António Rodrigues Sampaio

António Rodrigues Sampaio: o jornalista e o pensador do jornalismo[1]

Jorge Pedro Sousa, Sandra Tuna, Patrícia Teixeira e Maria Érica Lima

Universidade Fernando Pessoa, Centro de Investigação Media e Jornalismo e Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Resumo

António Rodrigues Sampaio foi um dos principais expoentes do jornalismo doutrinário e da política portuguesa no século XIX, podendo ser considerado o político jornalista, ou o jornalista político, de maior sucesso nessa época, até porque, embora por curto tempo, chegou a chefe do Governo. Este trabalho, sustentado em pesquisa bibliográfica, hemerográfica e documental, procura reconstruir e interpretar a sua história de vida, centrando-a no exercício do jornalismo, avaliar a influência que exerceu no seu tempo, determinar qual o seu pensamento sobre o jornalismo e apresentar os principais jornais que dirigiu – A Revolução de Setembro e O Espectro, este último um jornal clandestino do tempo da Patuleia redigido integralmente por si. Concluiu-se que a sua frase “antes quero uma imprensa anárquica do que uma imprensa perseguida” ilustra bem o seu pensamento e cola-se à parte da sua vida em que, como publicista e panfletário, combateu pela mais ampla liberdade de imprensa e por um liberalismo de esquerda, causas às quais sacrificou a própria liberdade. Contraditoriamente, chegado ao Parlamento e, depois, ao Governo, tornou-se num paradigma do pragmatismo e da defesa dos progressos materiais do país em detrimento da ideologia e intentou vários processos judiciais contra jornalistas, paradoxalmente por abuso de liberdade de imprensa. Inclusivamente, atingindo a chefia do Governo, promulgou portarias polémicas visando a sonegação de informações à imprensa. Uma delas impedia que fossem dadas aos jornalistas informações sobre a concessão de honrarias pelo Rei, sob proposta do Governo; outra, restringia o acesso dos jornalistas às informações policiais, roubando a acção policial ao escrutínio público.

Palavras-chave: António Rodrigues Sampaio; Portugal; século XIX; jornalistas; jornalismo; jornalismo político; política; A Revolução de Setembro; O Espectro; O Eco de Santarém; A Vedeta da Liberdade.

Currículo do autor

Jorge Pedro Sousa é professor associado com agregação da Universidade Fernando Pessoa (Portugal) e pesquisador do Centro de Investigação Media e Jornalismo (Portugal). É doutor e pós-doutor em Ciências da Informação/Jornalismo pela Universidade de Santiago de Compostela (Espanha) e livre-docente (agregado) pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (Portugal).

Introdução

Quando o biografado neste texto, António Rodrigues Sampaio, nasceu, em 1806, em São Bartolomeu do Mar, Esposende, poucos eram os jornais existentes em Portugal e os que circulavam tinham um cunho circunspecto ou mesmo oficioso, caso da Gazeta de Lisboa. Só com a Revolução Liberal de 1820 Portugal viu surgir no seu território o jornalismo doutrinário, acutilante e frequentemente descomedido, dominante durante todo o período em que Rodrigues Sampaio viveu.

Nesses tempos, fazer política e fazer jornalismo fundiam-se com frequência. António Rodrigues Sampaio foi mestre nessa arte de fazer do jornal uma tribuna para o orador político. Liberal de esquerda, maçom, revolucionário e quiçá republicano nos seus tempos de juventude, extremamente corajoso, defrontou a censura, enfrentou a prisão, travou duelos e viveu na clandestinidade para defender as suas convicções e o seu direito à palavra, o seu direito à comunicação dos seus pensamentos através da imprensa. Ficou conhecido pela alcunha O Sampaio da Revolução, pois o seu nome ficou indissoluvelmente ligado ao Revolução de Setembro, o jornal de que foi redactor principal e à frente do qual travou a maioria das suas batalhas, tornando-o o principal periódico do Reino, como confirma, de resto, o título que Teixeira de Vasconcelos deu, logo em 1859, à sua biografia de Sampaio – O Sampaio da Revolução de Setembro, reforçada pelo que diz no corpo do mesmo livro:

Um dos jornalistas portugueses que mais exclusivamente tem vivido para a imprensa periódica desde 1834, que por ela adquiriu um

nome insigne em Portugal e fora do Reino, e que mais atribulado foi nas perseguições feitas à imprensa, é inquestionavelmente

António Rodrigues Sampaio, geralmente conhecido pelo nome Sampaio da Revolução de Setembro (TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859,

p. 30-31)

Inicialmente desbragado, Rodrigues Sampaio terá mesmo insultado a Chefe de Estado, a Rainha D. Maria II, a quem, segundo Gomes Leal (1881, p. 29), terá chamado “grande prostituta”. Mas, entrado no período da Regeneração (após 1851), acabou por moderar-se, quer no posicionamento político, quer na acutilância verbal, a ponto de os seus antigos correligionários o apelidarem de traidor, ao mesmo tempo que os seus adversários conservadores lhe relembravam, criticamente, o seu período revolucionário e os seus apoiantes o aplaudiam.

Abraçando, efectivamente, a causa da Regeneração, que por algum tempo pôs fim à instabilidade política e militar em favor de programas governativos destinados a promover o progresso material do país, António Rodrigues Sampaio iniciou, em 1851, uma carreira parlamentar intermitente que, a par da jornalística, o guindou a membro do Tribunal de Contas e, já plenamente reconciliado com a Família Real, a ministro do Reino. Em 1881, alcançou a presidência do Ministério (equivalente ao cargo de primeiro-ministro), ponto culminante da sua vida cívica. Pode dizer-se, assim, que Rodrigues Sampaio terá sido o “político de jornal” – ou jornalista, pelos cânones da época – que maior êxito teve em Portugal entre 1835 e 1881. A proeminência que alcançou dá legitimidade à colocação de algumas questões. Quem foi ele? Como obteve sucesso? Como se envolveu no jornalismo? Qual o papel que teve nos jornais em que interveio e como actuava? Qual a influência que exerceu no seu tempo?

Neste trabalho, metodologicamente assente em pesquisa bibliográfica, documental e hemerográfica, procurar-se-á apresentar a vida de António Rodrigues Sampaio, centrando-a, no entanto, na sua actividade jornalística, apesar desta ser indissociável da sua actividade política, e tentar-se-á responder às questões acima levantadas.

Para essa tarefa, ganharam particular interesse os trabalhos biográficos daqueles que com Sampaio conviveram de perto, em particular os textos de Teixeira de Vasconcelos (1858; 1859) e de Pedro Venceslau de Brito Aranha (1907), fontes principais para a construção da sua biografia, porque se constata que foram eles que deram o tom às reconstituições biográficas posteriores da vida do referido político jornalista, self-made man notável do seu tempo, e aduziram os factos que são multiplicadamente referidos nas suas biografias posteriores. Havendo bastante bibliografia sobre a vida de António Rodrigues Sampaio, incluindo várias outras obras dos seus contemporâneos (TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859; FIGUEIRA, 1882; BRITO ARANHA, 1907; VELOSO, 1910), não foi, assim, tarefa complicada reconstruir, em traços gerais, a vida desse sujeito maior da história portuguesa do século XIX – centrando-a, para o caso, nas questões do exercício do jornalismo.

Consultaram-se, também, os jornais Revolução de Setembro (principalmente a partir de 20 de Setembro de 1851, data do primeiro artigo assinado de Sampaio, até 1882, ano da morte do jornalista), O Eco de Santarém e O Espectro, redigidos integralmente por Sampaio, pois foi neles que ele plasmou mais intensamente a sua acção jornalística e o seu pensamento.

Tentou-se, conjunturalmente, explicar o que o jornalismo português foi no século XIX, pois é preciso entender António Rodrigues Sampaio, como o fazem os seus biógrafos (TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859; FIGUEIRA, 1882; BRITO ARANHA, 1907; VELOSO, 1910; TENGARRINHA, 1963; SÁ, 1984; NEIVA SOARES, 2006), enquanto político de jornal, escritor persuasivo solitário – apenas unido ideologicamente aos seus correligionários políticos, pois ele não se enquadra no actual imaginário jornalístico, marcado pela socialização dos jornalistas nas redacções.

