14.09 Cai o pano: evocações de Sampaio
7. Evocações de Sampaio
Como é que os seus contemporâneos avaliaram António Rodrigues Sampaio? Um dos primeiros testemunhos de reconhecimento foi dado pelo seu jornal, A Revolução de Setembro. Nele, a 17 de Outubro de 1880, Cunha Belém, na secção “Folhetim”, evocava a vida de Sampaio. Sendo um artigo redigido enquanto Sampaio ainda era vivo, constitui um importante documento para a reconstituição da sua biografia.
O texto de Cunha Belém é elogioso, apologético até. Mas é também emoldurado pela celebração dos valores da Regeneração (o progresso material do País, a educação...) e pela condenação do jornalismo industrial, que ameaçava a preponderância que os jornais políticos tinham tido até aí.
Efectivamente, para Cunha Belém, como para muitos outros dos seus contemporâneos, o jornalismo seria “um sacerdócio” e não uma profissão técnica, não uma arte liberal, passível de ser aprendida, ideia bem presente nas reflexões sobre jornalismo que se produziram em Portugal até à Revolução de Abril de 1974 (SOUSA, 2008c). Segundo o autor, Rodrigues Sampaio seria, no Portugal do final de oitocentos, o mais legítimo intérprete dessa “missão sacerdotal”, doutrinária, evangelizadora, do jornalismo político:
Folhetim
António Rodrigues Sampaio
Um homem cuja larga vida tem sido uma epopeia de trabalho e de dedicação pela causa da liberdade; um homem que soube fazer da pena um ceptro glorioso; um homem cujo carácter honradíssimo todos respeitam, porque ele sabe derrubar os adversários, não sabe fazer inimigos; eis o que é António Rodrigues Sampaio, o decano, o mestre dos jornalistas portugueses.
Nascido em S. Bartolomeu do Mar, concelho de Esposende, a 25 de Julho de 1805, eram seus pais uns honrados e modestos lavradores, que o destinaram à vida eclesiástica, aprendendo a ler com um padre da freguesia de Betinho, e depois estudando latim com outro padre de Marinhos, e revelando tal engenho e perspicácia que logo os frades capuchos de Viana cuidaram em o admitir na sua ordem, apenas atingisse a idade. Mas o sentimento liberal refervia no ânimo do moço estudante, que, por vontade de sua mãe, e para não cortar os laços de família, teve destino ao clero secular, estudando humanidades em Braga, e aí manifestou tais ideias, que não davam em breve garantias ao fanatismo clerical, sendo logo notado e mais tarde perseguido e preso como liberal, quando o fogo das paixões políticas, desencadeando-se em toda a sua ferocidade, foi sagrar o soldado valente.
O movimento popular de 1836, cujo chefe foi o povo, foi procurar o moço redactor da Vedeta para lhe confiar o encargo de secretário-geral da administração de Bragança, onde exerceu quase sempre as funções de governador, sendo depois transferido nesta categoria para Castelo Branco, onde continuou a afirmar as suas opiniões administrativas.
Logo depois da revolução de Setembro, havendo o grande caudilho liberal José Estêvão, o raio da eloquência tribunícia, fundado com Mendes Leite um jornal, a que deu o título daquele movimento revolucionário, foi Rodrigues Sampaio admitido logo na redacção; e tão grandes foram e continuam sendo os serviços por ele prestados à causa da liberdade e do progresso nesse jornal, que hoje conta quarenta anos de existência, e tão grandes e brilhantes são as glórias alcançadas ali, nas constantes lides jornalísticas, que o ilustre veterano da imprensa é conhecido no país pelo honroso título do Sampaio da Revolução, o que é ao mesmo tempo uma glória para ele e para o jornal.
