Quando a modernidade bate à porta

Quando a modernidade bate à porta: a liberdade de imprensa em questão no Portugal do século XIX

(WHEN MODERNITY RINGS AT THE DOOR: FREEDOM OF THE PRESS IN QUESTION IN PORTUGAL DURING THE NINETEENTH CENTURY)

Jorge Pedro Sousa

Universidade Fernando Pessoa e Centro de Investigação Media e Jornalismo

Resumo

Apesar de o jornalismo ter feito o seu aparecimento no Portugal no século XVII, a formação de um verdadeiro espaço público mediatizado no país ocorreu somente no século XIX, graças à Revolução Liberal de 1820, que, trazendo a liberdade de imprensa, permitiu a fundação de centenas de jornais políticos e político-noticiosos. Mas a liberdade de imprensa, ademais restringida durante vários períodos ao longo desse século, não foi bem recebida por todos. Assim, durante todo o século XIX teorizou-se em Portugal sobre as suas vantagens e desvantagens. Este texto procura resgatar os traços essenciais desse debate. A conclusão a que chega é que em Portugal havia plena consciência dos valores que norteiam a aceitação do princípio da liberdade de imprensa.

Palavras-chave: liberdade de imprensa; Portugal; século XIX.

Summary

Although journalism have made its appearance in Portugal in the seventeenth century, the formation of a true mediated public space in the country occurred only in the nineteenth century, thanks to the Liberal Revolution of 1820, which, bringing the freedom of the press, allowed the foundation of hundreds of political newspapers. But freedom of the press, moreover restricted during various periods throughout that century, was not well received by all. Thus, throughout the nineteenth century, some authors have theorized, in Portugal, on the advantages and disadvantages of the freedom of the press. This text intends to recover the essential features of this debate. One conclusion can be drawn: Portuguese scholars were fully aware of the values that guide the acceptance of the principle of the freedom of the press.

Keywords: freedom of the press; Portugal; 19th century.

INTRODUÇÃO

Foi no início do século XIX que em Portugal se começaram a publicar com regularidade textos que abordavam a questão da liberdade de imprensa. Em grande medida, essa discussão deriva da penetração, no país, dos valores iluministas e revolucionários desde o século XVIII. Porém, a causa próxima desse fenómeno foi a luta ideológica e política que opôs os conservadores absolutistas, que viam ruir o seu amado Antigo Regime, aos constitucionalistas liberais, que queriam um regime em que o Rei reinasse mas não governasse, segundo a célebre máxima de Benjamin Constant. Estes últimos tiveram de legitimar o liberalismo, imposto pela Revolução de 1820, em nome de conceitos abstractos como “opinião pública”, “povo” ou “vontade nacional” (TENGARRINHA, 2006, p. 15).

Foi precisamente a discussão sobre a ideia de opinião pública que gerou o debate sobre a liberdade de imprensa. “O sistema representativo não é outra coisa senão o governo pela opinião pública”, escrevia-se no Censor Português, um jornal da esquerda liberal, de 11 de Janeiro de 1823. E o Campeão Português, outro dos muitos jornais portugueses que viram a luz do dia graças ao triunfo da Revolução Liberal e ao acolhimento legal e constitucional do princípio da liberdade de imprensa, dizia, no seu número de 6 de Abril de 1822, que os deputados, governantes e outros representantes do povo “estão de direito e de facto sujeitos à suprema censura do supremo tribunal da opinião”. Joaquim Maria Alves Sinval, em acréscimo, escreveu no seu Astro da Lusitânia, a 18 de Novembro de 1820:

“(...) sem imprensa livre não há liberdade civil; todos conhecem que o exercício de tal liberdade é quem faz conter (...) [o] despotismo, os ministros (...) e os administradores da Fazenda Pública que não desejam dar conta das suas administrações.”

Como fazer, então, submeter a acção dos representantes da Nação, a actuação daqueles que a governam, à avaliação dos cidadãos? Como publicitar os actos de governo e administração? Como manter o contacto entre governantes e governados? Como tornar possível acções concertadas nas sociedades humanas crescentemente complexas? Como mobilizar os cidadãos e promover o apoio a determinadas causas? Para os liberais, a resposta era óbvia e já tinha sido encontrada na Inglaterra seiscentista, quando, no contexto da guerra civil, surgiram os primeiros periódicos políticos: através dos jornais. Autores como Alexis de Tocqueville (1835/2005) ou Jeremy Bentham (1819; 1843) tinham-no, aliás, teorizado. Bentham (1819; 1843), por exemplo, via no debate político através dos jornais uma extensão à sociedade do debate político parlamentar, através do exercício público da razão político-argumentativa. Este último autor pode, aliás, ser considerado um precursor das teses habermasianas sobre as mudanças estruturais na esfera pública (HABERMAS, 1984).

Há que dizer, porém, que o campo conservador não ficou parado e também esgrimiu argumentos contra a liberdade de imprensa. Conservadores adeptos “do Trono e do Altar”, como o padre José Agostinho de Macedo (1821a; 1821b; 1821c), criticaram a proliferação de jornais, que viam como divisores da Nação e veículos de irrelevâncias.

O presente trabalho visa, em consonância com o exposto, resgatar alguns dos contributos dados por autores portugueses, e publicados em livro, ao debate sobre a liberdade de imprensa durante o século XIX e até ao ano de implantação da República (1910). Visa responder a uma questão central: Quais os principais argumentos a que recorreram os conservadores e os liberais portugueses na luta simbólica que, através dos livros e opúsculos, travaram contra ou a favor da liberdade de imprensa?

1. A CRÍTICA AO JORNALISMO E O INÍCIO DO DEBATE SOBRE A LIBERDADE DE IMPRENSA

Num país que, a partir de 1820, graças à Revolução Liberal, descobriu a liberdade de imprensa e assistiu a um movimento de fundação de periódicos como até então nunca tinha sido visto, os escritos do período 1820-1823, desde a Revolução até ao bem-sucedido golpe absolutista da Vilafrancada (1823), são bem ilustrativos do calar com que se criticava ou defendia a liberdade de imprensa e a proliferação de jornais.

Os conservadores absolutistas viam a liberdade de imprensa e a propagação das ideias liberais através dos jornais como um ataque à Monarquia de direito divino e à Igreja Católica, que consideravam o melhor dos regimes. Mais, os conservadores olhavam para os periódicos, em particular para os periódicos políticos, como instrumentos de confusão dos povos e de manipulação das gentes para as levar a seguirem projectos insensatos (ver, por exemplo: MACEDO, 1821a; 1821b; 1821c). No pólo oposto, os liberais defendiam a liberdade de imprensa e a publicação de jornais como decorrentes do direito natural do homem à comunicação dos pensamentos e opiniões, como factores de progresso, de difusão de ideias e de conhecimentos, de acompanhamento dos actos políticos e de contenção do poder político para não se cair novamente no despotismo (por exemplo, CAVROÉ, 1821a; 1821b). O principal historiador “comunicológico” português da imprensa oitocentista, José Manuel Tengarrinha (1993, 35), assume, aliás, juízo semelhante:

“Uma linha de separação (...) poderemos divisar: os que atacavam sobretudo as Cortes, defendiam o Trono e a superioridade do Governo (que exercia o poder executivo em nome do Rei ou, após 4 de Julho de 1821, sob a sua directa nomeação e dependência), em regra exageravam os perigos externos e acusavam com violência, não raro descabelada, os dirigentes liberais ou responsáveis do regime (eram, em geral, os antiliberais); e os que defendiam a superioridade das Cortes como directa emanação da Nação e desferiam ataques pessoais mais comedidos (eram, em geral, os liberais menos moderados).”

