de desporto e assim sucessivamente, uma secção a cargo de cada pessoa. Outros redactores classificam e redigem os telegramas, as notícias políticas, militares ou sociais, as observações meteorológicas (...). O Telefon-Hirmondo substitui os jornais impressos, não tendo leitores mas tendo ouvintes.
A leitura dos manuscritos é feita diante de dois poderosos microfones, colocados a par um do outro e que não oferecem senão pequenas modificações em relação aos aparelhos ordinários. Para a música, os receptores acham-se munidos de pavilhões e a transmissão do canto realiza-se do mesmo modo que a da palavra. A sucessão das diversas secções acha-se perfeitamente determinada e todos os dias se reproduz pela mesma ordem. O jornal telefone funciona para todos os assinantes desde as 8 horas da manhã até às 11 da noite, podendo deste modo os respectivos subscritores, quando se deitam, ter já conhecimento das novidades que os assinantes dos jornais impressos só conseguem conhecer na manhã seguinte. Às tantas horas, ouve-se o artigo de fundo, querendo ouvir-se; porque não querendo, é só fechar a comunicação e esperar a hora em que deva ouvir-se a secção que mais agrade ou que mais directamente interesse a cada um dos assinantes.
Se há algum acontecimento de particular alcance (...) não se demora um momento a sua transmissão. Um sinal especial de alarme repercute nas campainhas e o assinante fica logo sabendo, sem se incomodar, que faleceu a rainha Vitória, que foi eleito enfim um novo papa ou que rebentaram as hostilidades entre a Rússia e o Japão.
A assinatura do jornal-telefone, que tem sobre os jornais impressos vantagens relativas em muitos pontos, custa apenas três francos por mês. Nada custa ao assinante a instalação do aparelho em sua casa, como também nada precisa despender quando há qualquer desarranjo. Tudo corre por conta da empresa (...).
Não só nas casas particulares, como nos bancos, companhias, hotéis, cafés, casas de espectáculos, etc., o jornal-telefone tem larga aplicação. Enquanto se espera uma visita, o resultado de uma transacção, ou enquanto decorre o intervalo de um espectáculo, quantas novidades e quantas delas de particular interesse não podem saber-se por intermédio do jornal falado. E nos hospitais e consultórios de médicos e advogados, quantas aplicações pode ter e quantos minutos de aborrecimento fazer passar ligeiramente!” (Bessa, 1904: 279-281)
O futuro do jornalismo também não passa em branco a Bessa, mas o autor cinge-se, nesta matéria, aos avanços tipográficos, que permitiriam aumentar as tiragens, e à crescente proliferação de jornais em todo o mundo.
2.5 Rocha Martins (1942): uma pequena história do jornalismo
Rocha Martins, em 1942, publicou a sua Pequena História da Imprensa Portuguesa. Dividido em dez capítulos, o livro descreve alguns dos principais acontecimentos da história do jornalismo português desde o século XVII. Nele, tal como Bessa (1904) tinha feito, o autor perfilha a tese da origem sócio-cultural do jornalismo. Para ele, a Bíblia já possui relatos eminentemente jornalísticos, sendo também eminentemente jornalístico o fenómeno das Actas Diurnas romanas. De qualquer maneira, o autor passa quase imediatamente das Actas para as gazetas do século XVII, detendo-se na descrição das Relações de Manuel Severim de Faria, que considera o “primeiro noticiarista português”. A partir deste ponto, a narração histórica é canónica. Rocha Martins fala do aparecimento da Gazeta e do Mercúrio no século XVII; descreve os periódicos setecentistas, em particular a Gazeta de Lisboa; relembra os periódicos combativos surgidos após a Revolução Liberal, incluindo os periódicos católicos e operários; evoca a imprensa republicana, etc. Os últimos capítulos dizem respeito à imprensa na província, Açores, Madeira e colónias; aos jornais satíricos; e a outras modalidades de imprensa, como a imprensa ilustrada, a imprensa feminina e a imprensa desportiva.
2.6 Salgado (1945): a atenção à ética
A história do jornalismo é o tema central do livro de Joaquim Salgado (1945) intitulado Virtudes e Malefícios da Imprensa: Escôrço Histórico Sobre a Origem, Evolução e Ética do Jornalismo. Embora a história do jornalismo seja o seu tema principal da obra, o autor afasta-se dele em numerosas ocasiões, para discorrer sobre, afinal, aquele que é o título do livro. É interessante notar que Salgado é, tanto quanto se constatou, o primeiro autor português a usar a palavra “ética”, referindo-se à ética jornalística, no título de um livro sobre jornalismo.