1. António Rodrigues Sampaio precoce: do nascimento à primeira imersão no jornalismo

António Rodrigues Sampaio nasceu em 1806, no dia 25 de Julho, em São Bartolomeu do Mar, Esposende, tendo falecido em 1882, a 13 de Setembro, em Sintra. Foi, no dizer de Tengarrinha (2006, p. 137), o principal arquétipo do jornalismo romântico em Portugal, tanto quando o jornal que dirigiu, A Revolução de Setembro, foi o mais influente entre os periódicos do seu tempo.

Rodrigues Sampaio fez estudos eclesiásticos, conforme sucedia na altura com muitos jovens, e chegou a tomar ordens menores no convento dos Carmelitas de Viana do Castelo, em 1821. A partir de 1822, ano em que foi promulgada a primeira Constituição[2] do país, de pendor liberal, estudou Humanidades e Teologia, em Braga, curso que concluiu em 1825. Nesse mesmo ano, por não ter idade para ser ordenado subdiácono, regressou à casa paterna, tendo, então, começado a ensinar gratuitamente crianças e jovens da vizinhança. Esta sua experiência oficiosa e rudimentar de ensino levá-lo-ia, futuramente, a tornar-se um feroz adepto da necessidade de prover à instrução pública de crianças e jovens. Inclusivamente, já no auge da sua carreira política, promulgaria uma nova Lei do Ensino Primário, da qual foi o principal mentor.

Por várias vezes pregou em igrejas, mas quando chegou à idade de ser ordenado sacerdote, o pedido foi-lhe recusado pelo arcebispo de Braga, possivelmente por já ser do conhecimento eclesiástico que Rodrigues Sampaio seria adepto das ideias liberais, num tempo de retorno ao absolutismo. Aliás, foi preso, aos 22 anos, em 1828, no início do reinado do absolutista D. Miguel I, suspeito de ser simpatizante da causa liberal. Ficou na prisão dois anos e meio, tempo em que poderá ter confraternizado com o padre liberal Inácio José de Macedo, o redactor do Velho Liberal do Porto. Eventualmente, foi este que reviu os primeiros artigos que Sampaio escreveu, já em 1835, para A Vedeta da Liberdade. Mas Neiva Soares (1982, p. XII) tem outra opinião: “A análise (...) das fontes e circunstâncias leva a rejeitar tal asserção, até por o referido padre Inácio só ter sido preso em Lisboa, em 1829, donde foi recambiado para o Porto.” No entanto, o mesmo autor assegura que Sampaio aproveitou para estudar inglês na prisão, pelo que era ele a ler aos companheiros de cárcere as notícias dos jornais ingleses que lhes chegavam às mãos. Posteriormente, Neiva Soares (2006, p. 67) escreve ainda, numa nota de rodapé: “Afirmam os seus biógrafos que durante a prisão, na Relação do Porto, colaborara em jornais internos onde punha os reclusos a par dos principais acontecimentos políticos nacionais e estrangeiros, recorrendo à imprensa francesa e inglesa”.

Libertado em 1831, António Rodrigues Sampaio foi trabalhar no escritório de advocacia do seu companheiro de cárcere Manuel José Ferreira Tinoco, em Barcelos, familiarizando-se, assim, com o direito português e a vida judiciária do Reino (TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859, p. 49; FIGUEIRA, 1882, p. 14).

Em 1832, juntou-se às tropas liberais de D. Pedro[3], que tinha abdicado do trono brasileiro para reconduzir a sua filha, D. Maria II, no trono português, em poder do seu irmão absolutista D. Miguel, e para recolocar em vigor a Carta Constitucional que ele mesmo havia outorgado ao Reino, em 1826, em substituição da Constituição de 1822.

Terminada a guerra civil com o triunfo liberal, António Rodrigues Sampaio obteve emprego na alfândega do Porto, mas fez-se substituir por um serventuário, a quem pagava quatro tostões (NEIVA SOARES, 1982, p. XIV), conforme era usual na época. Livre desse encargo, passou, então, a dedicar-se quase a tempo inteiro ao periódico A Vedeta da Liberdade, um jornal doutrinário liberal de esquerda, fundado em Maio de 1835, propriedade de José de Azevedo Gouveia Mendanha, que tinha por redactor principal o abade de Valbom, José António do Carmo Velho de Barbosa, mais conhecido por Padre Vedeta. Vivia modestamente dos dois tostões que lhe sobravam do salário da alfândega e do que lhe pagavam pelos artigos (NEIVA SOARES, 1982, p. XIV).

Sampaio entrou para a redacção do Vedeta da Liberdade como tradutor de notícias estrangeiras logo após a fundação do jornal, mas, depois da saída do abade de Valbom, em conflito com o proprietário, foi escolhido para redactor principal (TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859, p. 53-54). Que estilo cultivou então? Responde o maior historiador da imprensa portuguesa oitocentista, José Manuel Tengarrinha (2006, p. 140):

Como jornalista, o seu estilo caracteriza-se por ser muito directo, vigoroso e tenso, mesmo por vezes com alguma brutalidade, na linha

da tradição polemista do nosso jornalismo (tão diferente do britânico e francês), mas ao mesmo tempo com uma elegância onde está

sempre presente a influência dos clássicos. De resto, os exemplos da história clássica e os pensamentos de autores gregos e latinos

estão constantemente presentes nos seus escritos (...). Mas a força, impetuosidade e apaixonado arrebatamento do seu estilo em

defesa de grandes causas (...) constituem (...) o traço profundo do nosso Primeiro Romantismo.

No plano do jornalismo, deve ser considerado um dos maiores polemistas da nossa história. Mas, para além disso, o seu valor e

projecção como homem de letras ultrapassa a transitoriedade jornalística para o situar (...) entre os primeiros escritores oitocentistas

portugueses e o que melhor protagoniza o ideal romântico da nossa Imprensa.

A oratória política romântica, que Sampaio interiorizou e praticou, é efectivamente marcada pelo estilo tribunício, coloquial e declamatório, pelos constantes apelos à emoção, mais do que à razão e à ponderação (estas próprias do Classicismo), pelo empolamento da linguagem e pela exploração imaginativa da hipérbole e da metáfora. De algum modo, Sampaio procurava convencer pela comoção. Carlos Carrasco, Cecília Cunha e Joaquim Pintassilgo (1983, p. 66-67) explicam-no assim:

A nova ordem sociopolítica leva os parlamentares e jornalistas liberais a adoptar uma oratória capaz de exaltar a liberdade, a justiça e

a valorização do indivíduo, sem nunca conhecer regras e princípios taxativos: ao lado da linguagem empolada sobressaem as

expressões familiares e agrestes que iam contra os costumes dos meios polidos da Corte. Por sua vez, a improvisação sobre um tema

não preparado, ou a resposta imediata, tornavam inadmissível esse tipo de regras; à frieza e equilíbrio da retórica clássica, opunha-se

o calor dos sentimentos em que a pujança da palavra exortava à acção, no desejo de transformar.

O estilo de Sampaio reflecte, de resto, a consolidação do surto de oratória política que se verifica pela primeira vez em Portugal durante o vintismo e que se desenvolve quer no Parlamento quer nos jornais, tornados verdadeiro espaço de debate público, capazes de estender a um número elevado de pessoas as discussões que ocorriam nas Cortes. O jornalista, cultivando a palavra e tornando-a pública, tornava-se um intérprete activo e influente do seu tempo.

Ligado ao Partido Progressista de Passos Manuel, António Rodrigues Sampaio começou, a partir da década de trinta do século XIX, a fazer-se notar pela sua intervenção política esquerdista, reforçada pela sua acção, entre 1835 e 1836, como articulista do Vedeta da Liberdade, um dos jornais mais lidos no Norte de Portugal por ser “porta-voz dos descontentes” (TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859, p. 58). Foi a sua empenhada acção política, materializada através do jornalismo, que lhe franqueou as portas da Maçonaria, à qual se juntou através da loja Oriente, de Passos Manuel.

