Pioneiros da teorização do Jornalismo em Portugal
Os pioneiros da teorização do Jornalismo em Portugal e a definição do território do jornalismo e dos jornalistas. [1]
Jorge Pedro Sousa
Universidade Fernando Pessoa e Centro de Investigação Media e Jornalismo
» Trabalho publicado integral ou parcialmente em:
Culturas Midiáticas, vol. II, n.º 2.
Resumo
Neste trabalho, procura-se lançar um olhar panorâmico sobre a forma como os pioneiros da teorização do jornalismo em Portugal conceptualizaram esta actividade e os seus principais agentes, os jornalistas, até 1974, ano da reimplantação da democracia no país. Observa-se que os autores pioneiros que se dedicaram à teorização do território do jornalismo e dos jornalistas em Portugal esgrimiram argumentos contrários sobre o conceito de jornalismo e de jornalista, havendo mesmo quem visse no jornalismo industrial e profissionalizado um aviltamento da actividade. Os teóricos portugueses não hesitaram, de facto, em analisar criticamente o jornalismo e a conjuntura em que este foi sendo exercido ao longo dos tempos, tal como não hesitaram em procurar fornecer-lhe um quadro referencial de valores e práticas susceptível de o moralizar, elevar e dignificar.
Palavras-chave: jornalistas; teoria do jornalismo; Portugal.
Abstract
This paper will try to launch a panoramic vision of how the first Portuguese journalism theorists conceptualized this activity and its main actors, the journalists, until 1974, year of the reestablishment of democracy in the country. It is observed that the early authors who have tried to conceptualize the territory of journalism and journalists in Portugal opposed arguments on the concepts of journalism and journalists. Some of them saw in industrial and professional journalism almost an ignominious activity. In fact, Portuguese theorists did not hesitate to critically examine journalism and the environment in which it was being exercised over time, as they did not hesitate to seek to provide a reference framework for journalism values and practices, trying to moralize, elevate and dignify the activity.
Keywords: journalists; journalism theory; Portugal.
Introdução
Até meados do século XIX, não houve jornalistas profissionais em Portugal. Havia, isso sim, redactores de jornais, preocupados em historiografar o mundo, em apresentar e analisar as novas ideias que surgiam ou ainda em deixar uma marca na política ou nas Belas Letras. Tengarrinha (1965) relembra, inclusivamente, que vários periódicos viviam de um só homem, proprietário, redactor e, por vezes, até mesmo impressor. Porém, o mesmo autor sustenta que, a partir de meados dos anos 1830, a situação se modificou. Os jornais começaram a integrar mais colaboradores, surgindo as funções de editor e de chefe-de-redacção. Para além disso, a qualidade do jornalismo português elevou-se, devido à colaboração de intelectuais e escritores com a imprensa. No entanto, foi lenta e gradual a transformação dos “cidadãos jornalistas” e dos “políticos e escritores de jornal” em jornalistas profissionais.
De facto, muitos dos “jornalistas” portugueses de oitocentos eram, sobretudo, cidadãos com ambições políticas que fundavam jornais doutrinários ou que colaboravam com estes para progredirem politicamente. Ser redactor, isto é articulista, tendo a missão de redigir os artigos políticos, era, assim, a grande ambição de muitos os que se diziam jornalistas, que usavam o jornalismo para promoção pessoal. António Rodrigues Sampaio, um dos políticos-jornalistas mais influentes de oitocentos, é um desses casos. Outros ainda ambicionavam tornarem-se conhecidos como publicistas, isto é, como divulgadores das novas ideias, como Latino Coelho. Esses “escritores de jornais” não sentiriam, certamente, pertencer a uma classe profissional, mas apenas a uma elite letrada e politizada que usava os jornais para fazer política ou “elevar os espíritos”. Aliás, muitas vezes digladiavam-se politicamente entre eles, através dos periódicos, o que destruía, à partida, qualquer sentimento gregário que pudessem alimentar. Os repórteres, cuja aparição no jornalismo português data dos últimos 35 anos do século XIX, eram vistos como uma espécie de jornalistas de segunda categoria. Os informadores eram ainda menos considerados, constituindo a “ralé” do jornalismo nacional: conforme a sua denominação indica, a sua missão essencial era informar os repórteres e os redactores do que acontecia.