A história do jornalismo que resulta do livro de Salgado é perfeitamente ortodoxa. Os autores, até certo ponto têm de repetir-se uns aos outros, pois factos históricos são sempre factos históricos. Assim, Salgado perfilha, como outros antes dele, a tese da origem sócio-cultural do jornalismo. Portanto, dá aos dispositivos pré-jornalísticos romanos a honra de terem inaugurado o jornalismo e, mais até, o jornalismo periódico (Salgado, 1945: 13). No entanto, o texto de Salgado enferma de algumas incorrecções, como a de atribuir ao Imperador Marco Aurélio a responsabilidade pela instituição das Actas Diurnas.
O autor também relembra a Bíblia, designadamente ao episódio da dádiva das Tábuas da Lei a Moisés, para, citando outro autor português, falar, algo absurdamente, da primeira notícia de que se tem conhecimento. Porém, mais à frente o autor especifica melhor a sua posição, que, embora mantendo a tese da origem sócio-cultural do jornalismo, adia para a Modernidade o seu verdadeiro aparecimento:
“nem os Anais Máximos nem as Actas Diurnas podem ser considerados como órgãos jornalísticos de existência normal. Faltaram-lhes os meios técnicos de desenvolvimento e de progresso (...) e (...) o ambiente indispensável. O jornalismo exige um certo número de condições mínimas, que só mais tarde puderam verificar-se. A descoberta de Gutenberg revolucionou completamente os meios de comunicação, fazendo surgir no mundo essa forma extraordinária que é a imprensa.” (Salgado, 1945: 15)
Para Salgado (1945: 60-61), há a considerar três períodos na história do jornalismo português: uma primeira de predomínio do jornalismo noticioso que se arrasta até cerca da Revolução Liberal; uma segunda que corresponde ao aparecimento, predominância e posterior crise do jornalismo político e partidário; e a terceira correspondente ao aparecimento e gradual predominância dos jornais de informação geral pertencentes a grandes empresas, no seio do sistema capitalista.
É interessante notar, tal como procurou, depois, fazer Tengarrinha (1965), que Salgado tenta interpretar o desenvolvimento da imprensa em função do contexto social, económico, técnico e cultural de cada época, para o que dá a seguinte justificação: “a imprensa sofre e beneficia das condições gerais que regulam as sociedades. Se estas são boas – ela desempenha salutarmente a sua função; se más, ressente-se dos vícios gerais, e espalha-os, consideravelmente ampliados” (Salgado, 1945: 8).
Nos últimos capítulos do seu livro, Salgado reflecte criticamente sobre a natureza do jornalismo, abandonando, em consequência, pelo menos parcialmente, a história do jornalismo. O autor salienta, nomeadamente, que o carácter mercantil e industrial do jornalismo contemporâneo, que reconhece como necessários, afectam a independência da imprensa e empurram-na para o sensacionalismo (Salgado, 1945: 59-88).
2.7 A grande história do jornalismo português: José Manuel Tengarrinha (1965)
O livro de José Manuel Tengarrinha (1965) História da Imprensa Periódica Portuguesa, reeditado em 1989, é “apenas” a grande obra de referência de todos os que se propõem estudar o jornalismo português durante a Monarquia. De facto, embora as últimas referências do livro digam respeito à I República e ao Estado Novo, o trabalho mais relevante do autor diz respeito ao período monárquico. Apesar de existirem outras histórias do jornalismo português anteriores ao livro de Tengarrinha, nenhuma atingiu o detalhe nem o nível de interpretação e contextualização do tema evidenciados por este autor.
