14.10 O pensamento de Sampaio sobre a imprensa
8. O pensamento de Sampaio sobre a imprensa
Tanto quanto foi possível apurar, António Rodrigues Sampaio não escreveu muito sobre jornalismo, apesar de acompanhar a dinâmica dos jornais da altura, o que revela, indirectamente, a grande importância que atribuía à comunicação social. Prova disso são os seus constantes diálogos e discussões com outros jornais, a que já se aludiu amiúde ao longo deste trabalho, mas também as notícias do Revolução de Setembro sobre o aparecimento de novas publicações, como as seguintes, relativas à edição dos célebres periódicos ilustrados Arquivo Pitoresco e Ocidente, do jornal O Progresso e do periódico satírico As Farpas:
PUBLICAÇÕES LITERÁRIAS
O ARQUIVO FAMILIAR
SEMANÁRIO PITORESCO
Este semanário, cujo primeiro número sairá impreterivelmente no próximo mês de Agosto, publicar-se-á todos os sábados regularmente.
Impresso nitidamente numa tipografia acreditada por outras publicações esmeradas, cada número do Arquivo Familiar terá oito páginas, do formato do antigo Arquivo, ou dezasseis colunas em bom tipo e papel, contendo variados artigos de literatura e ciência popular e será ordenado de excelentes gravuras em madeira executadas por hábeis artistas nacionais. (A Revolução de Setembro, 4 de Julho de 1857)
ARQUIVO PITORESCO
Publicou-se o número 9 deste semanário, contendo diversos e interessantes artigos. (A Revolução de Setembro, 3 de Setembro de 1857)
Apareceu hoje um novo jornal, O Progresso. Os seus princípios são democráticos e os seus meios de triunfo a liberdade e a discussão. Os dois primeiros artigos são escritos pelo nosso amigo o senhor José Pais, que ilustrou muitas vezes as colunas da Revolução com os seus excelentes artigos. Felicitamos O Progresso e desejamos-lhe longa vida. (A Revolução de Setembro, 18 de Maio de 1854)
Ocidente – Dando conta do aparecimento do primeiro número do jornal deste título, cumpre-nos dizer que vem ele de modo a satisfazer completamente os mais exigentes em publicações de tal ordem. A impressão é irrepreensível e o contrário seria bastante para estranhar, tendo sido feita na casa Lallemant. As gravuras representam Alexandre Herculano sentado numa poltrona, Membugalho Pataburro na tavolagem do Besteiro, casa na quinta de Vale de Lobos, igreja da Azóia de Baixo e o túmulo onde foi depositado o cadáver do grande historiador. São todas primorosas e dignas de figurarem junto de outras vindas do estrangeiro e trabalhadas por mestres de boa fama. Regala-se a gente quando lhe passa a vista. Folgamos de que a execução seja verdadeiramente portuguesa. É devida ao hábil buril de Caetano Alberto, já muito vantajosamente conhecido por inúmeros trabalhos de sua engenhosa arte. Da parte literária, que diremos? Simplesmente que é toda de escritores distintíssimos, tais como Pinheiro Chagas, Guilherme de Azevedo, António Enes, Luciano Cordeiro e Bento Moreno. Posto isto não é preciso dizer mais nada sobre o muito que vale a redacção do primeironúmero do Ocidente, de que são directores artísticos Manuel de Macedo e Caetano Alberto. No escritório deste último, rua do Loreto, 43, trata-se das assinaturas e de quaisquer negócios concernentes ao belo jornal, cujo primeiro número tanto nos agradou. (A Revolução de Setembro, 4 de Janeiro de 1878)
Apareceu anteontem o primeiro número das Farpas. Este pequeno volume é uma espécie de introdução aos que se hão-de seguir, é para mostrar o tom em que elas serão escritas para o futuro. Esse tom é o da ironia delicada, que não ofende, é o da crítica mordaz, que não repugna, são farpas que doem ao entrar na epiderme, mas que não passam da epiderme. De resto, graça e bom senso às pilhas, por toda a parte, são avaros que despejam o seu tesouro com a convicção que ele é inesgotável.
Comecemos pelo frontispício. É um desenho encantador, de intenção fina, de delicado humorismo. É um diabo que sorrindo olha por um óculo. De que ri aquele bom filho do Tártaro? De tudo o que observa, ri da política, ri da literatura, ri dos homens e ri das coisas. No entanto, o seu sorriso cheio de finura, só quer dizer que se o que ele vê é risível, não é necessário senão um passo para que seja sério, sagrado até. É um bom diabo, cheio de bonomia, sem pretensões. Tem a cara de um pobre homem, complacente, mas implacável ao mesmo tempo. A cara é uma maravilha; causa hilaridade, faz rir a bandeiras despregadas, o seu riso é tão natural, tão bem expresso, que sem querer desatamos às gargalhadas. Este desenho vem assinado por um nome que nós respeitamos e que amamos, o de Manuel Macedo, um artista que dá ao público as produções da sua mão e guarda para si e para alguns amigos as produções do seu espírito. Manuel Macedo é uma destas individualidades artísticas que faria honra a qualquer país onde nascessem. Tem a crítica de Gavarni, o seu génio de observação, o seu traço mágico. Manuel Macedo é um artista no que esta palavra tem de mais largo, de mais belo e de mais elevado.
Passemos agora ao volume. Começa por um artigo sobre o estado do País em todas as suas manifestações, políticas, ciência, arte, literatura, costumes, etc. Nesse artigo cheio das observações mais finas, em que se sente um espírito de crítica penetrante, desassombrado de preocupações de qualquer ordem e tendo por único critério o bom senso e a justiça, há coisas verdadeiramente notáveis, que tem um cunho magistral. Já não são farpas, são verdadeiros artigos de crítica, que fazem honra aqueles que os escreveram e que dão bem a medida dos seus espíritos.
(…)
Tudo isto é uma verdade, dita sem amargura, sem irritação, brincando e galhofando. É a demolição pelo ridículo, que é talvez ainda uma arma mais terrível que a indignação profunda.
É este o tom geral com que são criticados os factos da política, os actos da vida, etc. Há um pequeno artigo sobre as economias, preocupação de um certo partido político, que é quase sublime.
Isto tudo é profundamente original entre nós, tudo isto é ouvido pela primeira vez e portanto é apreciado, gouté, como dizem os franceses.