Um autor que clamou contra o “excesso” de periódicos foi José Daniel Rodrigues Costa (1826a; 1826b), redactor do satírico periódico antiliberal Almocreve das Petas. Ele vaticinava, embora erroneamente, que “as lotarias e os periódicos hão-de acabar muito antes do que se pensa, as lotarias como esponjas por não terem já que chupar ao povo, os periódicos por lhes faltar matéria para encherem a folha” (COSTA, 1826a, p. 4). Também bradou contra a agressividade fundamentalista dos “jornalistas”:

“Fora com a profusão de tais periódicos!

Isto sonho não é, nem é quimérico!

Com eles anda o povo cadavérico

Apesar de ainda terem preços módicos.

Poucos folhetos há sendo metódicos,

Porque os autores têm génio colérico

(...)” (COSTA, 1826b, p. 2)

No campo oposto, em 1823, uma “testemunha ocular” anónima (presumivelmente, o próprio acusado), escrevia no Relatório da Acusação Intentada (...) Contra (...) Luís António Ferreira Reis:

“A livre comunicação dos pensamentos por via da imprensa é um dos direitos mais apreciáveis que nos afiança a sagrada Constituição da Monarquia. Só por este modo podemos pôr (...) ante os olhos do público os abusos do poder, as prevaricações dos empregados e as fraudes e embustes dos malévolos perturbadores da tranquilidade.” (p. 3)

Apesar do intenso e polémico debate sobre o papel da imprensa, os portugueses entraram na terceira década do século XIX a fazerem a “aprendizagem da cidadania”, como lhe chamou Isabel Vargues (1997), graças aos jornais que transformaram o país, ou pelo menos as elites do país, numa espécie de fórum. Tengarrinha (2006, p. 117), por seu turno, expressa assim a sua perspectiva:

“O espaço público torna-se um espaço público politizado quando, além da influência dos media, nele concorrem factores de três naturezas: por um lado, a existência de instituições de governo representativas e formas de representação relativamente amplas; por outro, o espaço, a dinâmica e o sentido que as múltiplas formas de comunicação abriram, conducentes à formação dos consensos que materializavam a expressão da vontade colectiva; e ainda os novos espaços de sociabilidade que se alargavam na sociedade. Isto é, quando o direito de voto é ampliado (...); quando a opinião pública passa a ser influente na ordem política; quando é mais diversificada a origem social e cultural dos intervenientes; quando os conflitos (...) não apenas são mais intensos, mas se apresentam com maior visibilidade; quando a expansão da sociedade exige meios de comunicação mais vastos que não se reduzem aos meios escritos mas se alargam a instrumentos, dispositivos e actores de não menor efeito (...).”

Diz ainda José Tengarrinha (2003, p. 157):

“É óbvio que o alargamento da participação política directa das populações pelo exercício do direito de voto teve importância fundamental na ampliação constante, ao longo do século XIX, do “campo político” em Portugal. Mas este fenómeno capital não poderá ser compreendido em toda a sua extensão se não for considerada a influência de uma comunicação mais fluida, geral e regular, que ultrapassou os particularismos e contingências da comunicação directa, interpessoal. Apesar de todas as limitações, foram assim os jornais os meios que em Oitocentos estiveram em condições de melhor cumprir esta função. São eles, pois, um dos principais factores de abertura e dinamização do espaço público politizado não apenas pela comunicação que estabeleceram como pela sequente mobilização que provocam.”

A proliferação da imprensa contribuiu para detonar, de facto, uma revolução profunda em Portugal. Uma revolução política, mas também social. Ela modificou a percepção do mundo que se tinha a partir do país e contribuiu para alterar os valores da sociedade portuguesa. Daí o intenso debate que se gerou sobre a mesma, sobre os seus efeitos e, em particular, sobre a natureza e o exercício da liberdade de imprensa.

1.1 Do lado conservador: o caso do padre José Agostinho de Macedo

O polemista conservador José Agostinho de Macedo destacou-se como um dos primeiros críticos sistemáticos do jornalismo português. Para além de ter um defensor violento da causa absolutista, olhou para os jornais panfletários como objectos de crítica, tendo identificado vários dos problemas que, mais tarde, haveriam de promover o fim do jornalismo “de partido”, panfletário e artesanal, e a entrada em cena do jornalismo noticioso e industrializado.

São vários os textos de Macedo em que se assiste a uma crítica ao jornalismo, mas entre os mais conhecidos avultam, pelos seus títulos sugestivos, Cordão da Peste ou Medidas contra o Contágio Periodiqueiro; Reforço ao Cordão da Peste; e Exorcismos contra Periódicos e outros Malefícios.

O primeiro opúsculo que José Agostinho de Macedo lançou especificamente contra a liberdade de imprensa e a proliferação de jornais panfletários foi o Exorcismos Contra Periódicos e Outros Malefícios, editado em Fevereiro de 1821. Nele, Macedo desenvolve o tema da profusão de periódicos, cujas posições diferenciadas contribuiriam para instaurar a anarquia e impediriam a necessária obtenção dos consensos e da tranquilidade que a governação exigiria.

“Costuma-se chamar flagelo, ou praga, tudo aquilo que consigo traz calamidades para os Povos (...). Ao século da Política, que outra praga se devia adoptar que não fosse a dos periódicos políticos? (...) Portugal está coberto, alastrado, entulhado de periódicos (...). A multidão dos faladores fez parar a majestosa Torre da Babilónia: onde todos falam ninguém se entende. (...) E que dizem estas pragas, estes periodiqueiros? A todos aflige o mesmo, que não haja frades. (...) Mentem, tanto dizem, tanto desdizem, tão mal, tão fora do tempo querem propor coisas, demolindo em lugar de consertar, que o povo alucinado (...) cuida que se obra no Governo e no Congresso, como os periodiqueiros falam, que têm as mesmas ideias incendiárias, subversivas, destampadas, que há impressas nos periódicos (...), revoltam e desorientam a Nação (...). É justo ganhar dinheiro (...), mas três vinténs por parvoíces...“ (MACEDO, 1821a, pp. 1-14.