O livro de Tengarrinha não é um inventário de jornais, opção que o autor recusa desde o início: “Houve especial preocupação em não cair na enumeração excessivamente longa de periódicos (...), que parece ser (...) característica dominante dos trabalhos até agora efectuados” (Tengarrinha, 1965: 24). Assim, o autor, embora dando sempre as necessárias referências hemerográficas e autorais (mencionando, nomeadamente, o nome de vários jornalistas e outros intervenientes no processo jornalístico), tentou contextualizar a génese e desenvolvimento do jornalismo português em função das circunstâncias históricas (culturais, económicas, tecnológicas...) de cada época, merecendo-lhe particular atenção os mecanismos de controlo da imprensa, nomeadamente a censura e o licenciamento, que, no seu juízo, quando aplicados, retardaram não apenas o desenvolvimento do jornalismo nacional mas também o do próprio país, conforme sucedeu durante o Estado Novo:
“Os jornais tornam-se uma máquina cada vez mais complexa. Em contraste com a relativa facilidade com que dantes se fundava um jornal, exigem-se agora, além de outras condições, pesados investimentos de capitais, cujos interesses, depois, é necessário defender. Esta circunstância e os obstáculos de ordem legal (...) (entre os quais avultam a censura prévia, as dificuldades na obtenção de alvarás e o rigor no reconhecimento da “idoneidade intelectual e moral dos responsáveis pela publicação”) e reduzem a liberdade de movimentos da nossa imprensa actual a limites muito estreitos.
Vemos, assim, como a compressão ou a libertação da imprensa é determinada por factores profundos, acompanhando a compreensão ou a libertação da actividade humana nas suas diversas manifestações. E vemos, também, como a evolução do jornalismo se enquadra num amplo conjunto de circunstâncias que, por um lado, o determina e sobre o qual, por outro lado, ele age. A não ser que se queiram fazer meras resenhas jornalísticas ou colecções de factos anedóticos, a história da imprensa portuguesa não poderá ser observada como um fenómeno isolado e sui generis, mas como um dos aspectos – porventura um dos aspectos mais vivos e expressivos – da história da nossa cultura.” (Tengarrinha, 1965: 248)
Tengarrinha divide a história da imprensa portuguesa em três períodos: 1) Os primórdios da imprensa periódica em Portugal (até cerca de 1820); 2) A imprensa romântica ou de opinião (1820 em diante); 3) A organização industrial da imprensa, marcada pela fundação do Diário de Notícias (1865; 1864 caso se considerem os números experimentais).
Sobre o primeiro período, o autor relembra que, considerando a periodicidade uma das marcas do jornalismo impresso, então a primeira publicação jornalística portuguesa é a Gazeta “da Restauração”, que propagandeava a causa independentista portuguesa e tinha um carácter noticioso. Diz que as técnicas jornalísticas eram rudimentares e que os autores escreviam, frequentemente, baseados nas crenças, rumores e boatos e não verificavam as informações. Realça que a censura e o licenciamento constituíram travões ao desenvolvimento do jornalismo português. No entanto, descreve a diversificação do panorama jornalístico nacional graças ao aparecimento de publicações literárias, científicas e de ideias no século XVIII, bem como o aparecimento dos primeiros diários, no final dessa primeira época. Evoca, também, a imprensa da primeira emigração, que chegou a circular clandestinamente no país, e a imprensa clandestina autóctone, quer durante as invasões francesas quer durante o período anterior à Revolução Liberal de 1820.
O segundo período identificado por Tengarrinha é a do aparecimento e crescimento da imprensa política, permitida pela Revolução Liberal de 1820, acontecimento que fez disparar o ritmo da publicação de periódicos por todo o Portugal. Classicamente, o autor relembra, porém, os constrangimentos à imprensa durante o período miguelista e a emigração liberal, que induziu à publicação de jornais portugueses no estrangeiro. Estes, recorda José Manuel Tengarrinha, entravam e circulavam clandestinamente em Portugal.
As lutas entre cartistas e setembristas durante o período de instabilidade e os constrangimentos à imprensa que daí advieram até à Regeneração e ao Rotativismo também são motivos de reflexão do autor.
A organização do jornal e a situação do jornalista no jornalismo oitocentista também não passam despercebidas a esse historiador da imprensa portuguesa, que as descreve assim:
“(...) um jornal de certa importância era, em geral, constituído por um editor (responsável perante as autoridades), por um redactor-responsável (ou chefe da redacção), por um ou dois noticiaristas encarregados da tradução das folhas estrangeiras e da informação nacional (...) e um folhetinista (...). Uma secção que toma então grande desenvolvimento é a de «cartas ao redactor», através da qual se estabelece uma comunicação íntima e constante entre o jornal e o leitor.
(...)