Esta publicação é própria para despertar uma verdadeira curiosidade, é bonita, tem graça, tem bom senso, diz grandes verdades, esclarece muitas coisas, é sempre justa, é independente. Que mais lhe querem, pela nossa parte estamos satisfeitos e só queremos que seja sempre assim. (A Revolução de Setembro, 20 de Junho de 1871)
No caso do surgimento da Voz do Operário, há um tom de censura na notícia:
A Voz do Operário – É este o título de um novo jornal, cujo primeiro número foi dado hoje à estampa. Da rápida leitura que dele fizemos, parece-nos que deverá satisfazer ao fim a que é destinado. Se se desviar das boas doutrinas sustentadas neste primeiro número depressa conhecerá o erro, o que teremos de sentir, porque somos dos que muito se interessa pelo melhor estar das classes que vivem do trabalho e para o trabalho. A dos manipuladores de tabaco, de que é órgão a nova folha, é das classes obreiras a que mais principalmente se torna digna de pronta e eficaz protecção. (A Revolução de Setembro, 12 de Outubro de 1879).
Sampaio definia-se a si mesmo como um jornalista que aceitava pacificamente a luta política através da imprensa e que admitia vozes discordantes no seu próprio jornal, conforme apregoou na Câmara dos Deputados, em Abril de 1856[1], dirigindo-se a outro parlamentar, que o acusava de acumular o jornalismo com o cargo de deputado, usufruindo, assim, de vantagens:
sou deputado e sou jornalista e não sei que a qualidade de deputado me inibia de exercer o ofício de jornalista, e declaro (...) que se tivesse de optar (...), optava pelo de jornalista. E o que me admira é que o ilustre deputado que (...) expõe aqui as suas opiniões, as não exponha também pela imprensa. Eu vou para lá, todos o sabem. Redijo os meus artigos e assino-os com o meu nome, não apareço só como editor responsável, mas também como redactor, e nem todos fazem assim, o que prova que a franqueza é mais fácil de alardear do que de seguir. Não censuro nisto ninguém, mas (...) seria mais curial que aqueles que se julgam ofendidos pela imprensa, recorressem à mesma imprensa, e se o ilustre deputado não tem um jornal que lhe admita os seus escritos, eu de muito boa vontade lhe ofereço um jornal (...).
Essa é que é a questão, e acho sempre inconveniente vir trazer para a tribuna as questões da imprensa. Se a imprensa pode falar agora aqui pela minha boca, não pôde falar sempre, e o ilustre deputado (...) pode responder-me pela imprensa (...), que eu aceito todas essas armas.
Assim, foi mais pelo seu exemplo de vida e acção que Sampaio demonstrou a sua fé na liberdade de imprensa, bem expressa na frase “antes quero uma imprensa anárquica do que uma imprensa perseguida”, que proferiu no calor da luta contra o cabralismo. Para ele, a liberdade de imprensa era uma forma de assegurar o controlo dos poderes, já que através dos jornais seria possível confrontar opiniões e denunciar os crimes e as prevaricações, conforme se assinalou nos textos relativos à promulgação da “Lei das Rolhas”, pelo Governo de Costa Cabral, em 1850, acima inseridos. Contraditoriamente, conforme já se referiu, o exemplo que Sampaio deu enquanto político, após 1851, foi o de alguém que passou a desconfiar da “imprensa anárquica” e que pretendeu, através dos tribunais e das leis, refrear o que entendia serem os excessos dos jornais.
Há alguns registos escritos do seu pensamento sobre a imprensa. Primeiro, pode dizer-se que Sampaio tinha plena consciência do seu grande poder, superior até ao dos deputados:
Senhores deputados, o poder da imprensa é eterno e o vosso é muito caduco e mortal. Vivemos há muito e temo-vos visto ora soberbos, ora humildes, ora ameaçando, ora pedindo misericórdia, enquanto que a imprensa do lugar sobranceiro em que se acha colocada, ora vos ataca nos vossos erros, ora vos compadece na vossa aniquilação. (Revolução de Setembro, 26 de Janeiro de 1850)
A 20 de Abril de 1846, o jornalista sustentou num suplemento ao Revolução de Setembro, já aqui referido, que a falta da liberdade de imprensa, sendo esta vista constitucionalmente como uma das “garantias do cidadão”, se assemelhava ao “silêncio dos túmulos”, deixando o país “à mercê do Executivo e dos seus agentes”. E relembra que foi com ausência de liberdade de imprensa que “o despotismo sempre (...) começou”. Cita, aliás, Montesquieu, no Espectro, para vincar a importância da liberdade de imprensa na luta contra as soluções despóticas:
Ao despotismo, convinha-lhe ser silencioso. Montesquieu escreveu: “Num estado livre, é indiferente que se pense bem ou mal. O caso é que se pense.” O famoso publicista acreditava, com razão, no sentimento da maioria e no poder da discussão. (Espectro, 13 de Janeiro de 1847)
Do mesmo modo, no Espectro de 26 de Fevereiro de 1847, António Rodrigues Sampaio escreve:
O jornalista é o sacerdote de uma religião, duma crença social – expõe a sua doutrina, discute, convence ou é convencido. A sua alma deve respirar sempre amor, o seu apostolado é um apostolado de paz. Se o seu irmão peca, deve dizer-lhe como o sacerdote do Evangelho: – Fili, pecasti, non adjicias iterum.
Portanto, para Sampaio, jornalismo é engajamento doutrinário, militância e panfletarismo, exige entrega total, e o jornalista é o intérprete sacerdotal dessa missão. Uma missão superior à do próprio parlamentar, pois, embora a tribuna e o jornalismo sejam “filhos da mesma mãe”, “a tribuna é a voz do privilégio”, enquanto a imprensa “é a voz do povo” e o seu “sufrágio” é “universal” (Revolução de Setembro, 10 de Julho de 1848).
Sendo intérprete de uma doutrina, o jornalista, depreende-se das palavras de Rodrigues Sampaio, deve ser, ainda assim, um intérprete cordato, que aponte paternalmente os erros dos adversários: “a sua alma deve respirar (...) amor, o seu apostolado é um apostolado de paz”. Essa visão corresponde, aliás, aos juízos que os contemporâneos de Sampaio fizeram sobre a sua pessoa: adversário corrosivo, frontalmente corajoso, mas leal e bondoso, pouco dado a vinganças, profundamente imbuído dos ideais católicos da compaixão e do perdão.
O excerto de texto anterior invoca também a ideia do jornalista como sacerdote e do jornalismo como sacerdócio, comum nos escritos dos que reflectiram sobre a natureza da profissão em Portugal (ver, por exemplo, SOUSA, 2008a; 2008b; 2008c; SOBREIRA, 2003). Sendo sacerdócio, o jornalismo implicaria a total disponibilidade do jornalista, crença, convicção, proselitismo e doutrinação. Essa visão do jornalismo como sacerdócio opôs-se, por muitos anos, à do jornalista como técnico capaz de obter, produzir e difundir informação (ver, nomeadamente: SOBREIRA, 2003). É uma percepção que, inclusivamente, Sampaio vincará no Revolução de Setembro, a 16 de Novembro de 1848, quando exclama, referindo-se ao jornalismo, que “Este sacerdócio é grande e majestoso quando é livre e independente”. Nessa frase, porém, remete já para outros valores caros aos jornalistas: liberdade e independência.