Todavia, no final do século XIX, a industrialização do jornalismo português gerou a necessidade de aparição de um profissional com um novo perfil. Os meios jornalísticos industrializados queriam repórteres polivalentes que se devotassem a tempo inteiro ao jornalismo e não “políticos de jornal” nem “escritores de jornal” (apesar da importância dos folhetinistas), que faziam do jornalismo uma ocupação e não uma profissão e da escrita uma arte literária e/ou persuasiva mais do que uma competência técnico-profissional. Os jornalistas começaram, em consequência, a adoptar critérios profissionais de elaboração da notícia, abandonando um estilo pessoal, emotivo ou literário. O lead noticioso, a técnica da pirâmide invertida, a factualidade no relato, os procedimentos de objectividade, fizeram, nessa época, a sua aparição como elementos dos saberes e competências profissionais dos jornalistas portugueses, a exemplo do que se passava noutros países, contribuindo para a autonomização destes profissionais, para a consolidação do jornalismo como profissão e para a edificação de uma cultura e de uma ideologia próprias (SCHUDSON, 1978; TRAQUINA, 2002, 2004; GARCÍA GONZÁLEZ, 1999; GÓMEZ MOMPART E MARÍN OTTO, 1999a, 1999b; SOUSA, 2008a, 2008b; TENGARRINHA, 1965). Pode afirmar-se, mesmo, que à medida que o jornalismo se profissionalizou, os jornalistas melhoraram o seu estatuto social e autonomizaram-se como classe, cultivando um conjunto de conhecimentos e competências específicos, bem como normas de conduta que, ainda hoje, expressam o conjunto de valores que sustentam a sua ideologia e cultura profissionais.
Tengarrinha (1965: 190-191), por exemplo, defende que foi o processo de industrialização do jornalismo e de gradual aumento de importância da informação sobre a opinião, conciliado com as actividades das agências noticiosas e da adopção de tecnologias como o telégrafo e o telefone, que permitiu que o repórter fosse ganhando importância sobre o redactor:
Com os progressos técnicos e o melhoramento dos meios de comunicação e dos transportes, os jornais utilizam processos cada vez mais rápidos e seguros para a obtenção de notícias. À medida que se avança no terceiro quartel do século XIX, assiste-se a uma verdadeira revolução neste capítulo. Os jornais passam então a dispor de dois principais veículos informativos: para o noticiário do exterior, o telégrafo, que fora pela primeira vez utilizado ao serviço da imprensa periódica em 1845, pelo inglês Morning Chronicle, exemplo que foi depois seguido em todo o mundo (...); para o noticiário local, o repórter, ou seja, já não o redactor preso à sua secretária, aguardando que as notícias lhe venham cair nas mãos, mas o jornalista ágil, móvel, indo ao encontro do acontecimento para fornecer sobre ele a maior soma de pormenores possível. (...) Por tudo isto, o noticiário, ao mesmo tempo que alcança maior desenvolvimento, ganha exactidão e rigor.
É a partir da profissionalização do jornalismo, da existência de uma classe profissional com direitos e deveres, cultura, ideologia e competências específicas, que se pode falar desta actividade tal como hoje ela se concebe. A propósito, explicam Gómez Mompart e Marín Otto (1999, p. 230):
Cabe recordar que a primeira motivação da objectividade jornalística foi puramente comercial, uma exigência dos diários de massas (aqueles que são próprios de uma sociedade de cultura e comunicação de massas, quer sejam de “elite” ou “populares”) para satisfazer um público heterogéneo. Depois, não obstante, esta estratégia jornalística conformou-se − particularmente nos jornais de qualidade − como competência profissional, ou seja, como saber fazer (o jornalista apresenta todos os facto e aspectos para que o receptor extraia as suas conclusões) e como ideologia de responsabilidade profissional (as informações devem comprovar-se pelo menos por duas fontes fiáveis).
Por seu turno, a cultura jornalística e a cultura social nas democracias estabeleceram o princípio da democraticidade no acesso aos factos e informações, anteriormente na posse de uma elite. Consequentemente, inculcou-se no jornalismo a ideia de “vigia dos poderes”, que ajudou a legitimar o jornalismo e os jornalistas aos seus próprios olhos e aos olhos da sociedade:
A nova imprensa informativa independente, dirigida a um público potencialmente massivo (...), torna-se um elemento primordial da vida pública, converte-se em actor capaz, junto com outros, de definir a realidade social em torno de factos e assuntos que eleva à categoria de noticiáveis, além de favorecer com tal tarefa a integração dos cidadãos (...) através da leitura. O jornal assume, diariamente, a responsabilidade de converter-se em defensor da cidadania frente aos hipotéticos abusos e injustiças do poder. A sua arma será a objectividade, esgrimida como modo de compromisso com uma audiência que julga diariamente os actos e ideias publicamente difundidos. (GARCÍA GONZÁLEZ, 1999, p. 56).