Em Setembro de 1836, triunfou uma revolução (conhecida por Revolução de Setembro) que queria a reintrodução da Constituição de 1822, mais liberal do que a Carta Constitucional então em vigor[4]. António Rodrigues Sampaio, partidário da Constituição de 1822, foi, então, nomeado, por intervenção de Passos Manuel (NEIVA SOARES, 1982, p. XVI), secretário da administração-geral do distrito de Bragança, cargo que desempenhou até 1839, ano em que foi escolhido para o posto de administrador-geral do distrito de Castelo Branco (equivalente ao cargo actual de governador civil). Porém, por pouco tempo se ocupou da incumbência, por causa de um conflito político com a Câmara Municipal, o que levou à sua demissão pelo ministro Rodrigo da Fonseca Magalhães. Paradoxalmente, este viria a converter-se em seu amigo e admirador (FIGUEIRA, 1882, p. 15).

2. O Sampaio da Revolução (1ª fase: 1840-1846)

Chegado a Lisboa, em 1840, António Rodrigues Sampaio foi recrutado por José Estêvão e Manuel José Mendes Leite para o diário A Revolução de Setembro, que estes tinham fundado, a 22 de Junho desse ano, para defender a esquerda liberal, que tinha saído vitoriosa da Revolução de Setembro de 1836 e imposto uma nova Constituição ao Reino, em 1838. A Constituição setembrista não era, porém, pacífica. Muitos, entre os quais Costa Cabral, então ministro da Justiça e, talvez, a personalidade já então mais influente na política no Reino, desejavam o regresso à Carta Constitucional, conservadora, que tinha sido outorgada por D. Pedro IV ao país, em 1826.

Conforme repara Victor de Sá (1984, p. 29-30), quando foi recrutado para o Revolução de Setembro, em 1840, Sampaio era “o homem certo para o lugar certo”:

Não foi por títulos de nobreza nem por graus académicos – importa salientar – que o Sampaio da “Revolução” (...) ascendeu ao nível

da consideração pública. Nem tão pouco por fortuna pessoal ou por foça da hierarquia eclesiástica. Numa sociedade em profunda

mutação, o vazio deixado pelos títulos impositivos foi preenchido a golpes de audácia por literatos e intelectuais da nova facção

política dirigente. Sampaio afirmou-se pela sua capacidade literária de intervenção. Interpretando e exprimindo a opinião pública,

modelando e alicerçando determinadas correntes dessa opinião, o jornalista da Revolução de Setembro impôs-se à consideração social

que o candidataria a lugares cimeiros da vida política nacional. Isto só podia acontecer num período em que ruíam as estruturas

políticas e mentais da sociedade antiga e em que a nova sociedade, liberal e individualista, não instalara ainda os seus próprios

quadros intelectuais.

No Revolução, António Rodrigues Sampaio, tal como tinha ocorrido no Vedeta da Liberdade, começou por tratar da secção de correspondência e traduzir notícias estrangeiras (TENGARRINHA, 1963, p. 9 e p. 18), mas, em 1842, com José Estêvão e Mendes Leite fora de Lisboa, ter-se-á oferecido para escrever o artigo de fundo para o número seguinte, o que, de alguma forma, também revela o ambiente amadorístico, cheio de entusiasmo e de carolice, mas pouco profissional, que se vivia na altura nas redacções dos jornais. De qualquer modo, a sua colaboração foi tão apreciada que, a partir daí, começou a escrever o artigo principal, alternando com José Estêvão. Gradualmente, este também começou a ceder a direcção política do periódico a Sampaio. É, pelo menos, o que afirma Tengarrinha (1963, p. 9 e p. 18), talvez com base num episódio revelado por Marques Gomes (1882, p. 61), um jornalista do Porto, no livro de homenagem que a imprensa portuense dedicou a Sampaio após a morte deste:

Estando um dia José Estêvão ausente de Lisboa, e tendo também de ausentar-se Mendes Leite, ofereceu-se Rodrigues Sampaio (…)

para escrever o artigo para o dia seguinte. Aceite o oferecimento, Rodrigues Sampaio escreveu com efeito o artigo, que merecendo

plena aprovação de José Estêvão, fez com que ele lhe entregasse desde logo a direcção política do jornal.

No Revolução de Setembro, Sampaio escreveu um pouco sobre tudo e não apenas sobre a actualidade política e económica do país. Condoía-o, principalmente, a sorte dos mais pobres e humildes, com quem se identifica e em nome de quem, frequentemente, se arvora o direito de falar, pelo que vergasta os opressores. Num artigo publicado a 26 de Abril de 1843, por exemplo, denuncia a situação dos foreiros, que trabalhavam terras incultas de outrem, por concessão régia, a troco do pagamento de uma renda, entretanto suprimida por lei. Esses foreiros, que extraíam da terra o seu sustento, estavam, por causa de legislação cabralista, ameaçados de perderem as terras que cultivavam, precisamente por não terem pago rendas, apesar de não as terem pago de acordo com aquilo que prescrevia a anterior lei. De forma similar, prosseguindo a senda da defesa cristã dos humildes, a 21 de Abril de 1843 impressiona, em tom de advertência aos candidatos à emigração, o relato das vicissitudes por que passavam os portugueses que emigravam para o Brasil, usando Sampaio como fonte uma carta do governador civil de Angra do Heroísmo, publicada no Diário do Governo:

A emigração do Reino e das ilhas continua. A miséria que aflige os povos, a esperança de mudarem de condição (...), as promessas

dos aliciadores que traficam em escravatura branca (...) concorrem para ela.

Os emigrados não têm encontrado na terra estranha mais ventura do que tiveram na sua. Em Portugal, eram desgraçados, mas pelo

menos eram livres; nos países para onde foram, são vendidos como escravos (...) e (...) vêem-se reduzidos à última miséria e

obrigados a um serviço pesado para se livrarem da morte.

Uma carta de Pernambuco (...) faz uma resenha dos tratos que ali sofrem os portugueses que pode servir de guia aos que quiserem ir

tentar fortuna àquele país (...): “(...) haverá oito dias chegou aqui um navio de São Miguel com cento e quarenta e tantos

passageiros (...) os quais foram vendidos como aí se vende o gado e aqui os escravos (...); cinco desses infelizes foram para (...) um

engenho (...) cortar cana com um feitor negro (...) a tomar conta deles; moças houve que foram vendidas (...) para satisfazerem os

apetites brutais e lascivos de seus infames compradores (...), entre estas uma moça que se dizia virgem (...).

Foi no Revolução de Setembro que Rodrigues Sampaio se distinguiu pela sua oposição à reintrodução da Carta Constitucional de 1826 pelo governo de António Bernardo da Costa Cabral, político que tinha liderado um pronunciamento militar vitorioso de orientação cartista que efectivamente repôs em vigor a Carta Constitucional, em 1842, embora com algumas alterações. Mas não satisfeito com isso, Costa Cabral perseguiu um projecto de poder pessoal, prenhe de nepotismo e clientelismo, sustentado, principalmente, por funcionários públicos, pelas grandes clientelas interessadas nos negócios milionários das obras públicas e da alta finança, e por grandes aristocratas, incluindo a Rainha – o cabralismo. O país, porém, estava exangue, e as sucessivas crises e conflitos deixavam temer o pior.

Por outro lado, a tomada do poder por Costa Cabral representou um duro golpe para o jornalismo doutrinário português. A liberdade de imprensa, protegida pela Constituição setembrista e por uma lei de 1834, começou a ser colocada em causa. A Carta Constitucional de 1842, embora teoricamente protegesse a liberdade de imprensa, dava ao Governo maior latitude de actuação para a cercear. Começou, então, uma ofensiva contra a liberdade de imprensa, efectivada, inicialmente, através de legislação restritiva, de medidas administrativas e da intimidação judiciária, com as querelas a sucederem-se em tribunais de júri. Mas a essas medidas rapidamente se seguiram outras, como as acções de confisco de material tipográfico, a apreensão de jornais, o controlo sobre a distribuição de periódicos por correio e a introdução de impostos elevados sobre o papel de jornal e outras matérias-primas, quando não a repressão pura e simples, levada a cabo quer pela polícia, quer, por vezes, por simples arruaceiros contratados.