Os mesmos princípios de liberdade com responsabilidade, independência, mas também do jornalismo como doutrina e sacerdócio, são vertidos, identicamente, no artigo de fundo que Rodrigues Sampaio assinou no Revolução de Setembro, a 26 de Setembro de 1856:
Consideramos mais nobre a imprensa do que a costumam considerar os nossos adversários. Ainda que sejamos o órgão e o defensor de grandes interesses públicos, não nos limitamos somente a ser o reflexo das opiniões recebidas, nem o eco do que se diz, nem a repercussão dum sentimento geral; cremos que a imprensa deve ser um livro de instrução e tomar, por isso, a iniciativa nos diversos assuntos, esclarecendo a opinião pública, que pode ser errada, em vez de seguir rotineiramente, obstando assim a todo o progresso razoável e sensato. É assim que nós temos exercido este sacerdócio; é assim que o havemos de continuar a exercer. Real, real, repetem-no os papagaios, mas a imprensa deve ser mais alguma coisa. (Revolução de Setembro, 26 de Setembro de 1856)
Num outro número do Espectro, o de 9 de Janeiro de 1847, lamenta “a cegueira de certos publicistas que sustentam uma Corte corrupta com receio de outra pior”. Publicista, para Sampaio, era aquele que se dedicava à publicidade, entendida como a publicitação de factos e ideias através da imprensa. Assim sendo, publicista era sinónimo de jornalista. Ora, segundo se depreende das palavras de Sampaio, a missão jornalística teria uma dimensão moral. Os jornalistas, embora doutrinários, não poderiam ser cegos, isto é, não poderiam ignorar a verdade e muito menos apoiar cegamente um Poder Régio e um Governo corruptos. A questão da perseguição da verdade, do falar verdade, era, aliás, segundo Sampaio, um elemento fulcral para a definição de um jornalista, tal e qual como escreve no Espectro de 19 de Dezembro de 1846: “Falai em tudo verdades (...). Nestas horas tremendas (...) é preciso ser franco e leal, é preciso falar como se estivéssemos na presença de Deus a dar-lhe conta de todos os nossos pensamentos e acções.”
A perseguição da verdade jornalística continuará a ecoar, pelos tempos fora, na prosa de António Rodrigues Sampaio, conforme se demonstra no exemplo seguinte, extraído do Revolução de Setembro de 6 de Dezembro de 1850. No entanto, a questão da verdade jornalística, para ele, entroncaria na luta política:
A imprensa não tem outra missão se não a de dizer a verdade e de propor os melhores alvitres de administração. Se o Governo faz mal, é necessário argui-lo e obrigá-lo a fazer bem; se faz pouco, é necessário instigá-lo a fazer mais; se tem más tendências, é necessário combatê-lo; se as tem boas, é necessário animá-lo. (Revolução de Setembro, 6 de Dezembro de 1850)
Ser fiel à verdade é, relembre-se, um valor central dos jornalistas, inculcado no jornalismo através da historiografia clássica de Heródoto, Tucídides, Xenofonte e outros (SOUSA, 2008d). Por isso, amiúde Sampaio volta a repisá-lo e enaltecê-lo, sugerindo, ainda, que a imprensa deve ser suficientemente escrutinadora para aclarar o que está escondido: “a imprensa é feita para tirar a verdade dentre as maranhas dos enredadores e iluminar bem os recantos e as insidias das veredas políticas.” (Revolução de Setembro, 16 de Novembro de 1848)
Os deveres mais altos da imprensa deveriam ser, na versão de Sampaio, ilustrar e inspirar. Um jornal não deveria ficar, infere-se das suas palavras, pela superficialidade dos factos. Pelo contrário, era-lhe cobrado explicar, guiar e doutrinar. Os ideais da Modernidade, misturados com o do doutrinarismo jornalístico, continuavam bem presentes no jornalismo oitocentista português:
Não seremos nós escritores públicos os que havemos de rebaixar o nobre mister da imprensa. Não seremos nós que havemos de reduzir este novo poder dos estados, talvez o seu verdadeiro poder, a um escrutinador de votos, a um verificador de vontades, a um apurador de consciências. A nossa missão é mais nobre, o nosso mister mais elevado, o nosso apostolado mais augusto.
A imprensa que se inspira e não inspira é sem inteligência e sem vontade, é um instrumento mecânico, não é uma potência de alma, recebe mas não dá, regista mas não discute, conta mas não explica a razão dos acontecimentos, fala mas não pensa, é papagaio e não homem – só diz o que ouve dizer, não tem vontade própria, porque só quer o que os outros querem, abdica, porque não sabe pronunciar um voto.
(…)
De que serve a imprensa se não há-de ilustrar os povos? E como ilustra se não se eleva acima deles? Como esclarece se não pode pregar uma nova doutrina, converter os que não crêem nela, chamar ao caminho os que andam desgarrados? É essa uma imprensa que não convence, é convencida; não guia, é guiada; não ensina, aprende.
Não é, nunca foi, nem há-de ser essa a missão da verdadeira imprensa. A faculdade de manifestar cada um o seu pensamento não é a de manifestar o pensamento dos outros. Aquela faculdade é que nos dá o direito de expendermos a nossa opinião individual e de pugnarmos quanto em nós couber para a fazermos triunfar – não um triunfo sobre o corpo mas sobre o espírito, não uma conquista bruta mas uma conquista sobre as inteligências. A maioria tem o direito de se fazer obedecer, mas a minoria, o indivíduo, tem-no igualmente de se fazer ouvir e de procurar converter essa minoria em maioria pela discussão que ilumina a inteligência e dirige a vontade.
(…)
A imprensa não é pois somente um órgão, uma representação, é e cumpre que seja, um ensino e um astro que ilumine. (Revolução de Setembro, 11 de Maio de 1848)
A 6 de Fevereiro de 1844, após o insucesso da revolta anti-cabralista de Torres Vedras, e num tempo em que a ofensiva contra a liberdade de imprensa recrudescia, Sampaio redigiu o seguinte texto no Revolução:
daqui a pouco, a publicidade, condição indispensável do sistema constitucional, será vedada, os prelos condenados como aríetes da anarquia, os tipos destruídos como projécteis da revolução. Calar-se-á o jornalismo. O silêncio da escravidão pesará sobre este País como uma campa de mármore negro sobre o túmulo. (Revolução de Setembro, 6 de Fevereiro de 1844)
Essa passagem permite perceber que António Rodrigues Sampaio considerava o jornalismo livre indispensável aos estados democráticos de direito, graças ao seu papel na publicitação e no escrutínio dos actos de poder. Sem jornalismo, impor-se-ia o “silêncio da escravidão” a um povo. Amordaçado, este ficaria incapaz de se sintonizar com a actualidade e de julgar com consciência de causa os actos de poder. A 5 de Janeiro de 1849, noutra passagem da secção “Interior” do Revolução de Setembro, na qual se reconhece o vigoroso estilo de Sampaio, este sublinha efectivamente a ideia de que o jornalismo doutrinário livre, no âmbito do qual os periódicos opostos possam dialogar e digladiar-se, é indispensável para a ilustração dos povos e para a alimentação do próprio processo político parlamentar. Por outro lado, no mesmo texto, demonstra-se que os jornais políticos do Portugal oitocentista sobreviviam graças aos apoios financeiros de quem representavam, incluindo o próprio Governo:
O (…) Governo (…) a nós, a imprensa, nunca (…) respondeu. A opinião pública (…) nunca foi ilustrada. Esses periódicos, que o Governo paga, deixaram-no condenar à revelia. (…) Quando esses jornalistas pedem a paga, porque não lhes diz o Ministério – não careço de vós, tenho o Parlamento onde me defenderei?