Em consonância com o exposto, este trabalho tem por objectivo resgatar as principais ideias relativas ao território do jornalismo e dos jornalistas apresentadas por autores portugueses até 1974, ano da reimplantação da democracia no país. No texto, procurar-se-á responder às seguintes questões: o que se entendeu por “jornalismo” e por “jornalista” em Portugal, até 1974? Quais os valores profissionais mais relevantes para os pioneiros teóricos portugueses do jornalismo? Esses valores foram sempre os mesmos ou variaram com o tempo? Qual o cenário conjuntural que os teóricos portugueses do jornalismo atribuíam ao exercício da profissão e de que forma o perspectivaram? Criticaram-no ou não?
1. Jornalistas portugueses: do escritor de jornal ao repórter profissional
Como é que a literatura portuguesa pioneira sobre jornalismo reflectiu as mudanças conceituais, normativas e funcionais que, ao longo do tempo, transformaram a noção de jornalista em Portugal? De uma forma geral, pode dizer-se que nos primeiros textos eram elogiadas as competências literárias e a capacidade retórica e persuasiva dos polemistas e políticos que por escreverem em jornais ou por os manterem se intitulavam jornalistas (FONSECA, 1874; ANSELMO, 1882; ARANHA, 1886; PEREIRA, 1890; CUNHA, 1891; ARANHA, 1907/1908; SAMPAIO BRUNO, 1906; CARVALHO, 1924; SARMENTO, 1937; PORTELA, 1943; 1953; CABRAL, 1949; DACIANO, 1958; PEREIRA, 1960); um pouco mais tarde, as memórias de jornalistas acentuavam o espírito boémio e mundano, aventureiro e improvisador, mas também solidário, dos repórteres (ABREU, 1927; BRAMÃO, 1936; PORTELA, 1943; FERREIRA, 1945; SCHWALBACH, 1946; CABRAL, 1949; PORTELA, 1956; VIEIRA, 1960); numa terceira fase, os textos começam a acentuar o profissionalismo jornalístico (SINDICATO DOS JORNALISTAS, 1971; FREIRE, 1936; QUADROS, 1949). Observa-se, nesses livros, uma evolução no conceito do que é ser jornalista: em termos simples, o político polemista e literato dá lugar ao repórter boémio e este dá lugar ao jornalista profissional. Do mesmo modo, acompanhando um lento mas constante processo de profissionalização dos jornalistas portugueses, transparece dos livros uma mudança na concepção do jornalismo. Se primeiro a actividade é vista predominantemente como uma ocupação de “escritores de jornal” e polemistas, que usam as suas capacidades retóricas “inatas” para persuadir um reduzido número de leitores e que, frequentemente, nem sequer auferem qualquer remuneração, progressivamente passa a ser vista como profissão informativa, remunerada, auto-regulada por uma deontologia própria onde se espelham os valores profissionais, com competências profissionais específicas (como o domínio das técnicas da notícia, da entrevista e da reportagem) que podem ser ensinadas e aprendidas. O jornalismo emerge dessas reflexões como arte liberal.
A partir do momento em que a afirmação do repórter profissional sobre o “escritor de jornal” se fazia gradualmente sentir, os autores procuraram explicar e comentar esse fenómeno. Assim, para Joaquim Salgado (1945, p. 61-62), a profissionalização dos jornalistas radica na sua “proletarização”, provocada pela industrialização da imprensa:
À industrialização da imprensa seguiu-se, era inevitável, a proletarização do jornalismo. Menos que intelectuais (...), os plumitivos de hoje são mais «profissionais da imprensa» do que jornalistas. Nas redacções, a sua função está taxativamente determinada, e raro eles a excedem, não lhes competindo a faculdade de iniciativa. A própria variedade e complexidade com que o periódico é feito gerou a especialização, do que resultou o trabalho ser dividido por secções e realizado por um pessoal que se confina às especialidades inerentes ao seccionamento estabelecido. Concordamos que o desenvolvimento que a factura do jornal tomou, aconselha e impõe esse sistema de trabalho; mas isso não nos inibe de reconhecer que tal sistema anulou, senão no todo, pelos menos numa grande parte, aquilo que no jornalismo e no jornalista havia de independência e espontaneidade, ou seja, a expressão mais forte e mais cara da sua inteligência e da sua personalidade.
Por seu turno, Nuno Rosado (1966, p. 19-23), vê no jornalista um profissional, um repórter, frequentemente especializado, para poder comentar a notícia e orientar os leitores. A distinção entre a figura do repórter profissional e do “escritor de jornal” já é para esse autor, que escreve em 1966, um facto:
“O jornalista não é, portanto, o dramaturgo que acidentalmente escreve um artigo, nem o político que de tempos a tempos publica um ensaio. O jornalista desempenha as suas funções quotidianamente, vivendo em pleno as missões de que é incumbido a fim de as poder transmitir, com o maior realismo e brevidade, ao público” (ROSADO, 1966, p. 19).