No mesmo opúsculo (Exorcismos), Agostinho de Macedo critica, ainda, os que abandonavam os seus ofícios para se consagrarem a um periodismo de fraca qualidade. Em acréscimo, dá pistas não só para se perceber a origem social e cultural de muitos dos “jornalistas” portugueses das primeiras décadas de oitocentos, mas também para se compreender como funcionavam e eram vendidos os periódicos de então:

“Mas quem são os periodiqueiros? É preciso conhecer o género (...) e eu creio que (...) a barriga vazia, é quem acarretou sobre as nossas cabeças a nuvem periodiqueira. (...) Sapateiros (...), livreiros, passamaneiros, cabeleireiros (...), (...) a quem se lembraria que no momento em que Portugal mais necessitava de mais luzes, mais ciência, mais conhecimentos, que coadjuvassem a mais árdua e difícil empresa, (...) os seus cultores se convertiam em periodiqueiros? Parece que para a grande arte de Escritor se não necessita de outra coisa mais que saber formar bem ou mal, tortos ou direitos, os caracteres do alfabeto. (...) Ora se é praga deixar o próprio ofício para ser periodiqueiro, ainda é maior flagelo não ter ofício nenhum, senão o de periodiqueiro. Vivia um ocioso pelos cantos dos botequins (...) e de repente salta ao mundo com um periódico (...). Que quer este diabo com a folha diária ou semanária? Ilustrar a Nação? Como? Copiando muito mal da aluvião dos periódicos castelhanos (...), retalho aqui, fala acolá, reflexão além, mas tudo sem ordem, sem uma ideia dominante, sem um fim, e quando este devia fixar a opinião sobre um objecto único, grande, público, vantajoso à causa, não faz mais que desvairá-la de tal maneira que ninguém se entende (...). O pior é abrir as portas às correspondências, ou reais, ou fantasiosas, e transcrever quantos desaforos lhe enviam, ou fingem que lhe enviam. Que vantagens tem tirado a Nação desta praga periodical (...)? Talvez maiores males, do que bens. Segue-se a uma mal entendida liberdade de falar uma mais mal entendida liberdade de pensar, e obrar.” (MACEDO, 1821a, pp. 3-8)

Os jornais políticos, que apareciam às dezenas, eram, assim, para José Agostinho de Macedo, uma verdadeira “peste”, que causava o pernicioso efeito de confundir as mentes, como escreve, igualmente, no texto O Cordão da Peste ou Medidas Contra o Contágio Periodiqueiro, o segundo que escreveu em 1821 sobre o mesmo tema, e que, tal como o primeiro, teve grande sucesso. Nele, o autor defende que se deveriam impedir os jornais lisboetas de saírem para a província e para outros países, propondo, por isso, um cordão sanitário à volta de Lisboa, que abrangesse o porto.

No texto em causa, Macedo começa por dizer que a “peste” dos periódicos é “coisa mais terrível” do que uma bateria de cem canhões, desenvolvendo, em seguida, outro dos seus temas predilectos: o da ignorância de grande número de redactores de jornais, quer sobre a alma dos portugueses, quer sobre os mecanismos da governação, sobre os quais sentenciavam sem sequer a sua vida saberem gerir:

“Eu não falo daquela ignorância que provém da absoluta carência de luzes, de instrução e conhecimentos, que provém da instituição de alguns nos ofícios braçais, tão úteis à Pátria (...); nem falo daquela ignorância que noutros provém da ociosidade e pobreza (...); falo daquela ignorância em que os (...) da política e publicismo exibem a respeito da índole, do carácter e dos sentimentos da Nação para quem escrevem e que eles querem, ou dizem que querem, ilustrar. (...) Eis a primeira bostela, a ignorância do carácter geral da Nação (...).

O que estes homens (...) querem é governar. E a si sabem eles governar-se? Alguns conheci eu, antes de rebentar a Peste, e que agora dão grandes planos de economias, de finanças e melhoramentos, que não digo que sabiam governar a sua casa, porque não a tinham, nem eira, nem beira, nem ramo de figueira.” (MACEDO, 1821b, pp. 9-15)

No texto anterior, Macedo identifica um mecanismo relevante do jornalismo contemporâneo, mais notório a partir da segunda metade do século XIX: o jornal arvora-se em representante do povo e procura intervir na governação em nome desse mesmo povo, sem consideração pelas instâncias e processos da democracia representativa. Na verdade, para o autor, o público é iludido pelos jornais, “cuidando que os periodiqueiros são os órgãos (...) do Governo e que o Governo quer fazer o que os periodiqueiros dizem.” (MACEDO, 1821b, pp. 12-14). Segundo Macedo (1821b, p. 14), os jornalistas “Não só querem ser os mestres da Nação, mas os mestres do Governo”. Diga-se, contudo, que, paradoxalmente, o próprio Macedo, não hesitava em autopropagandear-se como verdadeiro intérprete do sentimento colectivo, tal e qual como faziam a generalidade dos jornalistas de então (e, porventura, alguns dos de hoje).

Um outro problema trazido pelos periódicos, segundo José Agostinho de Macedo, era o de alarmarem as pessoas, que ficariam a pensar que o Governo se preparava para fazer o que os jornalistas pediam: “Que será de nós? diz a gente das províncias. Isto que está impresso vai executar-se? E o Governo, que consente estes planos, também quererá que se cumpram?” (MACEDO, 1821b, p. 16)

O Cordão da Peste também toca num outro tema caro a Macedo: os periódicos promoveriam o afastamento entre as pessoas e o Catolicismo (MACEDO, 1821b, p. 25).

Verifica-se, igualmente, pela leitura do Cordão da Peste, que Macedo considerava os periódicos liberais semelhantes entre si. Pior, procurou desmascarar os redactores que remetiam a si mesmos cartas elogiosas, posteriormente publicadas nos seus próprios jornais, tema a que já tinha, de resto, aludido no opúsculo Exorcismos Contra Periódicos e Outros Malefícios:

“E qual o olhinho que tem reparado bem nestas cartas? Consideremo-las primeiro na sua forma, depois na sua matéria, e logo depois nos seus fins. É tanta a amizade e a intimidade dos correspondentes com os correspondidos, que de todo se identificam, têm os mesmos hábitos, os mesmos sentimentos, as mesmas ideias, e o que é mais milagroso ainda, o mesmo estilo. (...) O correspondente e o correspondido são a mesma coisa, não só nas ideias, mas no estilo. (...) Cartas escritas deles para eles. (...) Isto para quê? Para sustentarem a bazófia de homens ilustrados a quem os outros se dirigem como oráculos do politiquismo.” (MACEDO, 1821b: 29-32)

Macedo sentencia, para terminar o seu Cordão da Peste:

“A Pátria (...) está (...) oprimida com o pestilencial flagelo dos periódicos. (...) Como se pode combinar a estabilidade do Governo, o sossego público, o amor da ordem, a observância das leis do novo regime, com a inquietação que nos ânimos derramam tantas ideias destampadas, tantas notícias falsas, tantos projectos loucos, tanta flutuação de ideias, tanta contrariedade de doutrinas e tão encontrados gritos dos incansáveis periodiqueiros? Quem por eles saberá o que deve pensar e o que deve fazer? A censura olha para os papéis e olha para os rostos dos autores e perdoa a miséria de uns pela fome que descobre nos outros.” (MACEDO, 1821b: 43-44)

Embora, no Reforço ao Cordão da Peste, o autor, essencialmente, repisa os temas dos seus textos anteriores, insistindo, por exemplo, ironicamente, no aparente monopólio da sabedoria que os jornalistas liberais gostavam de exibir:

“Quanto é grande e terrível o flagelo da peste! (...) mas este é o carácter dos periodiqueiros, fazerem tudo por amizade. Por amizade nos comunicam as luzes que nós não tínhamos, porque as luzes foram exclusivamente depositadas no entendimento dos periodiqueiros” (MACEDO, 1821b: 1-6).