Nos países constitucionais, onde a imprensa discute, as questões vão ilustradas cá de fora, e os representantes da Nação nada mais fazem do que dar movimento e vida à letra morta, ao trabalho baldado e estéril do jornalista. Estudando as questões dadas pró e contra, podem formular melhor o seu juízo, e nem se expõem a fazer uma acusação injusta, nem a deixar de acusar uma injustiça flagrante (…). (Revolução de Setembro, 5 de Janeiro de 1849)
Por isso, Sampaio condena vigorosamente os atentados contra a liberdade de imprensa, conforme se pode observar, por exemplo, neste vigoroso texto, extraído do Revolução de Setembro de 4 de Outubro de 1847, no qual enquadra os ataques às tipografias dos jornais oposicionistas na categoria dos crimes graves e, ironicamente, acusa o Governo de dar exemplos “animadores” sobre a forma de governar:
A nossa tipografia está rodeada de soldados (...). Não nos espanta (...) este prelúdio de um grande crime (...). O atentado cometido contra a imprensa do Nacional, no Porto, (...) ficou impune (...). O exemplo foi animador.
Também no Revolução de Setembro, mas a 10 de Abril de 1851, igualmente num texto contra Costa Cabral, Rodrigues Sampaio escreveu o seguinte:
A imprensa é civilizadora, é conselheira de paz, é mensageira da verdade. Pondo a mão sobre o coração do país, conta todas as suas palpitações, espreita todos os seus movimentos, e procura dar-lhes uma solução pacífica e racional. A imprensa não diz ao povo que se insurja, mas diz e repete cem vezes ao Governo que o seu sistema leva o povo direito à insurreição. A imprensa não excita as paixões do país contra as autoridades, mas tem a obrigação de dizer que o roubo, o peculato e a concussão são motivos suficientemente fortes para excitar todas as sensibilidades e levantar todos os corações honestos e todos os ânimos pundonorosos. (Revolução de Setembro, 10 de Abril de 1851)
O que se intui desse excerto de texto é que, para Sampaio, o jornalismo tem uma missão civilizadora, na linha dos argumentos liberais sobre a liberdade de imprensa. Efectivamente, para os liberais oitocentistas portugueses, conforme se pode observar, por exemplo, pelos textos de Casal Ribeiro (1850), Silva Ferrão (1850), Cavroé (1821) ou Sinval (1823), a imprensa livre é veículo de conhecimento e de confronto de pontos de vista, impede o despotismo, permite o escrutínio do poder e dá expressão pública aos pensamentos individuais, expandindo a liberdade de pensamento, vista como um direito natural do homem. Aliás, registe-se que Sampaio, no editorial do último número do Espectro (3 de Julho de 1847), tem uma frase, dirigida aos leitores, em que revela a sua crença na imprensa como veículo das Luzes: “A imprensa livre vos ilustrará.”
De acordo com essa missão civilizadora, a imprensa seria ainda, de acordo com Sampaio, “conselheira de paz”. Aqui, estará já em destaque a faceta da imprensa como espaço através do qual os indivíduos podem confrontar pontos de vista sem necessidade de se encontrarem e, muito menos, de entrarem em guerra. Ele próprio diz que a imprensa pode contribuir para dar “uma solução pacífica e racional” aos problemas do país. Era contra os “publicistas de baioneta e cacete”, conforme escreve no Revolução de 23 de Setembro de 1847, e favorável, portanto, a uma transferência da violência física e social para a palavra – para o plano do simbólico. A palavra, mesmo virulenta e forte, ou até injuriosa, causa sempre menos mossa do que o “cacete” ou as “baionetas”.
Mas mais importante, para Sampaio a imprensa também é “mensageira da verdade”. Comprometer-se com a verdade, exprimir o mundo com verdade, é o valor central do jornalismo, tomado à historiografia (SOUSA, 2008a). Os artigos de Sampaio podem, assim, ser lidos como uma luta pela verdade, ou pelo menos como uma luta pela supremacia de uma verdade. No entanto, também podem ser lidos como pregões de determinadas causas. Registe-se, aliás, que as insinuações caluniosas e as acusações nem sempre justas que António Rodrigues Sampaio dirigiu a D. Maria II e aos Cabrais, especialmente a Costa Cabral, fogem à ideia de luta pela verdade. Alguns dos seus textos são mesmo exemplos de “jornalismo” de causas e neles a verdade dos factos é subordinada à conveniência das causas. O próprio excerto de texto acima inserido demonstra claramente a fé de Sampaio na imprensa como veículo de mobilização popular para a defesa dessas mesmas causas – “A imprensa não excita as paixões do país (...), mas tem a obrigação de dizer que o roubo, o peculato e a concussão são motivos suficientemente fortes para excitar todas as sensibilidades e levantar todos os corações honestos e todos os ânimos pundonorosos.”
Uma outra passagem do texto acima merece destaque. Para António Rodrigues Sampaio, a imprensa consegue auscultar o “coração do País”, dar conta de “todas as suas palpitações”, observar “todos os seus movimentos”. Aqui transparece a crença de Sampaio na imprensa como indício, ou talvez mesmo espelho, do que se passa num território. Afinal, ontem como hoje os jornais servem para dar a conhecer o que se passa, para promover o conhecimento geral, pois, como ele disse no Revolução de 25 de Fevereiro de 1854, “a revolução moderna está na ilustração”.