Teixeira de Vasconcelos (1859, p. 70) explica as consequências que as querelas judiciais constantes tinham para os jornais: “Este sistema era terrível. O júri absolvia, o Supremo Tribunal de Justiça também, mas o jornal, obrigado a grandes despesas, ficava arruinado. Era desigual a luta entre a fortuna de uma empresa particular e o cofre do Estado.” Tengarrinha, por seu turno, explica-o assim:

Entre as medidas repressivas então postas em prática pelas autoridades destacavam-se: impostos mais elevados (...); cauções;

habilitações cada vez mais difíceis (...); frequentes pronunciamentos e multas em consequência de sucessivas querelas (...) (os

processos eram propositadamente demorados e arrastavam-se nas secretarias para que as folhas, entretanto, continuassem

suspensas). (...) Mas a intenção do governo (...) não era apenas (...) prejudicar a vida dos jornais da oposição. O objectivo era mais

fundo e ambicioso: criar dificuldades, sobretudo de ordem económica, a

A ofensiva contra a liberdade de imprensa processou-se, efectivamente, não apenas por acções nos tribunais, mas também através de medidas administrativas, como a proibição da expedição de jornais oposicionistas pelo correio; e, finalmente, pela repressão, incluindo a prisão de redactores, impressores e distribuidores, a selagem das instalações e mesmo a violência física, exercida contra os jornais oposicionistas, quer pela polícia, quer por grupos populares irregulares. Os tempos não eram fáceis:

O ano de 1840 fora apenas o início da ofensiva aberta. A perseguição à imprensa não afrouxa. A situação vai-se agravando

incessantemente, até que a restauração da Carta por Costa Cabral (...) não vem mais do que confirmar uma situação que já existia de

facto. Abre-se então para os jornais oposicionistas (...) um dos períodos mais duros e, porventura, mais gloriosos da história da nossa

imprensa (...), de 1842 a 1851. (...) Na tentativa de limitar, no plano legal, o âmbito de liberdade da imprensa, o Ministério propôs à

(...) Câmara (...) de 1843 (...) uma proposta (...) para a modificação do regime de juízes e jurados em processos desta natureza. (...)

Por outro lado, sucediam-se os arrestos e assaltos às tipografias (...). Os jornais oposicionistas mais duramente perseguidos foram,

evidentemente, os de feição radical, os setembristas, pois representavam a classe – pequena burguesia – que maior temor infundia

(...); e entre estes, foi o mais castigado A Revolução de Setembro. (TENGARRINHA, 1989, p. 162)

Em 1843, por causa dos seus escritos no Revolução, António Rodrigues Sampaio foi provocado para um duelo, pelo tenente-coronel Joaquim Bento, mas houve acordo entre as partes e o confronto acabou por não ter lugar. Foi o primeiro de três duelos para os quais, segundo Teixeira de Vasconcelos (1859) e os seus restantes biógrafos, foi desafiado por causa da sua acção jornalística, num tempo em que a honra se lavava violentamente com armas.

Em 1844, os setembristas (esquerda liberal adepta da Constituição de 1822) intentaram um levantamento militar contra o regime de Costa Cabral, em Torres Novas. José Estêvão foi um dos líderes.

As garantias constitucionais à imprensa foram retiradas após a intentona de Torres Vedras e o Revolução de Setembro foi administrativamente impedido de sair desde 6 de Fevereiro até 24 de Maio de 1844, dia em que os jornais recuperaram a sua primitiva liberdade. Nesse mesmo dia, Sampaio explicou no Revolução de Setembro por que razão não aderiu à revolta, dizendo que não queria derrubar costa Cabral pela força das armas, embora reconhecesse que as revoluções são legítimas quando os governos são opressores.

Sufocada a rebelião, José Estêvão teve de se exilar, abrindo as portas do cargo de redactor principal do periódico a António Rodrigues Sampaio. Foi assim que, numa conjuntura adversa, Sampaio se viu à frente do principal jornal setembrista do Reino.

Apesar do insucesso do pronunciamento de Torres Vedras, o regime cabralista, através do governador civil de Lisboa, José Bernardo da Costa Cabral, irmão do chefe do Governo, logo tratou de impor novas regras à imprensa e obrigou os jornais a renovarem as licenças para poderem continuar a publicar-se. Rodrigues Sampaio opôs-se à medida e não sujeitou o Revolução de Setembro ao novo regime de licenciamento. As perseguições ao Revolução e a outros periódicos da esquerda liberal, intensificaram-se de imediato. Explica Teixeira de Vasconcelos (1859, p. 75) a estratégia de Sampaio para recusar o novo regime de licenciamento:

sendo as habilitações feitas perante a justiça, o poder administrativo carecia de autoridade para as invalidar. Ele bem sabia que o

periódico que dera à revolta o seu chefe político, não podia contar com o favor do governo. Porém, o que Sampaio desejava mais era

dar ao seu partido um exemplo de resistência legal e obrigar o governo a tomar medidas violentas, que indispusessem contra ele a

opinião pública.

O Revolução continuou, pois, a publicar-se sem habilitações novas, mas isso trouxe sobre si a ira das autoridades. Rodrigues Sampaio teve, assim, de começar uma feroz luta pela manutenção do periódico[5]. Conta Teixeira de Vasconcelos (1859, p 76) que “no dia seguinte, são presos os distribuidores, a imprensa é sequestrada, os compositores e os impressores vão dormir na cadeia, a oficina fecha-se, selam-se as portas e a polícia mete as chaves na algibeira”. O próprio Sampaio, num discurso na Câmara de Deputados proferido em Abril de 1856, recordava os funestos acontecimentos de 1844-1846:

Quando em outro tempo nos oprimiam, seguiu-se aqui uma jurisdição bárbara, que era o poder judicial dizer que os jornais estavam completamente habilitados, que podiam correr, e as autoridades administrativas dizerem que a sentença do poder judicial não tinha força, e que eles estavam no seu direito quanto prendiam editores, quando prendiam distribuidores, quando prendiam os mesmos indivíduos em cujas casas se vendiam as folhas, legitimamente habilitadas. E isto não foi uma. nem duas, nem três vezes. Ainda se fazia mais: como o poder judicial cumpria as leis, e como os presos, sendo remetidos directamente aos juízes de polícia correccional, como a lei ordena, eram postos em liberdade sob fiança pelo respectivo juiz, ordenou-se que fossem mandados para a cadeia, que estivessem lá necessariamente 24 horas, e só findas elas fossem remetidas ao poder judicial.[6]

O governo cabralista efectivamente mandou fechar a tipografia onde o jornal era impresso, selar as instalações da redacção e prender os distribuidores conhecidos, mas um dia em que o cerco policial se apertava, segundo Tengarrinha (1963, p. 9 e p. 18), Sampaio fugiu com duas caixas com tipos e desde 22 de Julho de 1844, apesar das investigações policiais e da repressão, o Revolução de Setembro passou a ser redigido, composto, impresso e distribuído clandestinamente por todo o Reino. Durante meses, ninguém soube onde se encontrava Rodrigues Sampaio, então na clandestinidade, nem onde se imprimia o jornal, que aparecia por todo o país, apesar da proibição da sua expedição pelos correios[7]:

mas o periódico não cessa, os assinantes recebem-no, os curiosos encontram-no nos cafés, os próprios ministros deparam com ele em

toda a parte. A polícia corre (…), mas não descobre onde durante 11 meses e 4 dias ele se imprime nem onde param os redactores.

(...) O visconde de Castro, ministro dos Estrangeiros, proíbe o correio de expedir a Revolução para as províncias. É tempo perdido. Lá

chega do mesmo modo. A nação é cúmplice de Sampaio. (TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859, p. 76)

Houve assim tempos em que, no Revolução, se trabalhava com as portas e janelas trancadas e as armas ao alcance da mão (TENGARRINHA, 2006, p. 139; BRITO ARANHA, 1907, p. 67). Pedro Venceslau de Brito Aranha (1907, p. 67) relembra, da seguinte forma, esses tempos atribulados:

naquela época, graças ao regime cabralista de espionagem e terror, todos ali andavam receosos (...) e era vulgar perguntarmos uns

aos outros (...) quando seria assaltada a nossa casa ou quando entraríamos na cadeia (...), ou quando surgiria (...) a (...) polícia

municipal (...). De uma vez (...) tivemos que pôr nas oficinas algumas espingardas carregadas com que contávamos, no primeiro

assalto, repelir o ataque e a afronta.