Outro tema que José Agostinho de Macedo vinca no Reforço ao Cordão da Peste é o da anarquia gerada pela proliferação de jornais: “Onde está esta desordem? Esta peste periodical, por certo, a vem fazer!” (MACEDO, 1821b: 11).

Em conclusão, pode dizer-se que José Agostinho de Macedo foi o primeiro autor português a tecer uma crítica estruturada e sistemática ao jornalismo, apresentando, igualmente, alternativas para o desenvolvimento da comunicação social. Nesse sentido, ele pode considerar-se como um precursor da teorização crítica portuguesa do jornalismo.

A crítica de José Agostinho de Macedo ao jornalismo político do seu tempo permite, em segundo lugar, perceber que este autor tinha uma ideia clara sobre a influência do jornalismo na formação de correntes de opinião e sobre a repercussão das mesmas na ordem política e na governação. Macedo, sem empregar os conceitos que hoje em dia empregaríamos, percebeu que o espaço público se estava a politizar, não apenas por força dos jornais, mas também pela institucionalização da democracia representativa e pelo alargamento do direito de voto. Percebeu, também, que o jornalismo, ultrapassando o espaço interpessoal da comunicação directa, se tornava o mais importante agente de segmentação das opiniões a nível nacional.

Em terceiro lugar, pode dizer-se que José Agostinho de Macedo compreendeu, bem cedo, que o jornalismo panfletário não respondia às necessidades informativas da população, apontando a indispensabilidade de se desenvolver um jornalismo de cariz informativo, como aquele que seria protagonizado, em Portugal, pelo Diário de Notícias, 33 anos depois da morte do autor.

1.2 A reacção liberal

O debate sobre os periódicos e as funções do jornalismo foi muito vivo entre 1821 e 1823. Não foi apenas o campeão do absolutismo, José Agostinho de Macedo, a escrever sobre jornais e jornalistas. Os liberais também o fizeram. O “diálogo” entre ambos os partidos fazia-se através dos jornais e folhetos que funcionavam como verdadeiro espaço público, imaterial e simbólico, onde, de certa forma, se fazia a aprendizagem da democracia.

Por exemplo, Pedro Cavroé (1821b, p. 4), na Resposta ao Papel Intitulado Exorcismos Contra Periódicos e Outros Malefícios, acusava José Agostinho de Macedo de cair em contradição ao condenar os periódicos quando usava as mesmas armas: “compor os seus Exorcismos em papel pardo para os vender nas mesmas [lojas] e a par dos mesmos [periódicos] e pelo mesmo preço de três vinténs (...) é além de incoerente, pouco escrupuloso.” Cavroé critica, ainda, a presunção de Macedo, que se tomaria pelo guia da Nação, quando não seria mais do que um periodiqueiro entre iguais, que vendia folhetos polémicos para se sustentar. Satiriza, igualmente, a parcialidade de Macedo, que atacaria os jornais liberais, esquecendo os do seu próprio campo; e ainda relembra que se os periodistas liberais exerciam outras profissões, todas elas honradas, sendo o próprio Cavroé sapateiro, o autor do Exorcismos seria ocioso, algo muito pior.

Eis como termina Cavroé o seu folheto:

“(...) se os periódicos são inúteis, o seu papel (...) inútil é. Se os periódicos de papel pardo custam três vinténs, o papel pardo dos seus Exorcismos três vinténs custa (...). Se os periódicos são como pragas, o seu folheto pragas tem. (...) Se nos periódicos há confusão de ideias, nos seus Exorcismos há confusão de coisas. (...) Se os periódicos são como diabos, V. m. fala como os diabos. (...) Se os periódicos revoltam e desorientam a nação, V. m. desorienta e revolta a nação contra periódicos e periodiqueiros. (...) Finalmente, se os periódicos são pragas, ao menos sabe-se donde elas vêm, e o seu papel, uma verdadeira calamidade, ignora-se quem o produziu” (CAVROÉ, 1821b, p. 16).

Pesem, embora, os ataques pessoais, a síntese do pensamento liberal em matéria de liberdade de imprensa pode resumir-se a poucas palavras: a livre comunicação de pensamentos e opiniões é um direito natural do homem, sendo a liberdade de imprensa apenas uma das formas de concretização deste direito. Para além disso, o jornalismo é, para os liberais, não apenas uma forma de controlo e de responsabilização do poder político, mas também uma maneira de emancipar os cidadãos, pois promove o conhecimento e a consciência da realidade.

2. DO PANFLETARISMO À TEORIZAÇÃO JURÍDICA E SOCIOLÓGICA DA LIBERDADE DE IMPRENSA

A teorização sobre liberdade de imprensa em Portugal, depois da intempestiva fase inicial do período 1820-1823, foi ultrapassando a crítica pessoal e panfletária para, gradualmente, ir assumindo contornos jurídicos e sociológicos. Teóricos como Silva Ferrão (1850), Paiva (1850), Vieira (1850) e Trindade Coelho (1897) teceram considerações jurídicas e de outra natureza sobre os regimes legais da imprensa em Portugal e noutros países, procuraram definir, justificar ou criticar a liberdade de imprensa e a censura, historiografaram os regimes legais a que a imprensa foi sujeita em Portugal e ainda tentaram discutir as imposições jurídicas e as implicações sociais das sucessivas leis que regularam o jornalismo português.

A preocupação com as consequências da censura transparece, por exemplo, da obra de França Borges (1900), escrita a propósito das consequências do ultimato inglês de 1890 e das notícias sobre o reatamento da aliança luso-britânica, em 1900. O autor defende na obra que a apreensão e suspensão de jornais impedem o público de conhecer acontecimentos “gravíssimos”.

Uma variante nos trabalhos sobre liberdade de imprensa é a compilação, anotada ou não, de legislação. A. Xavier da Silva Pereira (1901, p. 28), por exemplo, numa obra descritiva e historiográfica sobre a legislação de imprensa, nota que a legislação reguladora da liberdade de imprensa seria mais bem apelidada de “legislação repressiva da imprensa”, tantos foram os obstáculos colocados, desde o reinado de D. Sebastião, à liberdade de prelo e, mais tarde, à acção jornalística livre, apesar de, segundo ele, ser a imprensa “o regulador de todos os governos livres” e “a glória de um povo”.