Também é de dizer que os já referidos ataques de Sampaio, através do Espectro, aos jornais O Popular e Brado da Lealdade, que visavam a vida familiar de D. Maria II, demonstra que este jornalista acreditava na separação entre a vida privada, que não deveria ser objecto do jornalismo, e a vida pública, que legitimamente poderia ser objecto de cobertura e interpretação jornalísticas. Efectivamente, Sampaio condenou o uso da linguagem desbragada do mais violento dos jornais clandestinos da Patuleia, O Popular, em termos bastante claros. Escreve, efectivamente, Rodrigues Sampaio no Espectro de 26 de Fevereiro de 1847: “Apareceu (...) O Popular. O Espectro faltaria à sua missão se ficasse silencioso à vista da linguagem que nele se emprega. Magoou-se-nos o coração ao lê-lo.” (Espectro, 26 de Fevereiro de1847)
Noutro número do Espectro, o de 24 de Junho, vinca, novamente, a necessidade de defesa da reserva da vida privada e familiar pelos jornalistas, a propósito do descomedimento de um outro jornal – O Brado da Liberdade:
Lemos no Brado da Liberdade uma acusação que nos cobriu de vergonha. Diz o papel cabralista que a família do Rei está devassando o paço, que o esposo da Rainha se vai enchendo de vícios (...). Os ministros espalham a mãos largas estes infames papéis.
O partido popular (...) respeitou sempre a vida privada da Real Família. Não merece ser Rainha (...), mas não merece ser caluniada. O Espectro não a pode amar, porque não pode amar a tirania. Mas é preciso ser justo e clamar que o Brado da Liberdade é um infame (...).
Também no Revolução de Setembro, Sampaio escreveu sobre a necessidade de contenção no campo do jornalismo. Fê-lo por múltiplas vezes. Por exemplo, a 10 de Abril de 1851, numa afirmação já citada, Rodrigues Sampaio diz que a imprensa não pode incitar o povo às revoltas, ainda que tenha um dever sagrado de denunciar a alertar para as razões que as podem detonar:
A imprensa não diz ao povo que se insurja, mas diz e repete cem vezes ao Governo que o seu sistema leva o povo direito à insurreição. A imprensa não excita as paixões (...) contra as autoridades, mas tem obrigação de dizer que o roubo, o peculato e a concussão são motivos suficientemente fortes para excitar todas as susceptibilidades e levantar todos os corações honestos e todos os ânimos pundonorosos. Esta missão sacratíssima, temos a consciência de a haver desempenhado. (Revolução de Setembro, 10 de Abril de 1851)
Similarmente, noutro texto, António Rodrigues Sampaio convoca os jornalistas – em especial os publicistas famosos – a conterem-se na forma como vergastam o Governo, empregando, conforme lhe era comum, metáforas de cunho religioso:
Instruir o povo, fundando escolas, criando institutos, dotando professores, animando as artes; melhorar a situação económica abrindo vias de comunicação, distribuindo com igualdade o imposto, aplicando-o com discrição, era até hoje a missão do estadista. Incitar os poderes públicos a cumprir esta missão era o dever da imprensa; argui-los por faltar a ela era a sua prática constante; mas envergar a roupeta do jesuíta por cima dos guizos do histrião e ver arvorados em vigários gerais os publicistas cujas virtudes a fama apregoa, amaldiçoando os bens terrenos estes moralistas ascéticos macerados pelo jejum e pelo cilício, é o que nos faltava para ver nesta época de paradoxos. (Revolução de Setembro, 16 de Maio de 1855)
Já a 22 de Junho de 1858, o jornalista apela, no Revolução de Setembro, à “imprensa esclarecida e honesta” para não propagar insinuações “torpes e indecentes” sobre as Irmãs da Caridade, congregação que tinha regressado a Portugal, e salienta “desaprovar este desvio que a desonra”. Para ele, os jornais não têm o direito de “ofender a sociedade”, por mais que tenham o de “divergir uns dos outros”.
A contenção verbal dos jornalistas significa igualmente, segundo António Rodrigues Sampaio, não acusar sem provas, ainda que o jornalismo exerça, diz também ele, o papel de vigilante dos poderes, de watchdog, sinal de que essa função jornalística nas sociedades democráticas já tinha sido interiorizada pelos jornalistas portugueses de oitocentos:
a imprensa invade tudo, sabe tudo, mas não lhe é lícito dizer tudo. Sentinela vigilante postada às portas do poder, nada lhe pode ser defeso, mas para crédito seu não pode levantar às vezes o véu do mistério que encobre muitas torpezas. O acto existe, mas as provas faltam (...). (Revolução de Setembro, 24 de Agosto de 1848)
A seriedade, a gravidade, a elevação, a nobreza, seriam, portanto, na visão de Sampaio, indispensáveis ao jornalismo político – que só assim poderia reivindicar a sua condição de sacerdócio, outra ideia cara a Sampaio e comum entre os teóricos portugueses do jornalismo e entre o imaginário profissional dos jornalistas portugueses até ao século XX (SOUSA, 2008b; 2008c; 2008d; SOBREIRA, 2003):
A governação do Estado quer também vento da oposição que a agite, discussão séria que a alimente, controvérsia que a excite. Mas o mexerico não é próprio da imprensa grave, não é meio de oposição nem de governo, não é recurso político, porque desconsidera o que o emprega como abatimento moral e como quebra de inteligência. A imprensa não é soalheira, é tribuna; não é palestra de bisbilhotices, é apostolado de doutrinas; não é balcão de impostura nem de calúnias, é cadeira de verdade. Elogia o bem sem baixeza, argui o mal com dignidade, defende com desinteresse, ataca sem prevenção, sustenta com consciência, reprova por convicção, respeita-se a si própria para se fazer respeitar dos outros, para adquirir autoridade e força, condição necessária para ser aceite a sua doutrina, reconhecida a sua missão, acatado o seu império, frutífero o seu trabalho, respeitada a sua opinião, seguido o seu conselho e coroada de sucesso a sua direcção.
A imprensa é magistratura que julga, não é algoz que suplicia; é sacerdócio que santifica, não é ofício vil que degrada; é farol que ilumina, não é nuvem negra que escurece; é juiz que aprecia, não é beleguim que prende; é instituição benéfica, não é valhacouto de malfeitores; é inimiga de criminosos, não é terror de inocentes. Instituição nobre e pura, os seus sacerdotes devem ser puros como ela.
Inspira-nos estas palavras não o desvio da imprensa mas a nobre atitude que a vemos tomar numa questão onde talvez se venham a revelar grandes mistérios. As paixões podem ser às vezes injustas, mas nessa injustiça pode haver, até certo ponto, nobreza.
Decipimur specie recti.