No período das grandes lutas do Partido Progressista, naquela época de aprendizagem liberal, a Revolução de Setembro foi o órgão mais enérgico, mais eloquente, mais temível da oposição, sem que as perseguições de toda a ordem intimidassem o seu vigoroso redactor, cuja popularidade era imensa e cujos artigos o povo lia e jurava como artigos de fé. No Ministério presidido pelo duque de Palmela, recusa Sampaio todas as ofertas deste homem de estado para conservar a sua independência jornalística, e depois de começada a luta sangrenta, que enlutou o País, suprimida a liberdade de imprensa, ainda a voz de Sampaio se fez ouvir, a animar o partido, a manter a fé, a sustentar as convicções, no jornal ainda hoje célebre, O Espectro, que é um modelo brilhante do jornalismo revolucionário.
Apoiando com toda a sua convicção o movimento político de 1851, foi eleito deputado por Lisboa, e depois quase ininterruptamente fez parte da representação nacional, como membro da Casa electiva do Parlamento, até que foi elevado ao pariato. Em 1870, depois da revolta de 19 de Maio, o marechal Saldanha impôs-lhe a obrigação de aceitar uma pasta, o que ele fez com honrado sacrifício, mostrando o seu desprendimento do poder ao largar, oito dias depois, a pasta que havia aceitado, quando viu que a ditadura não queria respeitar as leis votadas pela Câmara de que ele era presidente; depois em 1871, foi-lhe confiada a pasta do Reino do Ministério Fontes, como lhe tornou a ser no gabinete de 1878 sob a presidência do mesmo ilustre homem de estado, glorioso chefe do Partido Regenerador.
Sampaio, como ministro, foi escrupuloso respeitador da lei, austero mantenedor da liberdade, respeitoso escravo dos seus princípios e demonstrou praticamente as vantagens da máxima tolerância. Zelou pelo desenvolvimento da instrução e pela regularidade da administração do País, sendo sempre o seu nome apontado como modelo dos ministros do Reino, que não querem sacrificar aos interesses facciosos da política os mais altos interesses do País.
Mas, no Ministério ou fora dele, Sampaio tem, desde há largos anos, exercido grande influência nos negócios públicos, sendo um dos vultos mais distintos, mais respeitados e mais simpáticos do nosso país. O título de primeiro jornalista lhe bastaria para isso, se não tivesse ainda outros muitos derivados dos seus bons e nobres serviços à causa da liberdade e do progresso.
Nas longas fadigas da sua vida jornalística, mirou sempre mais o interesse da Pátria do que o seu próprio interesse, recusou valiosas ofertas, viveu modestamente do seu trabalho honrado, sacrificou aos seus princípios muitas vezes os seus magros proventos de jornalista, e fez do jornalismo um sacerdócio e não uma indústria.
Como sacerdote da imprensa, ocupa nela o primeiro lugar. O seu estilo é cheio, conciso, e enérgico, a sua frase fácil e elegante; a sua dicção puríssima e vernácula; a sua lógica inexorável; a sua táctica de argumentar habilíssima, descobrindo sempre o lado fraco dos adversários, sem nunca se pôr a descoberto. Umas vezes, eruditos; outras; jocosos, mas sempre sem pretensão, os seus artigos ainda hoje são apreciados, até mesmo por aqueles que lhes não partilham as ideias, e os adversários, sentindo-se feridos pela energia excepcional daquela pena, não perdem o respeito e a amizade ao homem venerando, que pela lhaneza e afabilidade do seu trato na convivência íntima, pela tolerância em todos os actos da sua vida, se vê cercado das simpatias gerais. Como orador, não tem a mesma fluência, amenidade, vigor, concisão e clareza de frase que tem como escritor, [mas] os seus discursos são conceituosos, sempre de grande autoridade, e não raro, de boa graça, inexorável para os contrários.
A história anedótica da vida deste grande vulto ainda está por fazer e mostrará quanto a sua limpa consciência soube sempre desprezar a calúnia que pretendia mordê-lo, e quanto a sua serenidade de ânimo o acompanhou em todas as pendências, até mesmo nas do campo da honra, a que jamais se recusou ir.