Somente após quase um ano de resistência heróica às diatribes das autoridades, a 29 de Abril de 1845, é que os tribunais decidiram a favor do Revolução, que pôde, então, regressar à sua normal publicação. “Foi advogado da Revolução (…) Alberto Carlos Cerqueira de Faria. Estes acontecimentos aumentaram muito a reputação de Sampaio. Os artigos escritos por ele eram lidos com avidez e o governo atormentava-se de o não poder obrigar a calar-se.” (TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859, p. 77)

Com essa vitória, António Rodrigues Sampaio viu crescer imenso o seu prestígio como jornalista, ou, talvez de forma mais rigorosa, como “político de jornal”, num tempo em que fazer jornalismo e fazer política eram quase sinónimos. Pela sua combatividade, tornou-se conhecido pela alcunha de O Sampaio da Revolução, conforme explica Teixeira de Vasconcelos (1859, p. 30-31). Em Dezembro de 1845, foi, pela segunda vez, desafiado para um duelo, desta feita pelo capitão de infantaria Aires Gabriel Afflalo, por causa de um artigo sobre segurança pública, que Sampaio escrevera no Revolução de 10 desse mês. A contenda foi, todavia, evitada através da cortês troca de cartas.

No Revolução, Sampaio lutou contra a política do Governo em textos que demonstram a sua argúcia analítica[8] (paradoxalmente, em alguns casos combateu a política económica que, posteriormente, os governos que ele viria a integrar acabariam por seguir em alguns vectores):

O carro da prosperidade parou. O resultado da política económica está à vista, com a continuação dos empréstimos e a bancarrota a

rebentar por todos os lados. (Revolução de Setembro, 3 de Abril de 1846)

Eis aí o efeito das vossas leis estultas sobre os tributos, efeito que todo o mundo previu, e que só o ignoravam os ministros. (...) O

desgoverno finalizou sempre pela anarquia. (Revolução de Setembro, 18 de Abril de 1846)

Nos excertos dos artigos acima, nota-se a capacidade analítica e interpretativa de Sampaio, mas observa-se, também, que a opinião é lastrada pela análise de factos. Nem sempre as opiniões jornalísticas de Sampaio eram tecidas sobre questões abstractas e grandes princípios, como aconteceu, frequentemente, durante o vintismo. Pelo contrário, ele procurava opinar sobre factos concretos – como, no caso, as medidas tributárias do Governo.

Aprecia-se, igualmente, nos exemplos acima inseridos, a deriva económica da política. A linguagem da política começava, então, a adoptar, em certas circunstâncias, o “economês”. Mas a situação justificava-o. Ontem como hoje, a despesa pública portuguesa subia vertiginosamente, graças à ambiciosa política de obras públicas que foi seguida por Costa Cabral, inflacionada pelas clientelas cabralistas da alta finança e da construção civil. O défice do orçamento do Estado avolumava-se e cresciam as dificuldades de honrar o serviço da dívida, externa e interna. O país aproximava-se da bancarrota e quem mais sofria era quem mais sofre também hoje em dia: os pobres e a classe média.

Em Abril de 1846 o Governo decretou, novamente, a suspensão de garantias e o Revolução viu a sua publicação interrompida durante um mês, tempo durante o qual o seu redactor principal esteve preso. A 20 de Abril de 1846, Sampaio, antevendo o que sucederia, escrevia o seguinte no seu jornal: “Esta é a vez derradeira que falamos ao país. Amanhã já o silêncio dos túmulos reinará. O país (...) está divorciado do Ministério.” Curiosamente, neste pequeno excerto de texto plasmam-se algumas das características da retórica romântica que Sampaio explorará ao longo da vida, em especial no Eco de Santarém e no Espectro. Nota-se, por exemplo, as metáforas e as evocações do sobrenatural (“o silêncio dos túmulos”) e a construção do discurso por oposição de ideias (hoje, fala-se – embora pela última vez; amanhã, só haverá silêncio).

Apesar de cada vez mais renomado, efectivamente Rodrigues Sampaio não evitou a prisão, por causa da sua contínua oposição aos cabralistas[9]. Porém, teve sorte. A 20 de Maio desse ano de 1846, a revolução da Maria da Fonte[10], detonada pela grave crise política, social e económica que o país – perto da bancarrota – atravessava, provocou a queda de Costa Cabral. Com a ascensão do duque de Palmela à chefia do Governo, António Rodrigues Sampaio foi libertado. A 22 de Maio, já saudava a liberdade no Revolução: “Raiou a liberdade porque o povo no-la deu!”. Porém, e como também nota, e muito bem, Victor de Sá (1984, p. 37), Sampaio apelida de “calamidade” aquela que ele considerava ser a transferência do poder moderador da Soberana para o povo, já que tinha sido este a derrubar Cabral e não a própria Rainha. Aliás, no dia 23 de Maio de 1846, escreve, esclarecedoramente, no Revolução: “aonde o poder não se mostra tutelar, é muito simples que esse povo se lance no campo das revoluções”, o que ele vê como um “grande mal” da responsabilidade dos governos discricionários, imorais e corruptos. Considera, aliás, que era então a “revolução” quem governava o país. E diz que quer “garantias para o povo”, para evitar as arbitrariedades dos governos, que ele considera conduzirem à anarquia. Mas de que povo fala Sampaio? É dos burgueses, tal como diz Victor de Sá (1984, p. 37):

Quando fala do povo, é à burguesia que se refere, o povo que paga as contribuições, o proprietário que recebe rendas. E para que o outro povo (…) não chegue a revoltar-se, é preciso que a burguesia seja hábil e comedida, que aqueles poucos que dispõem da governação não sejam tão sôfregos nem tão tontos que façam exasperar a população e a atirem para a revolta.

É, assim, na defesa da burguesia que Victor de Sá (1984, p. 38) encontra a razão para o sucesso de Sampaio: “A burguesia descontente passa a ver no Sampaio da Revolução o seu profeta. (…) A sua voz alcança nesta altura uma tal ressonância, que tão notória popularidade não pode mais passar indiferente aos governantes.”

Francisco da Silva Figueira (1882, p. 17) e Teixeira de Vasconcelos (1859, p. 86) revelam que, também por volta de 1846, o duque de Palmela terá, então, instado António Rodrigues Sampaio, que apoiava, no Revolução de Setembro, o novo Governo, a fundar um novo jornal, com tipografia própria e com uma subvenção do duque durante um ano. Inclusivamente, de acordo com a promessa de Palmela, se o jornal fosse viável passado esse ano, ficaria na posse de Sampaio, sendo que, caso contrário, este teria uma pensão vitalícia, paga pelo duque. Mas de acordo com os seus biógrafos, Sampaio recusou a proposta porque esse novo jornal faria perigosa concorrência ao Revolução e porque queria conservar a sua liberdade de redactor. “Não quis criar uma folha rival do periódico do seu amigo, ainda então ausente” (TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859, p. 86). Brito Aranha (1907, p. 96-97) evoca assim o episódio:

De outra vez, ofereceram-lhe criar um jornal independente da Revolução de Setembro. A resposta foi pronta e decisiva:

– Então eu podia largar a Revolução de Setembro?! Que diria de mim o José Estêvão? Era uma traição. Nenhum interesse me leva a atraiçoá-lo.

Sampaio continuou, por isso, a viver parcamente do seu trabalho na Revolução de Setembro. Quando José Estêvão regressou do exílio, encontrou o jornal dentro da mesma linha editorial que ele havia definido (TENGARRINHA, 1963, p. 9 e p. 18)

Teixeira de Vasconcelos (1859, p. 86) explica, a propósito, que Palmela acreditava na força dos jornais, como homem acostumado a viver em Inglaterra. A colaboração de Sampaio ser-lhe-ia útil porque a luta contra Costa Cabral, conde de Tomar, dera a Sampaio uma popularidade imensa e enorme reputação como “escritor público” em Lisboa e nas províncias.

Em Agosto de 1846, Sampaio aderiu à Liga Promotora dos Melhoramentos da Imprensa, primeiro grémio jornalístico do país, promovido por Garrett e José Estêvão. Todavia, devido às vicissitudes da história, essa associação teve vida curta, apesar do interesse que os seus trabalhos geraram (RIBEIRO, 1871-1886, tomo VIII, p. 51-54).