Nuno Rosado (1966, p. 21-22) pretende, ainda, que uma das principais qualidades do jornalista é o espírito da conquista da notícia, por outras palavras, a capacidade de usar os mais diversos expedientes para obter informações exclusivas em primeira-mão, batendo a concorrência.
Uma das primeiras rupturas que levou à autonomização do campo jornalístico em Portugal residiu na separação entre jornalismo e literatura, a partir de meados do século XIX. No entanto, para alguns dos pioneiros da reflexão portuguesa sobre jornalismo, este continuava a ser visto, a meio do século XX, essencialmente como um ramo da literatura. Joaquim Salgado (1945, p. 59), por exemplo, ainda classificava o jornalismo como “o que logrou mais popularidade” entre “todos os géneros literários”. Apesar disso, José Manuel Tengarrinha (1965, p. 155) esclarece que, efectivamente, se assiste a uma separação entre os territórios do jornalismo e da literatura a partir de meados de oitocentos:
É a partir dessa altura que se poderá dizer haver grande diferença entre estilo literário e estilo jornalístico (...). O que começa a caracterizar o estilo jornalístico[2] é a sua maior agilidade e vibração, a construção fácil, permitindo uma leitura corrente (...), visando um maior poder de comunicabilidade, o sentido agudo da oportunidade, que, não raro, sacrifica a perfeição à rapidez, um estilo mais emocional que raciocinado; por outro lado, a análise não tem a preocupação de ser profundamente exaustiva (...) mas sim de mostrar várias facetas (...) utilizando não o raciocínio lento e pesado, mas o raciocínio agudo e ágil.
Também Rodrigo Veloso (1910/1911), ao biografar vários políticos que faziam da escrita de jornais uma ocupação e se intitulavam jornalistas, testemunha, criticamente, no início do século XX, o avanço do conceito do jornalismo como profissão e do jornal como mercadoria noticiosa e o incómodo que isso causava entre as elites que desprezavam os profissionais da reportagem e viam o jornal como um dispositivo político e de “elevação dos espíritos”. Aliás, o autor dividia os jornalistas entre os “jornaleiros”, profissionais do jornalismo que auferiam salários, e os outros, que tinha em mais alta consideração, por divulgarem “a boa doutrina, lições proveitosas para instrução e educação do povo” e encararem o jornalismo como “sacerdócio”.
Comungando das ideias de Veloso, o político e jurista António Cabral (1949, p. 24), que se via a si mesmo como jornalista e membro da elite bem-pensante, separada da ralé de indigentes do conhecimento, disse que nem todos os indivíduos que escrevem em jornais, incluindo-se, aqui, alguns profissionais, são verdadeiros jornalistas. Para ele, um verdadeiro jornalista distingue-se “pelo seu saber, pela sua arte, pelos seus dotes de escritor, pela sua cultura” devendo ser capaz de “tratar de qualquer assunto, prontamente, em qualquer caso”, “explanar, estudar e esclarecer todo e qualquer problema que, de repente, provoque a discussão e interesse o espírito dos sabedores e até do grande público, incapaz de destrinçar as mais difíceis e emaranhada teses da ciência, da arte, da religião, da política.”
Já João Paulo Freire (1936, p. 27) observava o jornalismo como profissão liberal. Ele destaca a importância da função informativa dos jornais em detrimento da sua função opinativa ou mesmo polemista. As suas palavras são consonantes com a transformação gradual da noção do que é ser-se jornalista. O “profissional” da boémia, da aventura ou da polémica dava, gradualmente, lugar ao profissional da informação, apesar das resistências que, na reflexão teórica produzida, se notam a propósito dessas mudanças.
Quando o jornalista polemista deu lugar ao repórter profissional, a lógica, densidade e estilo do argumento deixaram de ser a meta dos jornalistas. Livros de memórias de jornalistas como Jorge de Abreu (1927), Bramão (1936) e Rafael Ferreira (1945) mostram que a obtenção de informação exclusiva em primeira-mão se tornou, ao invés, a demonstração mais clara de competência e valor de um indivíduo como jornalista. Passam a ser elogiadas as capacidades de improviso, de adaptação e resolução dos problemas e de recurso aos mais diversos expedientes para obtenção de informações. Bater a concorrência já não significava ser-se mais persuasivo nem tecer discursos políticos no melhor estilo, mas sim ter-se a informação que mais ninguém tinha. Também transparecem desses textos de memórias (ABREU, 1927; BRAMÃO, 1936; FERREIRA, 1945) as cumplicidades dos membros da “tribo jornalística”, como lhes chama Nelson Traquina (2004), unidos pela vida (boémia) que levavam, pela profissão comum e pelos valores profissionais (admiração pelas “cachas”, respeito pela qualidade da expressão, apreço pela capacidade de socialização e convivência, sentido de missão...).