O chefe da redacção era o verdadeiro espírito e a alma da publicação. O jornal, geralmente, era um homem, mais até do que um partido. (...) Sendo o jornal todo, neles se concentravam não apenas as funções de redacção, mas também (...) as de direcção e administração. (...) Além dos elementos da redacção, o jornal contava com colaboradores eventuais, mais ou menos identificados com a linha política do jornal.” (Tengarrinha, 1965: 153-154)
Ortodoxamente, Tengarrinha refere, ainda, as restrições à liberdade de imprensa do final da Monarquia, sem se esquecer de abordar o aparecimento da imprensa ilustrada, o surgimento da imprensa operária e revolucionária, a evolução da tipografia e a introdução das rotativas, os movimentos reivindicativos dos tipógrafos, as formas de distribuição dos jornais nessa altura (por correio, por caminho-de-ferro, por assinaturas e através dos ardinas) e a sua influência na opinião pública. Sobre esta última temática, escreve Tengarrinha (1965: 174-177), realçando a ideia de agendamento que já vinha de autores como Gabriel Tarde:
“(...) qual seria, efectivamente, o grau de influência dos jornais na opinião pública? Eis-nos colocados, assim, no vórtice de um dos mais delicados e complexos problemas que levanta a história da nossa imprensa.
(...)
É claro que a questão não pode ser observada por grosso, e esse grau de influência varia, sem dúvida, de época para época, de acordo com as suas condições específicas e numerosos factores. Tão importante problema só poderá ficar esclarecido depois de se efectuarem bem orientadas sondagens e prospecções que nos elucidem sobre os pontos de contacto profundo entre as doutrinas dos periódicos e a atitude mental e linha política dominante nos diversos estratos sociais.
Do que não resta dúvida, porém, é que foi nesta 2ª época que o jornalismo exerceu mais vincada influência na opinião pública. O âmbito dos leitores alargou-se (...) não apenas às camadas da burguesia, mas até à pequena burguesia, especialmente depois de 1836.
Referindo-se ao peso da imprensa, diz Júlio César Machado, em Lisboa de Ontem (p. 212) (...): «Entendiam uns que, como princípio, a imprensa não tinha direito algum senão o que se lhe concedesse e que os jornalistas usurpavam e exerciam sem mandato um poder exorbitante que fazia com que, pelo facto de ser imprensa, tivesse mais peso nos negócios políticos do que as deliberações das câmaras.»
Os jornais, então, eram como que o centro da vida política e social. Por eles se liam os debates nas câmaras, se conheciam as disposições oficiais, se discutiam as directrizes do partido ou da facção expressas nos artigos de fundo, se sabiam os principais acontecimentos (...), se adquiriam conhecimentos (...), se dispunha de um meio de distracção e divertimento. Essa influência é tanto mais evidente quanto é certo que os leitores se agrupavam em torno dos jornais com que se identificavam ideologicamente, sendo de admitir, portanto, que as opiniões expostas (...) fossem reforçar ou corrigir as suas ideias.
(...)
Também não devem ser esquecidos alguns periódicos humorísticos de conteúdo político que, por esse tempo, alcançaram notável projecção. O facto de serem lidos com avidez (...) prova (...) [que] correspondiam (...) ao gosto do público.
(...)
Não há dúvida, portanto, de que a imprensa teve papel preponderante na formação [da] (...) opinião pública (...). Mas neste ponto da questão não podemos esquecer a esclarecida afirmação de R. Manevy: «A imprensa faz a opinião (...) na medida em que esta se quer deixar fazer» (...).”
O autor evoca, igualmente, ao longo das páginas dedicadas ao segundo período do jornalismo português, os grandes nomes de políticos e escritores que se viam a si mesmos como jornalistas e que colaboraram, como folhetinistas e redactores (articulistas), nessa que Tengarrinha denomina de “imprensa romântica”.
O terceiro período, de industrialização da imprensa, de acordo com Tengarrinha, faz esmorecer a imprensa opinativa e promove a imprensa informativa, o noticiário, a reportagem e, consequentemente, a figura do repórter.
“Esta preferência que o público mais largo manifesta pela informação objectiva (e não pela opinião), e até pelo pendor sensacionalista que a informação começa a tomar, só pode compreender-se por uma nova atitude mental da pequena e média burguesia (...) especialmente permeável aos relatos de aventuras ou de histórias de amor, como que buscando uma fuga emocional à estreita rotina do dia a dia.
(...)
Prefere-se cada vez mais a informação objectiva à discussão e à opinião, as notícias sensacionais aos editoriais reflectidos (...). Na necessidade de encontrar um público mais largo, o jornal procura manter uma atitude imparcialmente objectiva, dirigindo-se assim a todos, e não a um mercado específico de leitores ideologicamente afins, mas necessariamente muito mais restrito.