A 6 de Outubro nesse mesmo ano de 1846, o golpe palaciano da Emboscada[11] retirou o governo ao duque de Palmela e repôs, com a cumplicidade do Poder Régio, os cabralistas no poder, chefiados pelo marechal Saldanha, encarregado da chefia do Governo pela Rainha. O novo Governo ordenou a detenção de António Rodrigues Sampaio, mas este, antecipando a acção, tinha já entrado, novamente, na clandestinidade, refugiando-se na casa de um amigo, o padre João Cândido de Carvalho (TENGARRINHA, 2006, p. 145), colaborador do Revolução e frequentador assíduo da sede deste jornal, onde foi impresso o seu romance Os Mistérios do Limoeiro. Segundo Afonso Pratas (1979, p. 44), a casa do clérigo ficava “numa água-furtada do prédio com face para a Patriarcal Queimada, entre o Moinho de Vento e a Rua Formosa.”

A 9 de Outubro, há um pronunciamento anti-cabralista no Porto, seguindo-se-lhe, no dia seguinte, a formação, na Cidade Invicta, da Junta Provisória do Governo Supremo do Reino, presidida pelo conde das Antas e integrada por José da Silva Passos, António Dias de Oliveira, Sebastião de Almeida Brito, Justino Ferreira Pinto Basto, barão de Resende, barão do Lordelo, António Luís de Seabra e Francisco da Paula Lobo d’Ávila. A 23 de Outubro de 1846, Sampaio[12] lançou um panfleto (em formato de In-Oitavo) intitulado “O Estado da Questão”, no qual expressa decididamente as razões para a sua oposição ao cabralismo.

A notícia da formação de um novo governo cabralista, embora sem Cabrais, acabou por detonar a guerra civil da Patuleia. Os setembristas e restantes forças anti-cabralistas, incluindo, a breve trecho, alguns dos miguelistas[13], uniram-se em torno da Junta governativa surgida Porto.

3. Sampaio e a imprensa clandestina da Patuleia

Com o eclodir da Patuleia, Sampaio manteve-se na clandestinidade, em Lisboa. Chegou a disfarçar-se de mulher para escapar à polícia. Manteve-se, primeiro, na já referida casa do padre Carvalho e, depois, na do administrador do distrito de Santarém, que o acolheu por amizade. Seguidamente, refugiou-se perigosamente em Lisboa (SÁ, 1984, p. 42), para lançar dois novos e sucessivos periódicos clandestinos – O Eco de Santarém (Santarém estava ocupada pelos rebeldes da Patuleia) e O Espectro – nos quais fez uso dos seus recursos retóricos para apelar à mobilização dos cidadãos para lutarem ao lado das forças rebeldes. A tumultuosa história destes periódicos revela a visão empreendedora e aventureira de Sampaio, mas também a sua coragem. Exibiu, neles, a sua verticalidade ideológica, que só seria manchada após a Regeneração.

3.1 Sampaio e o Eco de Santarém

D’O Eco de Santarém terão saído apenas quatro números[14], entre 8 a 14 de Dezembro de 1846, redigidos quase integralmente por António Rodrigues Sampaio e impressos, furtivamente, em Lisboa, por José Elias da Costa Sanches, impressor dos cartazes do Teatro São Carlos, nas ruínas da igreja de Santa Catarina (PRAÇA, 1979, p. 46, nota 7). Na colecção do Eco disponível na Biblioteca Nacional de Portugal[15], há, ainda, um suplemento ao jornal, no qual se insere uma carta expedida pelo Conde de Bonfim, de Torres Vedras, datada de 22 de Dezembro de 1846. Este suplemento é um pouco estranho, porque o Espectro começou a publicar-se a 16 de Dezembro, pelo que o referido suplemento deveria ter saído como suplemento ao Espectro e não ao Eco.

No dia 15 de Dezembro, a polícia, informada por denúncia, assaltou o local onde se imprimia O Eco. Os agentes ainda fizeram uma busca, mas não encontraram vestígios da impressão do jornal, já que os moldes tinham sido destruídos e uma das filhas do referido tipógrafo escondera a cabeça do jornal debaixo da roupa (TENGARRINHA, 1989, p. 166; 2006, p. 145).

Como se apresentava O Eco de Santarém? A seguir ao título do jornal, surgia o local e data da publicação (Lisboa, X feira, X de Dezembro), destacados por dois filetes horizontais, um mais carregado do que o outro, como que desafiando as autoridades a encontrarem vestígios de um jornal clandestino impresso na própria capital. Aparecia, depois, o texto, paginado a duas colunas, com letra capitular a abrir o primeiro artigo. Normalmente, apareciam dois artigos, um a seguir ao outro, notícias e, tal como aconteceu no Espectro, espaços para a “Correspondência Interceptada” ao inimigo e para notícias oficiais, mas sem grandes cuidados com o ordenamento e com a hierarquização das matérias. Alguns desses arremedos de secções eram intitulados (“Notícias” ou “Correspondência Interceptada”, por exemplo), mas de forma despadronizada (tanto podia ser em itálico, como em maiúsculas, como em estilo normal), como era, aliás, comum nos jornais vitorianos (a mesma situação repete-se, por exemplo, no Revolução e no Espectro).

O quarto número é diferente. Embora mantendo o mesmo tipo de caracteres e de cabeçalho, aparece, paginado num só lado, numa única folha de maiores dimensões e menor gramagem, talvez devido à urgência e circunstâncias da sua publicação clandestina perante a constante ameaça das autoridades policiais.

3.2 Sampaio e O Espectro

O Espectro, segundo jornal clandestino redigido por Sampaio durante a Patuleia, durou de 16 de Dezembro de 1846 a 3 de Julho de 1847, num total de 63 números e nove suplementos (números 22, 25, 31, 41, 42, 44, 49, 54).

Normalmente, o periódico tinha três ou quatro partes, por vezes divididas por um filete horizontal ou outro recurso gráfico, ocasionalmente com identificador (por exemplo, “Parte Oficial” ou “Correspondência Interceptada”). Iniciava-se por um artigo de fundo, habitualmente localizado e datado (a redacção do artigo de fundo em Lisboa representava, inclusivamente, um desafio ao poder cabralista na capital). Podia seguir-se-lhe uma secção de notícias enquadradas e comentadas, provenientes de várias fontes, incluindo transcrições de outros jornais e de correspondência, notícias trazidas pelos barcos, etc. Depois, poderiam aparecer os actos oficiais da Junta do Governo Supremo do Reino, sedeada no Porto, os seus decretos e proclamações (“Parte oficial”[16]), o que levava o jornal, de certa forma, a funcionar como um dos periódicos oficiosos ao serviço da mesma, a par do Nacional, do Porto. Finalmente, em certas ocasiões, havia ainda um espaço para informações de última hora (“À última hora”) ou, ocasionalmente, para a publicação da “Correspondência Interceptada” do inimigo (é esta, por exemplo, a designação que encima a secção no número de 28 de Abril). Diga-se, no entanto, que a ordem das secções não era fixa. Por exemplo, o primeiro número, de 16 de Dezembro de 1846, abre com a Advertência, continua com o artigo de fundo, passa para “à Última Hora”, segue para a “Parte Oficial” e encerra com uma carta do conde do Bonfim, dando conta de operações militares.

A secção “À Última Hora” (uma vez surge “Às 10 da noite”, no número de 9 de Abril) acentua a ideia de urgência na informação, tornando-a mais apetecível para o leitor, e ao mesmo tempo mostra que a cronomentalidade (SCHLESINGER, 1977) se inculcava no mundo jornalístico.

A secção “Correspondência Interceptada”, apesar de ser ocasional, é uma das mais interessantes partes do Espectro, pois são nela publicadas cartas privadas e documentos políticos e militares apanhados aos cabralistas, que davam conta do ânimo ou das intenções destes. Os conteúdos dessas cartas, eram virados contra os próprios inimigos. No entanto, apesar de não surgirem autonomizadas numa “secção”, esse tipo de informações e comentários já aparecia anteriormente no jornal. Por exemplo, no número de 23 de Janeiro de 1847, narra-se a apreensão pelas forças constitucionais de uma carta do barão de Estremoz aos seus superiores, na qual se conta – e Sampaio frisa-o no enquadramento que lhe dá – que o exército regular carecia de meios:

A minha cavalaria apreendeu na Venda do Duque o ofício que remeto (...).