António Rodrigues Sampaio, numa feliz e bem-disposta velhice, vê as suas causas a servirem-lhe de diadema de glória, respeitadas por todos: os jornalistas veneram-no como seu chefe e mestre, e ainda disso lhe deram prova recentemente no banquete da Câmara Municipal, em que ele fez um brinde em nome da imprensa e em que os representantes de todos os jornais o vitoriaram e aclamaram, e até os sábios estrangeiros lhe chamaram mestre. Os homens políticos acatam-no e respeitam-no; o País estima-o, como um dos seus filhos mais prestantes, que entrando na vida desamparado e desprotegido, soube elevar-se, pela força do trabalho, pelo vigor do talento, seguindo sempre, como estrada mais curta, o caminho direito que lhe marcava serena a voz da consciência honrada.
A. M. da Cunha Belém (A Revolução de Setembro, 17 de Outubro de 1880)
Já após a morte de Rodrigues Sampaio, o seu jornal de sempre evocava a figura daquele que tinha sido, enquanto seu principal redactor, a sua alma. Apesar do tom saudosista, o redactor evoca Sampaio como “a personificação (...) do velho jornalismo português”. Fazia, portanto, um contraste entre a acção jornalística de Sampaio e os ventos de mudança que, então, animavam a imprensa portuguesa:
A voz mais enérgica e brilhante do jornalismo português emudeceu. As colunas deste jornal que foram a arena dos seus triunfos, e que serão, daqui em diante, a viva tradição do seu honrado nome e do seu notabilíssimo talento, ecoarão largo tempo as palavras incisivas, o conceito luminoso, as formas monumentais, em que se expandia aquele espírito superior. (…) A Revolução de Setembro sente as dores inexplicáveis da orfandade, porque António Rodrigues Sampaio era a personificação gigantesca do velho jornalismo português e era, simultaneamente, para a política, para a literatura, para a imprensa, em tudo e para tudo, a humanização, justamente glorificada, deste antigo jornal. (Revolução de Setembro, 14 de Setembro de 1882)
Nos dias seguintes à morte de Rodrigues Sampaio, a imprensa portuguesa (grande parte dela, sua concorrente/adversária), citada no Revolução de Setembro, a 15 de Setembro de 1882, quis prestar-lhe homenagem salientando o seu perfil enquanto jornalista e político:
Faleceu ontem às 10 horas da manhã, em Sintra, o Sr. António Rodrigues Sampaio. Posto que nos separasse a política, e por muitas vezes pleiteássemos na imprensa, nem por isso deixávamos de admirar o talento do ilustre jornalista, que por muitos anos foi redactor principal da Revolução de Setembro, onde deixa numerosos artigos, que só uma inteligência naturalmente robusta e robustecida com larga cópia de conhecimentos poderia inspirar. A causa liberal perdeu um soldado dedicado e a imprensa jornalística um dos seus mais distintos ornamentos. (A Nação)
Está de luto o Partido Regenerador.
Sucumbiu António Rodrigues Sampaio.
A família liberal deplora neste momento a perda de um dos seus mais denodados campeões.
O jornalismo português, onde por antiguidade lhe competia o primeiro lugar, sente-se órfão de um dos seus mais estrénuos atletas. (…) Teve paixões políticas, deixou-se dominar por elas, ou dominou ele mesmo a opinião, quando eram elas que prevaleciam numa sociedade em que da esgrima vivaz da palavra escrita e das escaramuças ardentes da polémica se passava a pleitear no campo ensanguentado das guerras civis. (O Progresso)
Faleceu ontem António Rodrigues Sampaio, o decano e o mais vigoroso dos jornalistas portugueses. (…) Através de tudo, Sampaio conservou até ao último dia da sua vida dotes de espírito e qualidades morais que lhe conquistavam a admiração e a estima dos seus mais decididos adversários.