Alguns dos escritos sobre liberdade de imprensa que foram publicados em Portugal são cópias dos documentos jurídicos de defesa de jornalistas e jornais acusados de abuso de liberdade de imprensa ou de declarações (também jurídicas) de protesto contra a apreensão de jornais. Por exemplo, em 1840, autor anónimo, num opúsculo relatando o Processo de Arresto na Tipografia Onde se Imprime “O Atleta” ou Alguns Monstruosos Atentados do Ministério Público Contra a Liberdade de Imprensa, escreve o seguinte:

“A liberdade de imprensa é o escolho em que os déspotas costumam naufragar, e por isso é que a guerra que estes lhe fazem é tão cruel! Um governo representativo sem liberdade de imprensa seria o mais despótico e tirano de todos os governos – as prevaricações e torpezas dos governantes ficariam em tal caso cobertas com o véu da obscuridade e assim poderiam eles caminhar desenfreados na estrada do crime, livres das censuras da imprensa, e a coberto dos tiros da opinião pública!” (p. 4)

Em 1861, num folheto dedicado a uma polémica irrelevante sobre a forma como um padre tinha conduzido a sagração de uma igreja (O Noticiarista do Jornal “A Liberdade” e o Autor do Presente Opúsculo), João Augusto da Graça Barreto (1861, p. 4) reconhece que “A imprensa (...) é uma instituição altamente proveitosa à civilização dos povos (...), um tribunal venerando que julga (...) os reis, as nações, as leis, os costumes, as instituições e os indivíduos”, mas adverte que também deve ser julgada pelo povo e, portanto, em nome do povo.

Aníbal Augusto da Fonseca Magalhães Coelho (1891, p. 1), numa minuta de defesa de um jornal acusado de abuso de liberdade de imprensa por ofensa ao Rei, assume convictamente a defesa do princípio desta liberdade e a ideia de que os crimes de abuso da mesma deveriam ser julgados por leis particulares e não pelas leis comuns, já que “Crimes desta natureza relacionam-se directamente com o direito de liberdade, e o manifestar publicamente o (...) pensamento e as (...) ideias é uma das fórmulas dessa liberdade.”

Por seu turno, Fernão Boto Machado (19__), num dos seus inúmeros libelos contra as sucessivas apreensões, suspensões e censuras do jornal republicano O Mundo durante a fase final da Monarquia, em que se assistiu a uma intensificação do autoritarismo governamental, acusa os tribunais de abusarem das condenações por abuso de liberdade de imprensa quando em causa estavam textos opinativos contra o regime monárquico. Para ele, os tribunais deveriam, isso sim, pugnar por ela, enquanto preceito constitucional, e proteger os cidadãos, empresas e instituições dos actos arbitrários, como seriam, em seu entender, as penas de suspensão ou apreensão de jornais ou ainda a censura. De facto, na visão de Boto Machado (19__, p. 14), só a liberdade de imprensa “assegura a moralidade e garante a boa administração (...), e (...) arranca a máscara dos (...) malvados (...), corruptos e infames”. A propósito, o autor cita Buyn (Boto Machado, 19__, p. 14), que escreveu que “a liberdade de imprensa é apenas uma das formas da liberdade de pensar”, concluindo, em consequência, que deveria ser ilimitada. Também Stuart Mill, igualmente referido por Boto Machado (19__, p. 15), escrevia: “o que há de pior ao impor silêncio à expressão do pensamento é que isso constitui um roubo à espécie humana”.

É interessante notar que a produção intelectual sobre liberdade de imprensa foi mais intensa em períodos em que o país procurava encontrar um rumo ou quando a censura se fazia sentir, como durante a fase final da Monarquia (1890 a 1910). Por exemplo, no texto da conferência O Governo e a Imprensa, proferida na Associação da Imprensa Portuguesa, em 1907, António Macieira expressa a opinião de que Portugal teria regredido em matéria de liberdade de imprensa, apesar de “a liberdade de expressão do pensamento pela imprensa” ser “um direito absolutamente incontestável que é necessário manter-se para bem da civilização e do progresso” (p. 4). No entanto, escreve Macieira (1907, pp. 4-5 e p. 15), vincando a contradição entre uma prática governativa que embora diga governar de acordo com a opinião pública silenciava a imprensa para não ler opiniões divergentes:

“Há apenas um momento em que a liberdade de imprensa não tem existência possível. E vem a ser aquele em que um governo berra aos quatro ventos (...) que está governando com a opinião pública, tentando, por outro lado, abafar a opinião pela imprensa, para que esta não diga como pensa a seu respeito! (...) Governar com a opinião pública [não] é querer amordaçar essa mesma opinião, atacando a principal forma por que ela se manifesta e expande – a imprensa. (...) Mais vale o despotismo ostensivamente proclamado do que a reacção tendo no rosto afivelada a máscara da liberdade.”

Indo mais longe, Macieira (1907, p. 5) acusa o Governo da época de hipocrisia política e legal, pois ofereceu à imprensa “uma lei reguladora (...) em que a liberdade e a defesa lhe são dadas com a mão direita e (...) lhe são furtadas com a esquerda numa desenvoltura de prestidigitador”. Essa lei tornaria difícil criticar ou discutir a acção política “dos que exercem funções públicas e fazem da política o seu único modo de vida”. Por isso, o autor culpa o Governo de legislar em benefício próprio e não em benefício dos cidadãos em geral.

2.1 Todos (quase...) contra os constrangimentos à imprensa (1850)

São bastantes as obras portuguesas que discutem a liberdade de imprensa durante o século XIX. Aliás, quando o perigo de imposição de novos constrangimentos ao jornalismo aumentava, aumentava também o número de obras que defendem essa liberdade. Foi o que aconteceu em 1850, quando se ergueram várias vozes contra os projectos de restrição da liberdade de imprensa acalentados pelo Governo conservador de Costa Cabral (conde de Tomar) e do seu irmão Silva Cabral.

No libelo A Imprensa e o Conde de Tomar, José Maria do Casal Ribeiro (1850, pp. 8-10) escarnece do primeiro, que intentou processos contra a imprensa por esta ter revelado favores pessoais que este terá feito em troca de recompensas. O autor relembra que embora o projecto de lei considere que a liberdade de imprensa “é útil à civilização”, se propõe constrangê-la quando “degenera em licença”, usando para tal “processos arbitrários e inquisitoriais” e recorrendo a uma “lei penal absurda e reaccionária”. Na verdade, segundo Casal Ribeiro, para a imprensa ser “comedida e atenciosa”, bastaria que os agentes de poder fossem “honestos e decentes”, pois “a linguagem que se emprega com um adversário respeitável não é a mesma que se dirige a um agressor insolente” (Casal Ribeiro, 1850, p. 8). Aliás, o autor interpela o principal visado pelo panfleto, o conde de Tomar, Costa Cabral

“Como entendeis vós que os actos do Governo, de um ministro, de um magistrado (...) possam discutir-se sem o atacar ou defender por qualquer modo directo ou indirecto [conforme previa o projecto de lei]. A censura do abuso não envolve um ataque ao prevaricador? A condenação da imoralidade não contém a sentença do devasso? Julgais-vos superiores à discussão. Acobardais-vos com uma inviolabilidade de papel. Os vossos pensamentos são muito curtos para que possam ser examinados, as vossas inteligências muito obcecadas para que possam sofrer a luz. As vossas vidas muito impuras para que tolerem a biografia pública.” (CASAL RIBEIRO, 1850, p. 13)

Por outro lado, José Maria do Casal Ribeiro (1850, p. 13) defende que a liberdade de imprensa deveria ser antidogmática, razão pela qual ataca uma cláusula da proposta de lei de Costa Cabral que impedia qualquer discussão sobre “o dogma político da legitimidade do chefe de Estado”. Para ele, é necessário convencer com inteligência acerca das questões políticas, e não proibir a discussão. Do mesmo modo, critica o “exagero” da citada proposta de lei, que impediria as críticas ao carácter dos cidadãos, a publicação de extractos de sessões parlamentares relevantes, a tradução de artigos críticos para Portugal publicados na imprensa estrangeira, etc.