2. Valores profissionais e compromisso ético
Quais foram os principais valores profissionais defendidos na literatura pioneira sobre jornalismo, em Portugal? Houve alguma mudança no entendimento português de quais seriam os valores centrais da actividade ao longo do tempo?
O apego à verdade, à consonância entre o que é dito a propósito da realidade perceptível e essa mesma realidade, é, talvez, o mais relevado e constante dos valores jornalísticos defendidos pelos pioneiros da teorização do jornalismo em Portugal (ARAÚJO, 1931; VELOSO, 1910/1911). Alberto Bessa (1904: 27), por exemplo, como outros autores, associa o mérito do jornalismo à condição deste respeitar o histórico valor da verdade: “embora as maiores instituições humanas se alienem ou enxovalhem, restará sempre uma nova – a imprensa, capaz, por si só, de reconquistar todas as outras quando associada à (...) verdade” (BESSA, 1904, p. 27). Araújo (1931), para além da verdade, defende a integridade como valor jornalístico.
Nuno Rosado (1966, p. 11-13 e 16-17), por seu turno, considera ser principal dever do jornalismo “informar com verdade”, mas acentua, igualmente, a importância da honestidade.
Outros valores profissionais realçados pelos teóricos portugueses do jornalismo são a independência, a coragem, o civismo e a integridade, que asseguram que o público considere o jornal credível:
O jornal tem de ser um órgão vivo, correspondente a uma actividade necessária, executando um trabalho fecundo e proveitoso, servindo a inteligência (...). Não deve ter hesitações nem fraquezas (...). No curso dos factos e das ideias entram como elemento de apreciação, de crítica e de estudo, o temperamento, o valor e o mérito do jornalista, que é o factor subjectivo e pessoal, moral e responsável, do exercício da imprensa. Deve ser de coragem, de independência e de civismo formado o seu carácter; de penetração, de lucidez e de imparcialidade, formado o seu critério (...) a sua alma votada a todas as concepções mais elevadas (...) na justiça, na verdade e no bem.
O cachet pessoal que o temperamento do jornalista possa dar ao seu trabalho não o prejudica se ele tiver (...) originalidade e mérito. O que é preciso ter em atenção é que não basta a um jornal possuir a admiração dos que o lêem: necessita de ter a confiança daqueles que o procuram, porque o jornal é mais dos seus leitores do que dos seus redactores ou proprietários (...).
A característica da confiança que inspira um jornal está na segurança que possa ter o seu público (...), sendo a independência de opinião de um jornal o único meio de garantia de uma tal segurança. (BESSA, 1904, p. 30-31 e 34-35)
O já referido Rodrigo Veloso (1910-1911) esgrime como alguns dos mais relevantes valores jornalísticos a independência e a livre obediência à voz da consciência.
Também a independência e a liberdade são encaradas como valores jornalísticos norteadores da profissão por João Paulo Freire (FREIRE, 1926). No entanto, a verdadeira “independência jornalística”, de acordo com este último autor (FREIRE, 1934, p. 162), só teria existido em Portugal na primeira metade do século XIX, quando os jornais (políticos) representavam as vontades e os pensamentos de um único homem.
Os valores profissionais dos jornalistas remetem para a questão do comprometimento do jornalista com o público, no sentido de lhe proporcionar a melhor informação. Ou seja, remetem para a ética e a deontologia profissionais. A esse nível, e de acordo com Alberto Bessa (1904, p. 35), o jornal precisa, para concretizar a sua missão, de respeitar uma espécie de contrato que estabelece com o leitor, assente nos valores profissionais:
Seja por afinidade de pontos de vista e de sentimentos, ou por comprovadas tradições de seriedade, de escrúpulos, de independência e de hombridade, o leitor acostuma-se a um jornal (...) e quase lhe entrega a direcção do seu espírito, a justificação dos conceitos que emite, dos juízos que forma, das críticas que faz e até, por vezes, das resoluções públicas que toma. Para que este facto se generalize, é necessário que o jornal se tenha identificado com o geral da opinião, já dirigindo-a, já reflectindo-a (...).