O desejo do bem pode cegar-nos na escolha dos meios; mas profanar o templo augusto, arrastar vítimas inocentes, traficar com a honra alheia, salvar os próprios crimes, imputando-os aos outros, a imprensa política não o pode consentir, seja qual for a sua posição, porque é quebrar o instrumento do seu poder e destruir a base da sua força. Seja a imprensa digna de si, que achará nisso a sua recompensa. (Revolução de Setembro, 2 de Fevereiro de 1860)
Um outro ponto relevante do pensamento de Sampaio sobre a imprensa diz respeito à defesa da do estabelecimento de um estatuto editorial que diferencie cada órgão de comunicação social e clarifique o seu posicionamento e as suas ligações ao poder político (e quiçá ao económico), opção lógica de quem via no jornalismo essencialmente um modo de intervir politicamente no espaço público. De algum modo, o jornalista parece sustentar que só tornando a relação jornal-leitor-público transparente é possível, a um periódico, celebrar um contrato de leitura com o leitor. Portanto, sem programa, sem abraçar uma doutrina, um órgão de comunicação social não teria coluna vertebral. É o que parece transparecer da crítica que faz, no Revolução de Setembro de 27 de Setembro de 1848, ao aparecimento de um novo jornal, O Lusitano:
O Lusitano parece não ter sistema, i. e., um corpo de doutrina que é preciso abraçar com preferência a outro qualquer (...). Cumpre adoptar um sistema, com todos os seus inconvenientes, porque nenhum há que não os tenha. (Revolução de Setembro, 27 de Setembro de 1848)
É a mesma preocupação pela transparência dos projectos jornalísticos, na promoção, na liderança e na linha editorial, que se observa neste outro excerto de um texto de António Rodrigues Sampaio:
Aparece agora um jornal que também não tem bando, não tem chefe, não tem grémio, não tem soldados, não tem homens, mas presta homenagem aos grandes e generosos dogmas de genuíno grémio progressista. Parece ser uma variante do senhor conde de Ávila, brincando com os princípios como o ministro popular brinca com as suas numerosas condecorações. (Revolução de Setembro, 30 de Julho de 1865)
Apesar de Rodrigues Sampaio chamar cada jornal a abraçar, transparentemente, um posicionamento político, não deixa, porém, de sustentar que um periódico não pode ser apenas a reverberação de um partido. Segundo o que parece transparecer dos seus escritos, um jornal deverá ser colocado num plano mais elevado do que as simples querelas políticas, pois cabe-lhe exercer pedagogia cívica, assumidamente doutrinária e, portanto, sacerdotal, sem sacrifício da sua esfera de autonomia:
Um jornal não representa simplesmente um partido, porque nesse caso seria eco, e não sacerdócio nem ensino. Nós não somos eco nem caudilho. Pregamos uma doutrina (...). Se interpretamos mal o credo (...), a culpa é nossa (...); se interpretamos bem, a glória é para o partido. (Revolução de Setembro, 16 de Março de 1852)
Os vários exemplos acima aduzidos demonstram que, efectivamente, na produção intelectual – jornalística e política – de Sampaio é habitual, ainda que não frequente, a ponderação do papel da imprensa na sociedade e a análise do jornalismo do seu tempo. Por exemplo, a 17 de Setembro de 1852, escrevia no Revolução de Setembro que a crítica jornalística não deveria ser fulanizada:
A imprensa livre é assim. Considera o acto nas suas consequências e não atende ao homem que o pratica. (Revolução de Setembro, 17 de Setembro de 1852)
Noutros exemplos, António Rodrigues Sampaio tenta demonstrar, um tanto ou quanto sofisticamente, que, em democracia, a liberdade de imprensa, sobretudo quando insuflada por um espírito de elevação, respeito e razão, é um princípio superior de regulação social – até porque da discussão livre poderia emergir a verdade. Mas mais do que isso, conforme se denota, em especial, no último dos exemplos seguintes, para ele os jornais livres devem assumir papéis de liderança no âmbito da luta política:
Amamos a liberdade de imprensa, porque a discussão desfaz os chorrilhos e as calúnias, confundindo os mexeriqueiros e revelando a nulidade de muitos discursadores. (Revolução de Setembro, 2 de Setembro de 1855)
Hei mihi, qualis erat! Quantum mutatus ab illo.
A imprensa é a prática da liberdade. Como todas as coisas humanas tem vantagens e inconvenientes, destrói e edifica, corrompe e moraliza, ilude e desengana, cega e esclarece. A imprensa não é um homem, não é um livro, não é um jornal, é uma instituição, é o parecer escrito de todos os homens, é a apreciação e o alvitre de todos os livros, é a opinião contraditória de todos os jornais. A imprensa não é um indivíduo, é um corpo colectivo que é avaliado pelo resultado geral dos seus actos.
Os apostolados da imprensa podem ser bons ou maus sem que a instituição padeça; podem abusar como abusa o juiz, como abusa o administrador, como abusa o padre. Podem fazer mal à sociedade como o podem fazer a si mesmos. Mas a possibilidade do abuso não pode prejudicar a liberdade como a corrupção do magistrado não prejudica a causa santa da justiça e como a indignidade do ministro do altar não prejudica a verdade da religião.
Quando o divino mestre ensinava os discípulos pregava-lhes com o exemplo. Exemplum enim dedi vobis ut quomodo ego facio ità et vos faciatis. Fazei o que eu faço, segui o meu exemplo.
Nem todos os apóstolos da imprensa cumprem o preceito evangélico. Para eles o apostolado da imprensa é uma especulação interesseira. Quando o poder não segue os seus ditames, quando o pórtico dos Bórgias lhes é vedado, queixam-se dos homens e não do sistema, porque este é bom e aqueles são maus, levantam-se contra os especuladores políticos, avivam o seu passado contraditório, condenando os que pretendem passar sobre ele a esponja do esquecimento, censuram o apoio dos charlatães, a simpatia dos devassos, a dedicação dos hipócritas e estigmatizam a ignorância, o desaforo, o egoísmo e o ridículo. Tácito escreveu para estes o omnia serviliter pro dominatione.
Quando porém se abre o pórtico dos Bórgias, o braço robusto que queria arrancar o B enfraquece e os ousados que atacavam os homens fulminavam as contradições, condenavam os charlatães, os devassos e os hipócritas convertem-se ao culto da ideia, desprendem-se das paixões do mundo e recomendam indulgência nas palavras e benevolência para com os homens, porque hoje o grande torneio é o das ideias, o dos princípios e das doutrinas, importando pouco quem realiza o princípio, se esse princípio é bom!
Eremitas, onde está a vossa thebaida? Quais foram os desenganos do mundo que vos fizeram desmentir os actos passados da vossa missão civilizadora? Como julgáveis cumprir o vosso apostolado, fulminando as contradições dos homens e como solicitais hoje uma benevolência tardia para eles? Como condenáveis há pouco o esquecimento das contradições e dos precedentes dos homens e como proclamais hoje a aceitação do princípio sem nos importar quem o realiza?
Entendemos. As vossas lutas homéricas de ontem são hoje ridículas por obsoletas, desnecessárias por impotentes, desprezíveis por espectadoras. O que era ontem justo, é hoje um auto de fé onde se imolam as reputações. O esquecimento era ontem um crime; a recordação é hoje um escândalo! Ontem era um direito a publicidade dos actos contraditórios, hoje é uma ofensa da moral. Por outra – ontem pedíeis a condenação dos vossos adversários, hoje suplicais clemência para vós.