Jornalista mais vigoroso, mais classicamente elegante, não o tivemos, nem o temos ainda. Os seus artigos nas mais altas e difíceis questões sociais e políticas rivalizavam vantajosamente com os dos primeiros escritores. (O Diário Popular)
Teixeira de Vasconcelos (1859, p. 61) diz que Sampaio se via essencialmente como jornalista, pois um dia ofereceram-lhe um excelente emprego, mas ele retorquiu: “Se não fosse jornalista, talvez aceitasse, porém não posso sacrificar a independência da minha consciência pelas minhas convicções.” Inocêncio Francisco da Silva (1858, p. 300-301) explica no seu importante Dicionário Bibliográfico Português, no volume VIII, que Sampaio
Escreve com grande facilidade, extrema clareza e bastante concisão. É um escritor veemente e enérgico, de paixões vivas, mas nobres, e de linguagem franca e serena, mas nunca o vi faltar a certas atenções, que nem todos os seus colegas guardam escrupulosamente, A clareza da razão, a solidez do raciocínio, a vivacidade dos sentimentos, a força das convicções, a placidez do espírito, a facilidade de trabalho, o conhecimento reflectido dos negócios e dos homens e uma sensibilidade que nas circunstâncias grandiosas o eleva às regiões superiores da eloquência, tem dado a Sampaio o primeiro lugar na imprensa portuguesa.
Guimarães Fonseca (1874, p. 7-8, 13-14 e 19), que lhe dedica, já Sampaio era ministro, uma carta laudatória para interceder em favor de um ferido das guerras liberais, lembra as “manifestações brilhantes do seu génio na imprensa” e reconhece que o jornalista prestou serviços à “causa da civilização” e “à liberdade”, apesar de ter sido “apedrejado pelos censores”. Reconhece-o, ainda, como um “brilhante modelo” de “homem público” que se “conservou à altura (...) dos grandes princípios do direito e da ordem”, um “defensor (…) dos direitos do povo, das aspirações ardentes e revolucionárias às novas conquistas da liberdade e da justiça.” Escreve o autor, interpelando Sampaio:
Quero falar de V. Ex.ª como jornalista.
Todos sabem que é V. Ex.ª, depois de José de Sousa Bandeira, já falecido, o mais antigo jornalista de Portugal.
Iniciou-se na imprensa quando ela era arma de combate magnânimo e não tela de discussão efémera, quando ela era código das liberdades e dos direitos do povo, e não estendal de injúrias partidárias, pelourinho de afrontas e circo de represálias.
A palavra incisiva e forte, que V. Ex.ª conservou sempre no seu estilo enérgico e poderoso, já vislumbrava então nas lutas que se seguiram ao triunfo obtido pelas tropas liberais.
Foi na Vedeta da Liberdade (…) onde V. Ex.ª estreou o seu grande talento e vocação para os grandes debates na imprensa periódica.
Desde então até hoje ninguém se levantou ainda ao trono que o redactor da Revolução de Setembro soberanamente ocupa na imprensa portuguesa.
Agora que V. Ex.ª está afastado das lides jornalísticas, (…) sentimos todos a grande falta da sua palavra enérgica, brilhante e conceituosa, nos artigos que sempre (…) elucidavam a opinião sensata nas momentosas questões da governação pública.
Sentimos porque ninguém ainda o substituiu. (FONSECA, 1874, p. 19)
Eduardo Coelho, o idealizador e co-fundador do Diário de Notícias, trabalhou no Revolução de Setembro às ordens de Sampaio e este, nem sequer depois da fundação do DN, quis exonerar o primeiro do cargo de noticiarista do jornal. Por isso, durante algum tempo, Eduardo Coelho, já então director do Diário de Notícias, viu-se obrigado a acumular os dois cargos, embora contrafeito, conforme relembra nas suas memórias, recolhidas por Cunha (1891, p. 45). Eduardo Coelho (1882, p. 252) recorda Sampaio assim:
Na intimidade, era sempre jovial. Na família, amorável, simples, infantil. O seu desejo era ver todos fartos e contentes. Não compreendia a sua felicidade sem que a completasse a dos que o rodeavam e mal disfarçava no prazer em se ver cercado de senhoras espirituosas e elegantes, como as suas netas adoptivas e rapazes de elevado talento (...).