Segundo Bessa (1904: 36), é a responsabilidade pessoal do jornalista a assegurar o respeito pelo contrato implícito entre o leitor e o jornal, de acordo com o princípio da máxima liberdade – máxima responsabilidade.
Nuno Rosado (1966, p. 11-13), por seu turno, explicita que “Se a informação for deturpada, o leitor tende a perder a confiança; se os critérios [de noticiabilidade] (...) pecam por ausência de fundamentos, por inconsciência ou má fé, surge a desorientação.” Esse autor é particularmente crítico para com a propagação da mentira e do boato através dos meios jornalísticos e para com o sensacionalismo, que apenas aproveitaria, na sua versão, a “minoria de leitores apreciadora dos escândalos”. Por isso, embora não o diga claramente, o autor procura justificar a censura, que, ao tempo, estava instituída no país, até porque acrescenta às funções da imprensa uma acção moralizante:
A verdade contida em certa notícia deve ser exposta não só com clareza e simplicidade mas também com honestidade (...) A independência que revela no exercício da sua missão mede-se pelos conceitos valorativos que utiliza tendo por ponto de referência os princípios da ética e os superiores interesses da colectividade. A imprensa tem, sobretudo na sua função orientadora, uma função cultural e moralizadora. (ROSADO, 1966, p. 16-17)
Joaquim Salgado (1945, p. 88) considera, por sua vez, que para cumprir idealmente a sua missão cívica, a imprensa tem de se constituir como “um foro cívico em prol da comunidade (...), um serviço social em proveito da Nação.”
Fidelino de Figueiredo (1957, p. 203-204) pretende, finalmente, que um jornalista é um “professor de actualidade, ensina a vê-la, a julgá-la e a extrair dela um comportamento”. Por isso, sentencia: “É tão necessária uma Ordem dos Jornalistas, com a sua disciplina moral e profissional, o seu juramento de fidelidade ao estatuto da Ordem e à sua deontologia, como foram necessárias uma Ordem dos Médicos e uma ordem dos Advogados”.
3. A crítica ao jornalismo e às condições do seu exercício em Portugal
Apesar das transformações notadas no exercício da actividade e dos valores jornalísticos apregoados pelos jornalistas e pelos teóricos do jornalismo, o exercício do jornalismo em Portugal foi, ao longo dos tempos, complexo ou até mesmo complicado, inclusivamente por causa da censura, particularmente activa durante o Estado Novo (1926-1974). Victor Falcão (1932, p. 202 e 206-207), por exemplo, na sua colectânea de crónicas intitulada Reflexões e Paradoxos, dizia que os jornalistas portugueses eram “maníacos” que trabalhavam sem terem “o direito de se queixar do menosprezo com que são tratados”. Denuncia, ainda, o mercantilismo da imprensa e a cedência dos jornalistas às pressões dos proprietários dos jornais.
João Paulo Freire (1934, p. 161), por seu turno, comentava que não haveria em Portugal “independência jornalística”, pois para se criticar algo ou alguém seria necessário ter dinheiro para se suportarem as consequências judiciais desses actos.
Fernanda Reis (1943, p. 7) considerava que os condicionalismos em que se exercia o jornalismo em Portugal levavam os jornalistas à apatia e à indiferença, matavam-lhes a imaginação e impediam que a imprensa tivesse uma verdadeira “utilidade pública”. Escreveu ela: “O jornalista (...) não escreve o que sente e pensa. (...). Não lho consentem. Tem de escrever e traduzir – muitas vezes contrariado – aquilo que os donos da empresa industrial querem exprimir ou julgam pensar” (Reis, 1943, p. 7). Para ela, a imprensa andava demasiado ocupada a procurar o lucro, esquecendo-se de “divulgar a cultura, informar com verdade e ponderação, esclarecer e orientar” (Reis, 1943, p. 6).
De facto, a produção intelectual portuguesa sobre jornalismo abordou com grande relevo a pretensa perda de independência e interesse público dos meios de comunicação social e dos jornalistas pela sua ligação a grupos económicos e pela sua obediência aos interesses dos investidores (TENGARRINHA, 1965, p. 194-196). Nuno Rosado (1966, p. 90), por exemplo, sustenta o seguinte:
Os altos interesses financeiros de determinados grupos, detentores (...) de jornais e de outros órgãos de informação, nem sempre se curvam perante as realidades. Quer dizer: Uma grande parte da imprensa (...) tende a comercializar-se, isto é, em vez de informar objectivamente vende notícias.