A imprensa não foi instituída para tráfego de consciências. É menos repreensível a sua rudeza que o seu mercantilismo. A rudeza prejudica-a a ela, mas nem corrompe, nem moraliza a sociedade. E quando se quer mostrar civilizada, condenando os outros por usarem do direito que ela amplamente usou, a sua tentativa denuncia a sua especulação, a sua benevolência desmente a sua coragem contra os homens, e em lugar de obliterar no seu frontal de política o dístico desanimador
Par me si va tra la perduta gente
aviva a sua letra negra e num vergonhoso silêncio
guarda e passa.
A. R. Sampaio. (A Revolução de Setembro, 1 de Agosto de 1860)
Não estamos na imprensa para sustentar ou combater governos, o nosso fim é mais nobre e mais elevado. No seu lidar incessante, pode ela ora ter de louvar, ora que repreender, mas a sua missão principal não é o louvor nem o vitupério, é examinar a verdade, dar o seu alvitre, discutir o dos divergentes, pugnar pela sua liberdade, respeitar a dos outros para fazer respeitar a dela e despir-se das ruins paixões que pervertem o espírito e ofuscam a razão. (Revolução de Setembro, 20 de Setembro de 1866)
A imprensa, ninguém a regenera, regenera-se ela mesma. A imprensa é até certo ponto o reflexo da sociedade e devia antes ser o seu farol e o seu guia. A imprensa exprime umas vezes o gosto estragado de uma fracção do povo, outras os seus preconceitos, outras as suas paixões, outras as suas opiniões mais ou menos justas, mais ou menos erradas, outras os seus interesses de momento nem sempre legítimos, nem sempre verdadeiros, quando devia representar sempre a razão e a justiça, a imparcialidade e a cordura, a docilidade em escutar as razões opostas, a tolerância para com as opiniões contrárias, instruindo e instruindo-se, sendo antes uma academia de homens que desejam esclarecer, que um circo de gladiadores que se devam mutuamente despedaçar. (Revolução de Setembro, 25 de Julho de 1863)
Assim, como se via Sampaio a si mesmo ao exercer o seu mister de jornalista? Como alguém que perseguia uma missão política no seio de uma sociedade livre:
Tivemos hoje a honra de ser citados desfavoravelmente no Parlamento e na imprensa por causa da liberdade do pensamento e da sua comunicação. Desagradámos à unha branca e à unha negra. Sentimo-lo, porque para um só coração é muita mágoa; mas persistimos no propósito de amar mais a liberdade que a tirania, mais a religião que o padre e mais a justiça que o carrasco.
A nossa missão não é teológica, é política. Falamos e escrevemos no interesse da sociedade e dos cidadãos. (Revolução de Setembro, 1 de Fevereiro de 1865)
Interessantemente, o autor também reflecte sobre as circunstâncias da obtenção das informações que alimentavam as notícias dos jornais. Fá-lo a partir da constatação, em jeito de crítica, da insuficiência de comunicações entre a metrópole e as colónias portuguesas. E o que ele diz? Diz que as notícias oficiais normalmente não eram publicadas. Porquê? Não o diz, mas adivinham-se hipotéticas razões: ausência de valor como notícias, parcialidade no relato ou mesmo não chegarem ao conhecimento dos periódicos, retidas nos meandros da administração pública. Já as notícias que chegavam às mãos de particulares não eram publicadas ou porque não chegavam aos jornais ou porque não eram certas – o que demonstra, mais uma vez, a preocupação dos jornalistas de oitocentos pela vinculação do discurso à realidade, ou seja, pela verdade:
São raras as nossas comunicações com as províncias ultramarinas. Escasseiam, portanto, as notícias que de lá temos. As oficiais não é uso publicá-las. As particulares ficam nas mãos de quem as recebe e nem todas são dignas de crédito. (Revolução de Setembro, 28 de Outubro de 1855)
A fé de Rodrigues Sampaio na imprensa – e em particular no debate político conduzido através da imprensa política, independentemente da consideração pessoal pelos adversários – é relevado pelas sucessivas manifestações de regozijo, ou crítica, pela publicação de novos jornais. Eis, por exemplo, o que escreve sobre o aparecimento do jornal O País, de Alexandre Herculano, que tinha acabado de recusar a pasta ministerial do Reino:
Ainda não mencionámos a aparição do País, novo jornal da oposição redigido por homens convictos e penas conhecidas. Faltámos involuntariamente por alguns dias à urbanidade jornalística e ao testemunho de estima, que nos merecem os redactores daquele jornal. Quanto aos retrospectos históricos de que ele se tem ocupado, podemos discordar na apreciação de alguns factos e nas consequências que deles se pretendem tirar. Mas quanto à indignação pelo nosso abatimento, à aversão aos nossos desconcertos, quanto ao afã pelos progressos morais e materiais da Nação, não julgamos avantajar-nos em nada à redacção do País. As suas tendências políticas são de certo outras, mas fora deste terreno havemos de encontrar-nos e abraçar-nos amiudadas vezes. (A Revolução de Setembro, 30 de Julho de 1851)
Às vezes, Sampaio era mordaz. Ao Periódico dos Pobres, por exemplo, apelidou de “boletim de segredos do partido dominante” (Revolução de Setembro, 18 de Fevereiro de 1848).
Como via António Rodrigues Sampaio a imprensa industrial? Em particular, como via determinados “pasquins” que propalavam notícias que, segundo ele, seriam mentirosas e caluniosas? Encarava-os da pior maneira possível e como uma séria ameaça à imprensa política, que ele observava estar a ficar cada vez mais permeável às bem sucedidas fórmulas do jornalismo industrial:
A que se pretende reduzir a imprensa política, este nobre sacerdócio de uma religião, de uma crença social? Como expõe a sua doutrina, como discute e procura convencer? Que sentimentos respira a alma dos sacerdotes da imprensa?
Oh! Como é triste e dolorosa a resposta que a verdade mandar dar a estas interrogações! Que desalento que ela produz no espírito de todos os que consideram a imprensa como o sustentáculo mais firme das liberdades públicas, o instrumento mais poderoso da civilização dos povos.
O jornalismo, com excepções honrosas e que felizmente não são ainda muito raras – não professa uma religião, não tem uma crença social ou política, não expõe uma doutrina, não discute, não procura convencer, não se mostra nunca convencido – injuria, inventa e propala calúnias. A alma desses falsos sacerdotes, sem religião e sem crenças, não respira senão inveja, ódio e vingança.
Ao lado do jornalismo político e à sombra dele nasceu o jornalismo industrial, o jornalismo que é o ofício e a profissão da calúnia, o mais vil de todos os ofícios, a mais nefasta de todas as profissões.