Um dos conjuntos de testemunhos mais relevantes sobre Sampaio é o livro colectivo de homenagem que lhe foi dedicado pela imprensa do Porto, após a sua morte, em 1882. Nele, Borges de Avelar (1882, p. 15) salienta as fortes convicções de Sampaio:
as intenções de António Rodrigues Sampaio – no que toca (…) à liberdade – mantiveram-se sempre acima de qualquer suspeita. Por mais reservas que possam fazer-se sobre as multíplices formas de que ele as revestiu, forçoso é concordar que António Rodrigues Sampaio só teve por final a própria convicção. Se errou, errou inconscientemente e, trabalhador indefeso, pôs toda a sua energia ao serviço de uma grande causa”.
Por sua vez, no mesmo livro, Júlio Lourenço Pinto (1882, p. 19-20) lembra o homem que se identificou com a “altíssima ideia [de] salvar a liberdade” (p. 21) e o “eminente jornalista (…), lutador temível (…) de rija têmpera (…), esforçado polemista, truculento guerreiro (…), em casa, boníssimo, adorável na grande irradiação da sua inesgotável bondade”. Já Manuel M. Rodrigues (1882, p. 30-32) realça o “trabalhador infatigável” que “distante (…) o tempo em que os cargos elevados de um Estado eram a consecução privativa de uma cadeia de privilegiados de nascimento”, soube guindar-se a si próprio à custa da luta pela liberdade e ao mérito da sua inteligência.
Já o jornalista Firmino Pereira (1882, p. 50-61), na mesma obra, recorda o “grandioso panfletário (…) cuja pena (…) valia exércitos”, o homem austero, sincero de convicções, que “fora da sua banca de jornalista, era alegre, folgazão, expansivo, tendo para cada acontecimento uma citação latina, uma anedota, uma blague”, o homem que “todos adoravam, amigos e adversários, prestando àquela alma boa e generosa o preito respeitoso que ela inspirava”. E diz, ainda:
poucos como ele terão lutado tanto para, à hora derradeira, deixarem de si apenas um nome venerando, o que é pouco, se atendermos a que vivemos numa época desgraçada, de ambições, de cálculos, de sofismas, de interesses. Consumir toda a existência a trabalhar pela Pátria, a pugnar pelos seus direitos, a defender as suas instituições, a sacrificar-se pela sua liberdade, e cair após tanta fadiga, legando apenas um nome, (…) é certamente para admirar nestes tempos de ambições desmedidas. (PEREIRA, 1882, p. 50)
Firmino Pereira (1882, p. 50-52) gaba, simultaneamente, a honestidade de Sampaio, que “saiu do povo, não renegando nunca a sua condição”. Recorda A Revolução de Setembro e o Espectro, “os dois grandes látegos com que Sampaio azorragou essa camarilha ambiciosa (…), que largas horas de desgostos deram aos que (…) não amavam a prosperidade da sua pátria”. Para ele, esses jornais “são o mais grandioso documento do patriotismo de Sampaio, o eloquentíssimo protesto duma alma verdadeiramente portuguesa”. Finalmente, Firmino Pereira (1882, p. 52) conta o seguinte episódio da vida de Sampaio:
Um dia, numa polémica com um jornal de Lisboa, disse umas verdades amargas ao seu adversário, e este, em lugar de se confessar vencido, declarou que bem conhecia a mão que o queria aniquilar. Sampaio, no dia seguinte, respondia triunfantemente:
– Ora ainda bem que o animal conhece pelas esporadas que leva no lombo quem é o cavalheiro que o monta!