(...)
Nesse período, portanto, os jornais não ficam apenas reservados à classe relativamente pouco numerosa de eleitores censitários, mas pretendem dirigir-se a todos os que sabem ler, cujo número vai crescendo gradualmente. Embora sem esquecer a camada mais instruída, que forma (...) o grosso dos assinantes, dirige-se assim ao novo público, menos abastado e instruído, com gostos menos exigentes e requintados.” (Tengarrinha, 1965: 194)
Que influência passa, então, o jornal informativo a exercer sobre o público neste terceiro período da imprensa periódica portuguesa? José Manuel Tengarrinha (1965: 194 – 196) tenta responder à questão, embora numa perspectiva extremamente negativa:
“(...) não distribuindo senão uma informação fragmentária, superficial e sem continuidade, a imprensa (...) noticiosa, se é certo que pode esclarecer o leitor acerca de determinado acontecimento, não o ajuda a formar uma posição crítica em face dele. Atendo-se a dados meramente objectivos, não se identifica com o pensamento do leitor nem pretende, pelo menos aparentemente, exercer qualquer influência sobre ele. (...) Agora, as relações entre jornal e leitor são frágeis (...). É chocante verificar o carácter efémero das alterações de opinião provocadas pela imprensa periódica. Segundo um fenómeno que tem vindo a acentuar-se, o jornalismo pode obter resultados notáveis (...), mas não parece apto a orientar a opinião de maneira durável (...). Uma parte considerável dos leitores de jornais de grande tiragem não só não se identificam com a sua posição como até são contrários a ela. Foi esta observação que levou o jornalista Francis William a uma interessante inferência (...): «Quanto maior é a tiragem de um jornal tanto menos sensível aparece a sua influência sobre o leitor.»
O jornal agora é que tem de procurar o público, descer ao seu nível, adivinhar-lhe os gostos e apetites (...), ir ao encontro da sua mentalidade. Perde assim completamente o seu valor formativo. Com efeito, na medida em que os jornais deixavam de apoiar-se em facções políticas para serem mantidos por grupos financeiros, a imprensa transformou-se numa indústria (...). O jornal passa a ser, portanto, uma mercadoria (...) transitória, apenas com valor durante algumas horas.”
A transformação industrial da imprensa, recorda Tengarrinha, trouxe modificações nas redacções. Por um lado, a chefia de redacção passa a ter mais funções de coordenação e supervisão do que de redacção. O secretário de redacção torna-se fulcral para a organização diária do trabalho, numa redacção que pode comportar dezenas de jornalistas. O novo jornalista assalariado da imprensa industrial pode, eventualmente, não se identificar “ideologicamente com o que escreve (...), é apenas o operário de uma mercadoria que é necessário vender o mais possível e com a qual não está ligado nem pelas ideias nem pelos interesses, pois não participa nos lucros e recebe um salário fixo que lhe permite viver exclusivamente dessa actividade.” (Tengarrinha, 1965: 208)
Apesar de tudo, e tal e qual como surgiram jornais noticiosos em plena época de domínio da imprensa partidária, no final da Monarquia, numa época de crescente domínio da imprensa informativa, apareceu, diz Tengarrinha, uma imprensa combativa revolucionária, de cariz republicano, por um lado, ou de cariz anarquista ou socialista, por outro. Aliás, o autor não se esquece de referir, também, os jornais da oposição monárquica durante a República (até ao Estado Novo).
Neste ponto do seu livro, Tengarrinha relembra, identicamente, as tentativas de controlo da imprensa desenvolvidas durante este terceiro período da sua história do periodismo em Portugal.
A parte final do livro é constituída por índices remissivos e extensas notas, muitas das quais remetem para textos legais portugueses no domínio da regulação da imprensa.
2.8 Rosado (1966): a justificação do regime
Finalmente, A Imprensa, livro de Nuno Rosado (1966). É quase integralmente uma história canónica do jornalismo impresso português (com algumas pinceladas sobre o jornalismo estrangeiro), embora, no início da obra, o autor discorra, contextualmente, sobre a “missão da imprensa no mundo”. Em várias passagens nota-se, por outro lado, e a propósito da cobertura internacional da política colonial portuguesa, um discurso justificador e legitimador da acção de Portugal nas colónias e da política salazarista em geral. Salazar é enaltecido. As próprias fotografias inseridas no livro procuram mostrar que Portugal e Salazar não estavam internacionalmente isolados na época. Todas elas mostram Salazar ou Carmona com estadistas estrangeiros, não estando, portanto, minimamente relacionadas com o jornalismo ou com jornalistas.