A imprensa, que devia servir para propagar todas as ideias justas, todas as doutrinas sãs, todos os inventos úteis; a imprensa, que devia servir para fortificar os vínculos sociais, promover e consolidar a aliança da liberdade com o princípio da autoridade, reivindicando energicamente os foros do cidadão, apontando ou condenando os erros ou abusos do poder, mas respeitando ao mesmo tempo os seus direitos, a imprensa que devia exercer a mais nobre e grandiosa missão, que simples cidadãos podem exercer num país livre, converte-se e transforma-se em oficina do que há de mais torpe e mais nocivo numa sociedade política, que tem, como condição essencial da sua existência, o progresso rápido no caminho da civilização – converte-se e transforma-se em oficina de calúnias, que se inventam e propalam com a mira no lucro do preço da venda ou com o interesse mais sórdido ainda de enfraquecer o princípio da autoridade, amortecer os sentimentos de patriotismo, relaxar os vínculos sociais e produzir uma dissolução de costumes e uma confusão de ideias, em que os devassos não sejam notados e repelidos pelos homens de consciência limpa e carácter puro.
Os produtos dessas oficinas apregoam-se com os nomes de Mosquitos e Torniquetes etc., nas ruas da capital e das principais cidades do Reino; e para espicaçar o apetite ou armar negaças à curiosidade dos consumidores, põe-se em relevo a torpeza da calúnia e o descabelado da verrina, garante-se a fúria do escritor, clamando que o jornal, que se pretende vender, vem furibundo.
Se o público se não associar à imprensa séria, para expulsar os vendilhões do templo, onde só deve estar um sacerdócio ilustrado, professando uma religião, ensinando uma doutrina, apostolando uma crença social, dentro de pouco tempo estará arruinado o mais firme sustentáculo das liberdades públicas e inutilizando o instrumento mais poderoso da civilização deste País, porque uma imprensa, sem crédito e sem autoridade, não pode realizar a missão para que foi instituída. (Revolução de Setembro, 13 de Setembro de 1867)
Ora, apesar de reconhecer à imprensa uma identidade própria, considerando-a, conforme foi visível nos variadíssimos exemplos aqui aduzidos, uma instituição social, tal e qual conforme reclamavam os pioneiros alemães da sociologia (Sousa, 2008a), António Rodrigues Sampaio, um tanto ou quanto motivado pelos ventos políticos do momento, mostrou-se contra a instituição de tribunais especiais para regulação dos ilícitos de abuso da liberdade de imprensa. Para ele, a imprensa deveria ser regulada pelas leis comuns:
Choram pelas leis de excepção os que se dizem defensores da liberdade de imprensa. Os delitos que ela comete são delitos sublimes que carecem de uma especial garantia para os delitos, que para a liberdade a deve conceder a lei a todo o cidadão, seja qual for a sua posição ou escala social.
O senhor conde de Tomar não justificou com outras razões a sua lei das rolhas. Para os crimes nobres da imprensa, um tribunal especial mais nobre ainda. Igualou-se a repressão à grandeza do atentado e o povo de 1850, essa plebe ignóbil, viu na distinção que se queria fazer um atentado contra o direito comum, que considerou como um atentado contra a liberdade e contra a igualdade.
Governos fracos e tímidos fizeram leis não para garantir a liberdade de imprensa mas para a reprimir. (Revolução de Setembro, 29 de Dezembro de 1865)
A discussão da lei da imprensa ainda continua na Câmara Electiva (…).
A proposta de lei entrega o julgamento da imprensa à lei comum. Nada mais natural. Os crimes dela são como os outros crimes; para que lhe havemos de dar leis de excepção?
A imprensa não pede o privilégio, pede a igualdade. (Revolução de Setembro, 16 de Janeiro de 1866)
Num dos traços mais paradoxais do seu percurso de vida, uma vez chegado ao poder, António Rodrigues Sampaio usou os tribunais para querelar vários jornalistas por abuso de liberdade de imprensa. Porquê? Numa carta ao seu advogado Manuel Maria Beirão, publicada no jornal Futuro de 10 de Abril de 1860, a respeito do insucesso de uma acção que tinha interposto contra O Português, ele procura justificar, defensivamente, o recurso aos tribunais para dirimir uma questão que dizia essencialmente respeito à imprensa:
Quando me argúem de um facto falso e desonroso, não discuto na imprensa, porque aí devem discutir-se as opiniões e não as calúnias, peço a reparação nos tribunais, único lugar onde se julgam tais pendências.
(...)
Não me desconsola a decisão do júri. A acusação era que eu tinha vendido a consciência e o voto. Pedi que O Português retirasse aquelas expressões, e não o fez.
(...)
Estranhou o Sr. Bruschy que eu largasse as armas da imprensa para ir aos tribunais acusar um colega (...). Não há dúvida que a honra do Sr. Bruschy já foi maculada pela imprensa. Não há dúvida que S. S.ª não foi aos tribunais (...). Não há dúvida que se socorreu de dois padrinhos e que julgou que a questão da imprensa devia sair da mesma imprensa, não para os tribunais, mas para o campo onde a agilidade, a força, uma estocada ou um tiro deviam decidir quem tinha razão. (Futuro, 10 de Abril de 1860)
O que se nota no excerto da referida carta acima inserido é, efectivamente, uma certa contradição entre aquela que tinha sido a prática jornalística de Sampaio e o facto de considerar ofensivo, e motivo de uma querela judicial por abuso de liberdade de imprensa, a acusação eminentemente política (uma apreciação, portanto) de que teria “vendido a consciência e o voto”, quando ele próprio de coisas muito mais graves tinha acusado os seus adversários, nem sempre com provas conclusivas, e às vezes baseado em puro rumores. Nessa fase da sua vida, para ele já não podiam, paradoxalmente, ficar na imprensa as questões de honra levantadas na própria imprensa. De qualquer modo, é de salientar a firme convicção de Sampaio na utilidade das instituições de Justiça do Estado de Direito – os tribunais – para resolver as questões relativas aos ilícitos de abuso de liberdade de imprensa, principalmente quando comparada com a alternativa de lavagem da honra em duelo.
Em suma, o pensamento de António Rodrigues Sampaio sobre o jornalismo é assaz contemporâneo, tocando questões fulcrais da reflexão sobre o exercício da actividade jornalística, como sejam: a liberdade de imprensa e os seus limites; a transparência e clareza na relação entre um jornal e os seus leitores, definida por um programa – ou estatuto – editorial; e as funções do jornalismo e a autonomia dos jornalistas e do campo jornalístico, mesmo quando se trata de jornalismo político doutrinário e, como ele diz, “sacerdotal”.
[1] Diário da Câmara dos Deputados, vol. IV, 1856, p. 38-39.