Joaquim Salgado (1945, p. 8-9 e 61), no mesmo sentido, sublinha que o “carácter manifestamente mercantil” da imprensa impõe-lhe “limitações” e afecta a sua independência, pois “Os grandes diários são empresas de poderosos capitais – e visam, como não podia deixar de ser, uma exploração lucrativa”:
A industrialização e outros factores (...) transformaram o jornalismo num profissionalismo respeitável (...) mas sem (...) a força original, a independência, que distinguiram a acção dos plumitivos do século XIX. Eles podiam (...) não obedecer a ideias mestras de reconstrução; é possível que os movesse somente a senha dos interesses mesquinhos; admitimos, mesmo, que se não dessem conta das responsabilidades que se lhes impunha (...). Mas se, por um lado (...) falharam (...), dilacerando-se em lutas (...) e em cobiças insofridas, toda a inteligência, brilhantismo de forma, energia e vigor de estilo foram incomparáveis (...), tudo (...) imolando aos efeitos literários e à (...) febre das ambições.
Para Salgado (1945, p. 63-64), a obediência teórica do jornalismo a dois senhores, o público e os proprietários, é um “drama” que decorre da sua organização industrial:
O drama da imprensa parece consistir principalmente (...) na dupla natureza pública e privada (...) do jornalismo. Não há dúvida de que o jornalismo exerce uma função pública (...), visto que se destina a orientar, guiar, esclarecer a opinião; a par dessa função, compete-lhe, porém, sustentar os interesses das empresas (...) e até defender as pretensões ou planos de grande vulto que (...) os donos dessas empresas pretendam fazer vingar – pretensões e planos cujo reflexo social nem sempre se faz sentir em proveito da comunidade. (...) Nos países de intenso desenvolvimento, não há dúvida que a imprensa serviu os interesses capitalistas, por vezes duma maneira verdadeiramente escandalosa. (...) Como tantas outras questões (...), a imprensa sofre os vícios das condições gerais em que a vida social está organizada (...).
A crítica de Salgado e outros autores ao mercantilismo da imprensa e à sua inserção no sistema capitalista, para alguém mais desavisado, pode ser uma surpresa, dado que foram feitas em pleno Estado Novo salazarista, mas, na realidade, o juízo de Salgado indicia apenas a influência do pensamento católico anti-capitalista num certo grupo de intelectuais portugueses, entre os quais alguns dos que apoiaram doutrinariamente o regime corporativo de Salazar, ele próprio oriundo da intelectualidade católica e rural que via na pobreza, no trabalho e na honestidade algumas das mais importantes virtudes. Por isso, embora Salgado concorde que se deve conceder à imprensa “a liberdade máxima para o cumprimento da função que lhe cabe”, ele, tal como outros autores (por exemplo, ROSADO, 1966) admite a censura prévia, justificando-a com a necessidade de evitar, precisamente, que o jornalismo caia na licenciosidade, no “desbragamento, no insulto, na malsinação das coisas mais sagradas” (SALGADO, 1945, p. 66). Na versão de Joaquim Salgado, aliás, a censura não seria mais do que uma forma de proteger um povo civicamente impreparado:
não existindo condições de civismo e de elevação que permitam o exercício proveitoso do curso das ideias; carecendo o povo daquela instrução mínima que o habilite para as tarefas que a sua própria qualidade lhe impõe; faltando, em suma, o espírito de cidadania (...), poder-se-á conceber o estabelecimento efectivo duma liberdade de imprensa destituída de qualquer controle fiscalizador? (...) Que os homens (...) decidam em consciência. (SALGADO, 1945, p. 68)
Apesar de tudo, Joaquim Salgado (1945) encontra na imprensa coisas positivas e coisas negativas, ou “virtudes e malefícios”, conforme o título do seu livro. Subscreve, aliás, a posição do jornalista francês Veuillot, para quem a solução para evitar os males do jornalismo é a multiplicação dos jornais, de forma a aumentar a polifonia no espaço público e a evitar que alguém se proclame, sem oposição, “dono” da verdade. Isso entronca, inclusivamente, com o seu conceito de opinião pública, já que, para Salgado, embora a expressão seja correntemente utilizada como sinónimo de maioria, na realidade não há uma opinião pública, mas várias correntes de opinião. Para além disso, conforme ele próprio salienta, mesmo quando existe, a propósito de um assunto, uma corrente de opinião maioritária, quantidade não significa qualidade e muito menos razão. Contudo, para ele ,se não existisse a necessidade de se atender às condições concretas de uma sociedade, a liberdade de imprensa seria sempre a melhor solução. (SALGADO, 1945, p. 70-71) Mas mantendo-se a “contradição entre o carácter público e o fim privado da imprensa”, então:
a criação e desenvolvimento de uma imprensa livre (...) é das soluções mais difíceis (...), [pois] se o periodismo mercantil anula as virtuosidades originais que caracterizam a (...) imprensa, o jornalismo livre pode ser de efeitos ainda mais negativos, desde que resvale, como a experiência demonstrou já, numa aguda hipertrofia personalista, em que aos interesses da comunidade se sobreponham as ambições dos chefes, as paixões facciosas, o dogmatismo virulento das seitas. (SALGADO, 1945, p. 84-85)
Num registo diferente, João Arnaldo Maia (1974) acusa os meios jornalísticos da sua época de serem dominados por uma “minoria dominante” sendo usados como uma “arma ao serviço do Governo para envenenar a opinião pública”. O autor exigia, assim, que na eventualidade do regresso à democracia no país (o que veio efectivamente a acontecer nesse mesmo ano – 1974) se instituísse uma política de controlo democrático dos meios de informação e que um futuro Governo democraticamente eleito viesse a apoiar financeiramente os meios de comunicação de partidos políticos e sindicatos. Também Miller Guerra (1971) denuncia os alegados perigos da concentração das empresas jornalísticas, pois, de acordo com o autor, os monopólios jornalísticos potenciam a uniformização, a banalização e a mercantilização dos conteúdos informativos, que passam a estar sujeitos às leis do mercado. “O objecto próprio (...) da imprensa que consiste (...) em informar, educar e distrair, decai ou degenera numa espécie de mercadoria em que o divertimento constitui a preocupação principal. As consequências (...) são desastrosas para a cultura dum povo” e para o exercício da crítica, afirma Miller Guerra (1971, p. 78).
Um outro alvo das críticas dos teóricos portugueses ao jornalismo é a vertiginosa velocidade da informação, que deixa pouco tempo à reflexão, mas também aumenta o poder dos meios de comunicação social, que ditam a actualidade: “Hoje é-se célebre em vinte e quatro horas”, dizia Augusto de Castro (cit. in ROSADO, 1966, p. 122).
Considerações finais
Pode dizer-se que as obras portuguesas pioneiras que se dedicaram à teorização do território do jornalismo assumem, predominantemente, três dimensões:
1) O estabelecimento, em cada época de desenvolvimento da actividade, do conceito, funções e papéis sociais dos jornalistas;
2) A intenção de moralização e dignificação das práticas profissionais e da própria profissão (para uns) ou ocupação (para outros);
3) A crítica aos media e às condições do exercício do jornalismo em Portugal
Deve dizer-se, porém, que, conforme se verificou, os autores pioneiros que se dedicaram à teorização do território do jornalismo e dos jornalistas em Portugal esgrimiram argumentos contrários sobre o conceito de jornalismo e de jornalista, havendo mesmo quem visse no jornalismo industrial e profissionalizado e na mercantilização da informação um aviltamento da actividade. De qualquer modo, independentemente dos particularismos conceptuais, os teóricos portugueses não hesitaram em analisar criticamente o jornalismo e a conjuntura em que este foi sendo exercido ao longo dos tempos. Fizeram-se, por exemplo, críticas veladas à censura, mas também houve quem a defendesse. E criticou-se, sobretudo, a orientação dos meios jornalísticos para o lucro e para a notícia sensacional não para a produção de informação formativa.
Finalmente, pode afirmar-se que os pioneiros teóricos portugueses não hesitaram em procurar fornecer ao jornalismo, em acelerada transformação, um quadro de valores e práticas susceptível de o moralizar, elevar e dignificar. Esses valores não eram, todavia, novidade. Eles dizem respeito ao apego à verdade, à integridade e à honestidade e são exactamente os mesmos que Tucídides, Xenofonte ou mesmo Heródoto procuraram colocar em prática na Grécia Antiga, quando inventaram a História como disciplina. O jornalismo é – na realidade – herdeiro dessa longa tradição historiográfica.
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[1] Texto produzido no âmbito do projecto de pesquisa Teorização do Jornalismo em Portugal: Das Origens a Abril de 1974, referência PTDC/CCI-JOR/100266/2008, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Portugal).
[2] Neste ponto, a tese de Tengarrinha pode ser contestada, pois os primeiros jornais portugueses do século XVII já evidenciavam características noticiosas, sendo de fácil leitura. Isto é, no século XVII já se encontra no jornalismonacional um estilo jornalístico bem definido, que Tengarrinha identifica apenas no século XIX.
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O projecto de Teorização do Jornalismo em Portugal: Das Origens a Abril de 1974 é realizado com o apoio financeiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, através de fundos estruturais da União Europeia, designadamente do FEDER, e de fundos nacionais do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.