Conclusões
Os dados apresentados permitem concluir o seguinte:
1. Os autores portugueses começaram a olhar para a história do jornalismo, nas suas diversas dimensões, no século XIX, portanto ao mesmo tempo que autores estrangeiros o faziam noutros países. Neste particular, Portugal acompanhou as tendências académicas que se desenhavam no exterior, não apenas devido a um efeito de contágio permitido pelas interacções académicas, jornalísticas (relembre-se o papel dos congressos internacionais da imprensa) e culturais, mas também porque os autores portugueses, ao observarem quer o processo de industrialização da imprensa quer o papel político dos jornais, se consciencializaram da crescente importância do jornalismo no mundo. No entanto, a concepção da imprensa como instituição social proposta pelas ciências sociais emergentes no século XIX só se insinuará em Portugal já no século XX, sendo observável, por exemplo, na obra Elementos para a História da Imprensa Periódica Portuguesa, de Alfredo da Cunha (1941).
2. As ideias revisionistas no que respeita à concepção e à construção da História também só chegaram a Portugal no século XX, reflectindo-se, então, em várias obras emblemáticas. As concepções da História positivista ou metodológica, de que são exemplos as histórias hemerográficas e biográficas do jornalismo e de jornalistas portugueses elaboradas ao longo de todo o período estudado, começaram, então, a ser contaminadas por outras correntes teóricas, primeiro por alguns aspectos do revisionismo marxista (principalmente no que se refere à inscrição dos factos históricos no âmbito de um sistema configurado pelas relações de produção preconizadas pelo materialismo histórico) e, mais tarde, pela Nova História (sobretudo no que respeita à concepção complexa da história e ao cruzamento de variáveis de natureza variada – económica, política, social, cultural, das ideias e mentalidades – para explicar os factos históricos, vistos mais como possibilidades e hipóteses do que como verdadeiros factos). Fundamentam esta conclusão a publicação de obras como: Um Jornal na Revolução: “O Mundo” de 5 de Outubro de 1910 (Baptista, 1966); História da Imprensa Periódica Portuguesa (Tengarrinha, 1965); Imprensa Operária no Portugal Oitocentista (1825-1905) (Oliveira, 1973); e em menor grau, o livro de Alfredo da Cunha (1941) intitulado Elementos para a História da Imprensa Periódica Portuguesa.
3. Finalmente, deve sublinhar-se uma ideia já avançada anteriormente: os historiadores portugueses do jornalismo que publicaram obras até ao 25 de Abril de 1974 deram particular atenção a objectos de estudo que lhes estavam próximos e/ou que lhes eram acessíveis, sendo de destacar as investigações sobre história biográfica, história do jornalismo regional, local e colonial, história de determinados órgãos de comunicação social e história do jornalismo nacional. Foram poucos os livros publicados sobre história do jornalismo em geral. Possivelmente, este dado traduz um certo desinteresse pelo tema, em hipotética relação directa com a inexistência de cursos superiores de jornalismo e de centros de pesquisa sobre jornalismo em Portugal durante o período estudado.
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[1] Em 1908, o mesmo autor tinha publicado uma monografia histórico-hemerográfica sobre o jornalismo em Terragona.
[2] Prakke, Dröge, Lerg e Schmolke (1977) tiveram também muita importância para que hoje se relembrem os pensadores alemães do século XVII que iniciaram os estudos jornalísticos: Rechenberg (orientador de Peucer no doutoramento), Christian Weise, Ahasver Fritsch, Tobias Peucer, Kaspar von Stieler, Daniel Hartnack e Johann Peter von Ludewig.
[3] Por exemplo, fala da relação Naufrágio e Lastimoso Sucesso da Perdição de Manuel de Sousa de Sepúlveda, por Jerónimo Côrte-Real, impressa em Lisboa, em 1594, por Simão Lopes. Paradoxalmente, esta indicação contradiz informações posteriores.
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O projecto de Teorização do Jornalismo em Portugal: Das Origens a Abril de 1974 é realizado com o apoio financeiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, através de fundos estruturais da União Europeia, designadamente do FEDER, e de fundos nacionais do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.