Uns anos mais tarde, o jornalista João Grave (1906) repara na injustiça que constituía o olvido de Sampaio:
A Revolução de Setembro, onde o velho Sampaio durante tantos anos lutou pela defesa do direito e das liberdades constitucionais, não se apagou também nas recordações do País. Mas o homem extraordinário que alimentou os dois jornais da feição áspera e generosa dos lutadores, esse dir-se-ia olvidado para todo o sempre. Tão olvidado, que parece ter vivido há centenas de anos e num tempo em que a sua inteligência não desse claridade alguma. E, contudo, Sampaio é quase dos nossos dias. Muitos dos que actualmente vivem ainda se lembram desta austera face de velho, da sua excepcional cabeça assente sobre um pescoço curto, dos seus largos ombros, da sua forte constituição de sanguíneo, da sua fronte simpática, escondendo sob uma severidade que assustava a natureza tímida, uma afabilidade encantadora. Ninguém diria (...) que Sampaio era um terrível sarcástico (...). Dotado de uma rica e vasta ilustração (...), manejava o vocabulário com um saber, uma sagacidade e uma originalidade incomparáveis.
Pedro Venceslau de Brito Aranha (1907, p. 115-116), que trabalhou com Sampaio no Revolução de Setembro, atenta, igualmente, na vigorosa coragem do jornalista:
Na vida pública, teve inimigos, invejosos, adversários em grande número. Este número, se era avultado, subia à altura da sua enorme estatura no periodismo, nas suas lutas na imprensa, com os jornalistas mais em evidência no seu tempo, e mais ilustres, e aos quais ele derrotava com o vigor dos seus escritos (...). Quanto mais viva e acerba era a contenda, mais plácido o seu trato. Ria-se muitas vezes dos adversários e no seu coração, magnânimo, perdoava-lhes as injúrias (...). Causou dolorosa impressão a sua morte. Caíra aquele roble açoitado por medonhas tormentas na imprensa, sem que jamais a sua pena se vergasse ou o seu ânimo esmorecesse. O jornalismo português perdera um dos seus mais vigorosos e agigantados membros e sem dúvida o primeiro do seu tempo (...). Príncipe lhe chamavam. Era, com efeito, príncipe na imprensa diária política.
Registe-se que os jornalistas e escritores do Porto que se associaram às homenagens a António Rodrigues Sampaio fundaram em sua memória a Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, que ainda hoje subsiste, o que está expressamente declarado nos respectivos estatutos[1] (CUNHA, 1941b, p. 35).
Rocha Martins (1941, p. 96), pondo a tónica no entendimento do contexto para se compreender o sujeito, dizia, interessantemente, o seguinte:
Rodrigues Sampaio, para a geração de ontem, mesmo morta, era o adversário que faria gastar muito dinheiro em arnica para pensar feridas e deixara esmurradas muitas reputações. Os descendentes artérios conservavam os rancores. Para a gente de hoje, Sampaio é incompreensível.
Nunca esquecido, celebrou-se, em 1906, o centenário do nascimento de António Rodrigues Sampaio, com abundantes referências na imprensa, incluindo um número especial, o de 30 de Julho, da revista Ocidente. O bicentenário do seu nascimento, em 2006, foi celebrado com colóquios e exposições promovidos pela Câmara Municipal de Esposende, sua terra natal.
António Rodrigues Sampaio foi portanto um jornalista de causas e ideias e não um repórter, como, de resto, era comum no jornalismo do século XIX, a exemplo do que acontece contemporaneamente com os blogues. Paradoxalmente, uma vez no Governo, nem sempre agiu com base nos ideais que tantas vezes apregoou, tendo, nomeadamente, colocado em juízo, com bastante frequência, vários jornalistas que o atacaram ou que combatiam os Governos do seu partido e, paradoxalmente, a Monarquia, quando se sabe, que partilhou de ideais republicanos.
[1] A Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto surge “para honrar a memória de António Rodrigues Sampaio, insigne jornalista português, benemérito da pátria e da liberdade”.