Para Casal Ribeiro (1850, p. 17), “A imprensa é para o povo. É ao povo só que compete o direito de a interpretar. E toda a causa de imprensa se reduz a uma simples interpretação”. E adianta:

“Há dois sistemas opostos em relação à comunicação dos pensamentos – o da censura e o da liberdade. O primeiro nega o direito; o segundo exige responsabilidade ao exercício dele. O primeiro previne e impede; o segundo pode castigar. O primeiro é estacionário e falso, conduz (...) ao obscurantismo; o segundo é amplo e progressista, o seu fim é a ilustração. No primeiro sistema, o escrito não tem garantia que lhe assegure a publicidade (...), o escritor tem a certeza de não ser punido; no segundo, o escrito é livre (...), o escritor responde perante a lei pelo uso que faz dessa liberdade. (...) Nada porém mais absurdo, nada mais iníquo, nada mais despótico do que um misto dos dois sistemas. Embaraçar por todos os modos a publicação dos escritos, cercar a imprensa de peias e estorvos, impedir directa e arbitrariamente pela acção administrativa a comunicação do pensamento, e redobrar depois a responsabilidade do escritor, é revestir o poder de uma armadura impenetrável e, ao mesmo tempo, armá-lo com uma espada de dois gumes.” (CASAL RIBEIRO, 1850, p. 23)

De acordo com o mesmo autor, o jornalismo político seria, em consequência, indispensável à democracia:

“O jornal político é (...) o que mais pode prejudicar um governo imoral, assim como é o mais firme esteio de um governo justo. É a sentinela constante do poder, que lhe vigia os passos, que lhe segue os movimentos, que os discute diariamente, que o entrega à admiração ou ao desprezo, à estima ou ao ódio da opinião pública.” (CASAL RIBEIRO, 1850, p. 24)

É de referir que as intenções – que vieram a ser concretizadas em 1850 – de alteração das leis de imprensa, acentuando o carácter repressor sobre a liberdade de imprensa, também foram questionadas pelos professores da Universidade de Coimbra, num documento intitulado Defesa da Representação dos Lentes da Universidade de Coimbra contra o Projecto de Lei Acerca da Liberdade de Imprensa (NETO PAIVA et al., 1850).

Para os lentes conimbricenses, o projecto restritivo da liberdade de imprensa era contrário ao progresso científico, pois colocaria fora da discussão pública e científica “muitas doutrinas” que pretenderiam passar por “dogmas infalíveis” e pretenderia “forçar os espíritos a admitir como princípios doutrinas que não livremente discutidas e evidentemente demonstradas” (NETO PAIVA et al., 1850, p. 6). Mais: a lei tornaria dogmaticamente a moral pública e religiosa referência para as discussões científicas e medida do conhecimento (Neto Paiva et al., 1850, p. 21). Por isso, de acordo com os académicos de Coimbra, os abusos de liberdade de imprensa deveriam ser combatidos pela moderação e moralização dos jornais e pelo exemplo, não pela censura (NETO PAIVA et al., 1850, p. 20).

Também Silva Ferrão (1850), em O Uso e o Abuso da Imprensa, considera que “Na ordem política, a imprensa é para as Nações modernas o mais poderoso e talvez o único baluarte das liberdades pátrias.” E o autor recorda, citando Lemontey e Rodrigues de Bastos, que ainda não apareceu um governo que não tivesse tentado “escravizar” a imprensa. Defende, a propósito, “a maior liberdade na comunicação das ideias, dos pensamentos (...) por meio da imprensa” (SILVA FERRÃO, 1850, p. 8). Escreve ele:

“Não há (...) nação alguma (...) em que não exista um tribunal (...) da opinião pública. Se o povo é ignorante e corrompido, (...) desconhece (...) os seus (...) interesses e, pela omnipotência dos decretos, perpetua o mal e impede o bem. Mas se o povo se acha precavido contra o erro (...) será sempre justo e esclarecido (...). Mas de que maneira poderá esse tribunal ser instruído da instrução de uma lei, dos vícios de outra, dos erros da administração, do mal que o Governo tem feito ou que media fazer? Como poderá reunir-se nele o sufrágio universal a favor de uma medida útil? Como poderá ele conhecer os projectos de um ministério iníquo ou os abusos de autoridade de um magistrado? (...) Por nenhum outro meio (...) que pela liberdade de imprensa, que as leis devem (...) proteger (...). Assim o exigem (...) o interesse público [e] (...) a justiça.” (SILVA FERRÃO, 1850, pp. 10-11)

Para o referido autor, a liberdade de imprensa seria fundada no direito natural de cada membro da sociedade pensar e contribuir para o seu bem comum. Reconhece, porém, que há quem abuse dessa liberdade e que pela imprensa, em vez de se ilustrar o povo e guiar a opinião pública, se podem propagar “doutrinas subversivas”, a desunião e a maledicência (Silva Ferrão, 1850, pp. 14-15). Ainda assim, diz que “a liberdade de tudo escrever será sempre mais vantajosa do que as falsas restrições”, pois “o que é bom, razoável e útil triunfará sempre” (SILVA FERRÃO, 1850, p. 17). E recorre a uma citação de Pinheiro Ferreira (cit. in SILVA FERRÃO, 1850, p. 49) para explicitar ainda melhor o seu ponto de vista: “É tão absurdo fazer leis contra (...) abusos da palavra ou da escrita como contra os abusos de qualquer outra faculdade”.

Do lado oposto às posições atrás expressas, José Bernardo da Silva Cabral (1850), irmão do chefe do Partido Conservador, Costa Cabral, considera que é preciso regular a liberdade de imprensa para não se cometerem abusos no exercício dessa liberdade. O autor inscreve entre os abusos de liberdade de imprensa atacar o Chefe do Estado, constitucionalmente inviolável, injuriar e difamar cidadãos, fomentar o caos e a dissolução das nações e blasfemar contra Deus.