Eis o ofício:

«Cópia autêntica – Ill.mo e ex.mo Senhor: (...) cumpre-me dizer a V. Ex.ª (...) que (...) seria conveniente (...) mandar vir de Elvas alguns géneros (...) [e] poder-se desarmar a guarda nacional de Portalegre (...). Conseguindo isto, não faltariam recursos, tanto de géneros, como outros que se precisarem (...).

No número de 28 de Abril, a inserção de uma carta interceptada ao inimigo merece apenas a seguinte frase: “Não comentamos a carta seguinte, escrita ao conde de Vinhais. A frase é de um garoto perfeito”. Mas noutro exemplo, o do número de 28 de Maio de 1847, as várias cartas aí inseridas não são antecedidas ou seguidas de qualquer comentário enquadrante, à excepção de duas notas de rodapé, já que, para quem estivesse imerso no contexto da época, seriam eloquentes por si. Já as cartas publicadas no número de 1 de Maio são precedidas de um resumo das mesmas, chamando a atenção para os seus aspectos mais interessantes, como a circular de Saldanha onde este se queixa de que a maioria das moedas que lhe mandavam eram falsas.

A “Parte Oficial” era usada, conforme se disse, para a publicação das proclamações da Junta e dos líderes rebeldes. Assim, no número de 16 de Dezembro de 1846, primeiro do Espectro, pode ler-se a seguinte proclamação, que apela à dicotomia homens livres (constitucionalistas) – escravos (cabralistas):

Portuenses! O general Abreu volta de novo com a força do seu comando a aproximar-se das linhas do Porto.

Ele não confia em si. Confia na traição. Mas engana-se. A Junta está prevenida. Ninguém ousará, dentro dos muros do Porto, levantar um grito criminoso, fazer uma tentativa culpada. (...) E ai daquele que o ouse!

(...)

A liberdade nos inspira. Os escravos que vêm trazer os ferros e a assolação a esta cidade ficarão petrificados diante das nossas baionetas. O Porto é a cabeça da Medusa diante da qual os tiranos estremecem e gelam de terror.

É de salientar, que a estética romântica, exploradora das emoções, das metáforas, do lirismo, dos referentes sobrenaturais, das comparações, conforme se nota no excerto da proclamação acima inserida, se impregna em todo O Espectro.

O êxito do Espectro perdurou após o seu fim. Tanto assim foi que, em 1880, se fez uma nova edição do periódico, em livro.

O feito mais fantástico do Espectro foi ter conseguido publicar-se periodicamente durante todo o período da guerra civil da Patuleia, pois tratava-se de um jornal clandestino, redigido e impresso em Lisboa, sede do poder cabralista. Teve, contudo, periodicidade irregular, oscilando entre o semanal, bissemanal e trissemanal.

Financiado por indivíduos identificados com a causa patuleia[17], O Espectro tornou-se lendário, graças ao mistério que acompanhava a sua publicação e circulação pela totalidade do território nacional. Por isso, ufano, Sampaio escrevia no número de 13 de Abril de 1847: “o Espectro (...) podia correr sem licença do Santo Ofício, e até apesar dele. (...) O Espectro vai às Necessidades, vai às secretarias de Estado, às estações da polícia, vai aos países estrangeiros, vai a toda a parte”. E no número de 23 de Abril de 1847, acrescentava: “O Espectro vê tudo, e ninguém o vê a ele. Está em toda a parte, como Deus, porque é a emanação dele[18]. Põe a mão sobre o coração do país e conta todas as suas palpitações”.

Não é apenas na circulação que se observa a vocação nacional do Espectro. Lendo-se a correspondência do mesmo, verifica-se que fala da generalidade do país – incluindo as ilhas adjacentes – e que tem correspondentes regulares no Porto, na Guarda, em Coimbra, em Santarém, em Vila Franca, em Setúbal, em Montemor, em Évora e até em Faro, cidade para onde, ao tempo, não havia sequer estradas, apenas caminhos que atravessavam a serra algarvia (por alguma razão, os Reis de Portugal também o eram dos Algarves).

O Espectro, apesar das condições peculiares em que foi publicado, conseguiu funcionar como o principal periódico oficioso dos revoltosos – e tanto assim é que, no número de 28 de Junho de 1847, divulga o documento em que a Junta Provisória do Governo Supremo do Reino, que os patuleias tinham criado para administrar as zonas por si controladas, aceita a mediação estrangeira para por fim à guerra civil. O Espectro assumia-se, de facto, como público porta-voz da Junta e dos revoltosos.

Segundo Tengarrinha (2006, p. 146) e Pedro Venceslau de Brito Aranha (1907, p. 66), Rodrigues Sampaio conseguiu obter a colaboração do tipógrafo António Costa Pratas para a composição e impressão do novo jornal clandestino. Afonso Praça (1979, p. 44) narra da seguinte maneira o episódio:

Um dia, o jornalista foi ali [na casa do padre Carvalho] procurado pelo tipógrafo António da Costa Pratas, da Revolução, que ia pedir-lhe auxílio para passar a Setúbal, onde pretendia juntar-se à insurreição popular. Sampaio convenceu-o, no entanto, de que poderia servir melhor a causa revolucionária encarregando-se de compor um jornal que ele ia escrever. Costa Pratas aceitou e ambos partiram para uma das mais corajosas “aventuras” do jornalismo português (...).

Praça (1979, p. 44) conjectura que os primeiros números do Espectro teriam sido impressos na casa do padre Carvalho. Mas o jornalista Costa Júnior (cit. in Praça, 1979, p. 44-45) refere que os primeiros números foram feitos numa água-furtada da Rua de D. Pedro V, à esquina da Rua da Rosa, acrescentando que “os caracteres tipográficos foram recolhidos aqui e ali e os caixotins improvisados com papelão e que o prelo foi construído com uma galé velha na qual se imprimiam as páginas, sendo a pressão exercida por uma alavanca fincada na parede”.

Eduardo Coelho (1882, p. 252) tem uma versão diferente. Ele diz que a tipografia clandestina do Espectro, onde António Costa Pratas trabalhou furtivamente, foi organizada, apenas com duas caixas de tipos e uma velha prensa de madeira do Revolução de Setembro, numa casa da esquina entre a Rua de São Caetano e a Rua do Chafariz das Terras, em Lisboa, que estava arrendada por José Estêvão, tendo as chaves José Miguel da Costa, editor da Revolução. Seja como for, o que é seguro e que alguém imprimiu o periódico sem ser detectado pelas autoridades.

A distribuição do Espectro era assegurada por um aguadeiro do chafariz da Esperança, que escondia os jornais dentro de um barril, e por uma antiga empregada do Revolução, que os levava debaixo da roupa (COELHO, 1882, p. 252). Os jornais, entregues a patuleias de confiança, eram, posteriormente, redistribuídos camufladamente por toda a cidade de Lisboa e até na província, chegando aos próprios ministros, que assim podiam ler directamente as vergastadas discursivas com que António Rodrigues Sampaio os zurzia. Apesar de se desconhecer a tiragem do Espectro (PRAÇA, 1979, p. 44), pode conjecturar-se que atingiria, pelo menos, algumas centenas de exemplares.

Seguidamente, e ainda de acordo com Coelho (1882, p. 252), numa versão corroborada por Tengarrinha (2006, p. 146-147), Costa Pratas mudou-se para uma pequena tipografia na Rua do Quelhas que pertencia a outro patuleia, chamado Costa e alcunhado “o Coxo da Lapa”, mas, prestes a ser descoberto, deslocou-se para um quarto no Convento dos Barbadinhos arrendado pelo fundador do jornal de anúncios O Grátis, Portugal e Silva, seu amigo e, paradoxalmente, um cabralista, administrador de Almada. E foi na própria tipografia de Portugal e Silva que o Espectro foi impresso, enquanto este se esforçava por descobrir a tipografia do jornal na região que administrava. Dessa vez, o jornal era distribuído por uma mulher, que escondia os exemplares num cesto de legumes.

Depois, o jornal regressou à tipografia da Rua do Quelhas, passando a sua impressão a ser assegurada por Luís da Silva Coutinho Júnior, que mais tarde seria nomeado director tipográfico do Revolução de Setembro, lugar que ainda ocupava quando Sampaio morreu. Foi ainda impresso “em subterrâneos, águas furtadas, numa barcaça no meio do rio Tejo” (TENGARRINHA, 1963, p. 18). “O jornal mudava constantemente de casa, de modo a não ser paralisada a bela aventura. Na Graça, no Chafariz das Terras, na Rua do Quelhas, aqui e além, não importava, o jornal continuava a imprimir-se” (COSTA PRATAS, cit. in PRAÇA, 1979, p. 46)..