2.2 Luciano de Castro (1859) e Trindade Coelho (1897): o comentário jurídico à liberdade de imprensa

O advogado e jornalista Luciano de Castro deu à estampa, em 1859, uma Colecção da Legislação Reguladora da Liberdade de Imprensa na qual, como introdução, faz um comentário jurídico à mesma.

O autor parte de um princípio básico: “Há na sociedade um direito que não se discute – é o direito de pensar” (Luciano de Castro, 1859, p. 7). Pensamento, liberdade e responsabilidade, segundo o autor, andam juntos: “Temos, pois, o pensamento, que discute e aprecia; a liberdade, que manifesta e reproduz o pensamento; e responsabilidade, que põe balizas aos arrojados voos da razão desvairada ou deploravelmente desencaminhada” (LUCIANO DE CASTRO, 1859, p. 8). Por seu turno, a sociedade e os indivíduos, de acordo com Luciano de Castro (1859, p. 8), têm o direito de se defenderem dos pensamentos desvairados e ofensivos livremente expressos com irresponsabilidade:

“todos se devem sujeitar às moderadas e racionais prescrições impostas pela lei aos desvairamentos da razão e da liberdade, porque a sociedade, que não pode punir os crimes no secreto do íntimo pensar, tem o direito de exigir condições à manifestação das ideias e de reprimir (...) os actos criminosos que (...) podem perturbar (...) a sua conservação ou invadir-lhe a esfera da sua justa actividade.

O direito à legítima defesa é sagrado assim no indivíduo como na sociedade. O pensamento manifestado pela liberdade pode produzir um atentado à ordem social. A responsabilidade, neste caso, não pode declinar-se. A sociedade ofendida singular ou colectivamente tem o direito de punir o delinquente e de obrigar o crime à devida reparação.” (LUCIANO DE CASTRO, 1859, p. 9)

O fundamento da regulação legal da liberdade de imprensa e da repressão dos abusos, de acordo com Luciano de Castro, encontra-se nesses princípios.

Quais eram, à época, os crimes de abuso de liberdade de imprensa, os mesmos que José Maria do Casal Ribeiro, no seu libelo panfletário contra o conde de Tomar, criticava que fossem considerados crimes? Luciano de Castro (1859) inventaria-os: 1) Colocar em causa os dogmas da Igreja Católica e blasfemar; 2) Ofensas aos bons costumes e à moral cristã; 3) Incitamentos à rebelião e anarquia; 4) Ataques à Constituição (Carta Constitucional); 5) Ataques ao Rei e Família Real; 6) Injúrias a chefes de Estado estrangeiros e representantes de nações estrangeiras, câmaras legislativas, tribunais ou autoridades; 7) Imputação de acções ou omissões criminosas a funcionários públicos sem prova em julgado; 8) Invasão da vida privada, se do facto publicado resultar infâmia, desonra ou injúria.

O autor questiona, por outro lado, o Código Penal então em vigor, por equiparar os crimes de abuso de liberdade de imprensa, portanto, os crimes que decorrem da acção jornalística, aos crimes que decorriam da publicação de panfletos propagandísticos, bem como por equiparar os crimes de abuso da liberdade de expressão cometidos através da palavra oral aos crimes de abuso da liberdade de expressão quando em causa estava a palavra impressa. Para o autor, os crimes de abuso de liberdade de imprensa, quando cometidos por um periódico regular, seriam menos graves do que os cometidos por panfletos singulares; do mesmo modo, os crimes de abuso da palavra oral seriam menos graves, porque teriam menos impacto social, do que os crimes cometidos por abuso da palavra impressa (LUCIANO DE CASTRO, 1859, pp. 12-13).

Relembra o autor, por outro lado, que a intenção de publicar um escrito abusador da liberdade de imprensa não era entendida como crime; só a efectiva publicação, segundo a legislação então em vigor, configurava a prática de um crime – para haver crime, ontem como hoje, é preciso intenção e facto, explica Luciano de Castro (1859, pp. 13-14 e p. 18).

O autor manifesta-se, ainda, contra a possibilidade de os crimes de abuso da liberdade de imprensa serem julgados pelas leis comuns e não pelas leis específicas e particulares que existiam (LUCIANO DE CASTRO, 1859, pp. 14-15). E questiona, igualmente, a co-responsabilidade do editor de um periódico nos crimes de abuso de liberdade de imprensa, quando o editor não intervinha na publicação (LUCIANO DE CASTRO, 1859, pp. 20-21).

Pronunciando-se a favor da revisão da legislação reguladora da liberdade de imprensa, o autor não deixa de reconhecer que, à época, se abusava dela:

“Muitas vezes, a paixão substitui a fria imparcialidade da razão esclarecida e a voz dos interesses políticos ou pessoais levanta-se sobre os ditames da verdade e da lógica dos factos. (...) Nem sempre a imprensa (...) tem em consideração os seus deveres de rigorosa imparcialidade na justa apreciação dos homens e das coisas, e (...) por vezes o amor imoderado a exaltadas convicções e a demasiada fé nas ideias (...) encaminham-na para (...) excessos (...). Daqui têm deduzido argumento contra ela os seus numerosos adversários (...). E foram logrando os seus intentos, porque (...) as leis repressivas da liberdade de imprensa (...) revestiram sucessivamente mais austeras feições (...).” (LUCIANO DE CASTRO, 1859, pp. 26-27)

Pior ainda, o público também estaria ressabiado contra os abusos de liberdade de imprensa:

“Cansado o público de contemplar muitas vezes a razão casada à injustiça, a paixão no lugar da verdade, a mentira e a calúnia no lugar da rectidão do julgar, e da imparcialidade no descriminar a inocência e o crime, confunde no mesmo sentimento (...) os bons e os maus jornais (...). A indiferença geral pelo que se diz (...) na imprensa (...) é a (...) consequência desta situação”. (LUCIANO DE CASTRO, 1859: 28)

Portanto, para Luciano de Castro, se a imprensa quisesse influência teria de usar a sua força moderada e discretamente.

Por seu turno, Trindade Coelho (1897), em Liberdade de Imprensa: Proposições Apresentadas ao Congresso da União Internacional de Direito Penal, parte do princípio que o abuso de liberdade de imprensa é um delito singular porque é um delito de opinião, marcado pela forma (normalmente exagerada) do que é dito:

“Se o abuso de liberdade de imprensa é um delito, havemos de reconhecer, em todo o caso, que é um delito muito singular. O que se procura punir num delito de imprensa? Quase sempre (...) um exagero. (...). Mas já afirmava Schopenhauer que «o exagero em todo o sentido é tão essencial ao jornalismo como o é a arte dramática» – sendo de notar, ademais, que não é jornalista, na verdadeira e nobre acepção desta palavra, quem o quer ser, mas quem, por temperamento, tem de o ser, isto é, quem é dado a essa estranha (...) luta (...) em que o pensamento impresso (...) teria substituído a pólvora (...). A milícia moderna (...) está (...) nas redacções (...) e (...) não é mais (...) do que a intérprete de pensamentos, de opiniões e de ideais”. (TRINDADE COELHO, 1897, p. 11)

É interessante notar, pela leitura do parágrafo atrás citado, que Trindade Coelho, um dos expoentes da vida intelectual e literária portuguesa da viragem do século XIX para o XX, por um lado apenas considerava verdadeiro jornalista não o repórter, que gradualmente se afirmava como verdadeiro profissional do jornalismo, mas sim o “escritor de jornal” polemista, que lutava, com palavras, pelos seus pontos de vista; por outro lado, o autor tinha clara consciência de que grande parte das discussões simbólicas se haviam transferido para os jornais, que se configuravam como novo espaço público, conforme, mais tarde, pretenderia Habermas (1984), embora de uma forma idealista.

Para Trindade Coelho (1897), a natureza específica do delito de abuso de liberdade de imprensa mereceria, portanto, leis particulares reguladoras e tribunais de júri específicos.

O autor manifesta-se, também, contrário à co-responsabilização, como co-autor, dos editores dos periódicos pelos escritos delituosos de terceiros publicados nos jornais, excepto quando, em julgado, os editores não revelassem o autor. Aliás, Trindade Coelho (1850: 6-9) explica que o cargo de editor se tinha transformado num “modo de vida”, pois os editores não seriam mais do que os testas-de-ferro dos indivíduos que efectivamente mandavam nos jornais, mas que não queriam dar a cara pelo que se escrevia nos periódicos que lhes pertenciam, para evitarem processos judiciais.

Segundo Trindade Coelho (1897: 10), o jornal é um “órgão de opinião, ser moral e pensante”, mas também “propriedade industrial que mira ao lucro”. Por isso, para ele, é necessário que os indivíduos lesados pelos abusos de liberdade de imprensa tenham direito a indemnizações do jornal que tenha cometido o crime de abuso de liberdade de imprensa.

2.3 A teorização de Bento Carqueja (1893) sobre a liberdade de imprensa

A obra A Liberdade de Imprensa, de Bento Carqueja, publicada em 1893, é extremamente interessante, pois condensa a percepção liberal portuguesa sobre a matéria.

Nesse livro, e em plena época de crise monárquica e de endurecimento das medidas repressivas contra os jornais, Bento Carqueja, professor e director do jornal O Comércio do Porto, apresenta o direito à liberdade de imprensa como sendo um direito natural do homem, decorrente do direito à livre comunicação dos pensamentos e das opiniões, benéfico para a sociedade no seu conjunto, embora traga consigo idêntica dose de responsabilidade por parte de quem o exerce. Salienta, aliás, que “a imprensa vive pela liberdade e para a liberdade” (CARQUEJA, 1893, p. 10).

Para o autor, é errado pensar que a manutenção do equilíbrio social pressupõe a repressão da liberdade de discussão e de crítica. “A ideia voa através de todos os obstáculos, vence todas as distâncias; é arrastada, como semente, de cérebro para cérebro”, diz Bento Carqueja (1893, p. 12), para se referir àquilo que a liberdade de imprensa significa: um direito acessível a todos porque o conhecimento deve ser acessível a todos. “Pretender cortar essa soberba corrente equivale a perverter as leis da Natureza”, acusa Carqueja (1893, p. 12). O mesmo autor, inclusivamente, vê as tentativas de cerceamento da liberdade de imprensa como inúteis, já que, mais tarde ou mais cedo, esta acaba por triunfar. Ele enumera a censura, a prisão, a multa, entre outros métodos, como instrumentos descabidos “dos carrascos políticos” para fomentar “o empenho em asfixiar a opinião” e evitar a difusão da verdade (CARQUEJA, 1893, p. 14).

O autor reconhece, porém, que a liberdade de imprensa carece, igualmente, de deveres que a Lei deve definir, pois esta existe, defende, para prevenir e resolver problemas, devendo ser protectora dos direitos do Homem e protectora da liberdade. Dessa forma, preconiza o autor, será possível atingir um verdadeiro equilíbrio social. A nível de responsabilidades, o jornalismo é mesmo comparado a um sacerdócio por Carqueja, comparação que, de resto, é comum nos autores portugueses da mesma época e mesmo do século XX.

O autor escreve, ainda: “Se um Governo merece o apoio do país, a liberdade de Imprensa consagrar-lhe-á esse apoio; se mantém o poder contrariamente à opinião pública, é verdadeiro usurpador e, nesse caso, o bem público exige que se substitua.” (CARQUEJA, 1893, p. 19)

CONCLUSÕES

A teorização sobre a liberdade de imprensa em Portugal, após a Revolução Liberal de 1820 e até 1910, ano em que foi implementada a República, reflectiu as condições e vicissitudes da época em que foi produzida. Num contexto em que a liberdade de imprensa esteve, frequentemente, sob ameaça, nasceu uma forte oposição aos constrangimentos que sobre ela imperavam. Porém, também os oponentes à liberdade de imprensa fizeram, embora mais ocasionalmente, fazer sentir a sua voz, aduzindo ao debate público argumentos que também tinham o seu quê de pertinente, nomeadamente quando clamavam contra os assassínios de carácter, a maledicência, as ofensas e a desunião promovidos por alguns jornais, por vezes mal escritos e cheios de irrelevâncias, que abusavam dessa liberdade.

De qualquer modo, pelo que se infere, em geral, das palavras dos liberais, a liberdade de imprensa seria não apenas antidogmática, permitindo a emancipação dos cidadãos e o conhecimento, mas também seria fundamental para o controlo dos poderes, para o controlo da licitude e legitimidade dos actos políticos, para combater a corrupção, expondo os prevaricadores, e para evitar que o uso do poder se convertesse em abuso. Ou seja, no século XIX, já havia em Portugal plena consciência dos valores que norteiam a aceitação do princípio da liberdade de imprensa.

O mais importante, porém, será enfatizar que o jornalismo livre alterou o campo da política portuguesa, pois, no século XIX, passou a ocupar um papel central nos processos políticos de informação, comunicação e persuasão, pelo menos entre as elites politizadas e envolvidas na gestão da coisa pública. Além disso, foi graças ao jornalismo que o país ganhou mais consciência de si mesmo, pois os jornais, frequentemente lidos e discutidos em grupo, em cafés, clubes, tavernas e botequins, ultrapassavam o espaço local e os estreitos limites da comunicação oral. Ainda assim, os jornais oitocentistas defrontaram-se com o imenso analfabetismo da população, mal mitigado, somente, a partir da industrialização do país, no século XX. Na verdade, Portugal teria de esperar quase pelo final de novecentos para que o espaço público e político se alargasse à generalidade da sociedade civil.

Notas

(1) Texto produzido no âmbito do projecto de pesquisa Teorização do Jornalismo em Portugal: Das Origens a Abril de 1974, referência PTDC/CCI-JOR/100266/2008, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Portugal).

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O projecto de Teorização do Jornalismo em Portugal: Das Origens a Abril de 1974 é realizado com o apoio financeiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, através de fundos estruturais da União Europeia, designadamente do FEDER, e de fundos nacionais do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.