Teixeira de Vasconcelos (1859, p. 95) recorda, assim, o período heróico d’O Espectro:

Nos países estrangeiros, causava admiração ver continuar a publicação de um jornal clandestino na capital do reino sem que o governo lhe pudesse pôr cobro. A Revista dos Dois Mundos de 15 de Maio de 1847 consagrou uma página ao Espectro “cuja oficina mudava de casa todas as noites e cujo redactor perseguido pela polícia, arrostando a prisão e os rigores do poder, não sabia se amanhã descansaria a cabeça no sítio onde lhe fora permitido repousá-la hoje.”

Por vezes, a acção de Sampaio no Eco e no Espectro é apresentada como um gesto de heroicidade individual. Podendo ter essa leitura, também pode ter outras, como a de Victor de Sá (1984, p. 40), para quem apesar de ser “arauto da liberdade”, Rodrigues Sampaio não praticou um gesto de “heroísmo individual”, antes se integrou num colectivo que geria a revolta:

A sua acção não foi, porém, como às vezes se inculca, nem tinha que ser, um gesto de heroísmo individual. Pelo contrário. No plano de organização da resistência (…), enquanto outros assumiram responsabilidades, ou militares, administrativas ou mesmo diplomáticas, a ele coube-lhe ser o porta-voz (…) das razões e dos objectivos da causa constitucional.

No primeiro número do Espectro, Sampaio adverte que “O Espectro não se assina nem se vende. (...) Distribui-se gratuitamente” (8 de Dezembro de 1846). Essa advertência de Sampaio no primeiro número do jornal é muito importante porque revela que, efectivamente, havia um apoio organizado ao periódico, conforme o autor confessa no final do último número (3 de Julho de 1847), quando declara que tinham sido cinco os financiadores do Espectro, um inicial e outro a seguir, sendo que este recolhia as dádivas de mais três apoiantes:

O Espectro foi sempre distribuído gratuitamente, nunca teve assinaturas. O redactor escreveu no fim de Janeiro a cinco indivíduos, a quem lançou uma contribuição de 4$800 réis.

Os dois primeiros números foram pagos por um indivíduo. Todos os outros foram por um cavalheiro (…). Não passaram de três pessoas as que lhe deram, a ele, algumas quantias, uma de 48$000 réis em notas, outra de nove mil e tantos réis em metal, e outra de 3 a 4 moedas. (…) A redacção foi sempre, e inteiramente, gratuita.

Alguns devem ter lucrado ilegitimamente com o Espectro, tal era a popularidade do periódico, pois Rodrigues Sampaio viu-se na obrigação de acrescentar o seguinte a essa explicação: “Tudo o que não é isto, se algum dinheiro foi recebido por alguém, não teve aplicação para o Espectro (...). Soube que se assinava, que se vendia, que se reimprimia, e até que algum produto da sua venda revertia para obras de caridade e beneficência, mas o Espectro era estranho a tudo isso.”

José Manuel Tengarrinha (1989, p. 168) avalia, assim, O Espectro:

O Espectro propõe-se (...) fomentar o levantamento popular esperado pelos chefes rebeldes que (...) se mantêm indecisos em volta da capital. Para além de Lisboa, as ambições de difusão do jornal são necessariamente limitadas. Não são fáceis as comunicações num país rasgado pela guerra civil. Numa cidade que é o bastião das forças governamentais (...), o desenvolvimento de tal tarefa defronta obstáculos aparentemente inultrapassáveis. E, no entanto, o jornal aparece regularmente durante cerca de sete meses e adquire uma reputação lendária, não só no país, mas também no estrangeiro. Podemos considerá-lo o jornal clandestino mais importante da história da nossa imprensa periódica até ao aparecimento do Avante!

E diz também:

Nas circunstâncias em que foi elaborado, compreende-se a tensão e violência do seu estilo, roçando, por vezes, a demagogia. Mas para além das invectivas contra a Rainha, das notícias das operações militares e dos patéticos apelos ao povo, O Espectro atinge o fundo da questão quando faz o balanço da crise financeira, quando acusa os governantes de estarem submetidos aos interesses de Londres e de terem deixado cair o País numa situação (...) lamentável (...). É a voz esclarecida da imprensa patuleia do tempo e um dos documentos mais interessantes para o estudo deste agitado período. (TENGARRINHA, 2006, p. 148).

O fim da guerra civil permitiu a Rodrigues Sampaio retomar o seu lugar à frente do Revolução de Setembro, que só abandonaria ao falecer, apesar da sua nomeação para cargos políticos.

4. O Sampaio regenerador e o regresso ao Revolução de Setembro

Saído da clandestinidade com a normalização da situação política, António Rodrigues Sampaio regressou ao Revolução de Setembro, cuja publicação é retomada a 2 de Agosto de 1847[19].

O regresso a uma certa normalidade, contudo, não apagou a mágoa, conforme se pode ler no artigo inserido na secção Interior nesse dia. Nele, ressabiado contra a intervenção estrangeira que conduziu ao fim da Patuleia mas acomodado, Sampaio justifica o término da luta armada com o afastamento do Governo anterior:

Entramos numa quadra nova, e escrevemos para ela. Achamos o mesmo povo, mas não achamos os mesmos senhores. É outra a lei que nos rege, e será por isso também outra a norma das nossas acções.

Se nos perguntarem donde vimos, responderemos que vimos da guerra; que pelejámos pela independência da Pátria; que arcámos corpo a corpo com o despotismo; que estivemos sobranceiros a ele; que lhe ditámos a lei; e que o vimos quase expirante. Diremos que a foice da morte cortou o fio da vida a muitos dos nossos irmãos; que se praticaram gentilezas de valor; que se castigaram, também, actos de infâmia; e que no momento da vitória mão inimiga nos privou de todos os frutos dela.

Se nos perguntarem quem somos, responderemos que pertencemos a essa nobre parte da Nação que abraçou a resistência popular, que achámos justa e legítima, que não provocámos a intervenção estrangeira, mas que lhe resistimos com a pena e com as armas. Diremos que defendemos a integridade do território, que considerámos um dos maiores crimes a violação dele; que protestámos contra ela; que selámos esse protesto com o nosso sangue; e que ficámos prisioneiros e escravos na nossa própria terra. (Revolução de Setembro, 2 de Agosto de 1847)

A conjuntura não era, efectivamente, do agrado de António Rodrigues Sampaio, até porque as eleições de Agosto de 1847 deram a vitória ao marechal Saldanha, que formou Governo a 22. A 2 de Janeiro de 1848, as Cortes voltaram a reunir.

Entretanto, os bens encareciam, entre eles o papel, cujo preço constrangia fortemente as publicações jornalísticas. Por isso, não é de estranhar que no número de 6 de Novembro de 1847 se encontre este “desabafo”: “A estreiteza da nossa folha, que o preço enorme do papel não nos deixa alargar, tem-nos privado de dar nela as correspondências das províncias.”

Apesar de todos os problemas, o Revolução de Setembro, sob a liderança de Sampaio, tornou-se, gradualmente, no mais importante periódico do país[20], a ponto de, em 1870, de acordo com Tengarrinha (1989, p. 139), já tirar 23 mil exemplares, concorrendo pelo título de jornal português de maior tiragem e circulação com o independente, transclassista, noticioso e organizado de forma industrial Diário de Notícias, que surgiu em 1864, provocando uma revolução no panorama jornalístico português.

A verticalidade de Rodrigues Sampaio ficou bem patente quando, de regresso ao seu Revolução, não hesitou em defender a possibilidade dos Cabrais, seus adversários políticos, voltarem ao Governo, desde que de forma legítima, já que a proibição destes ascenderem a cargos governativos, então imposta, era fruto da ingerência estrangeira da Quádrupla Aliança nos assuntos nacionais. Por este mesmo motivo, ergueu-se contra o Governo, a quem acusou de ser ilegítimo por, também ele, ser o resultado de um Diktat estrangeiro.

Segundo Neiva Soares (1982, p. XXV), em 1848, e por inspiração da proclamação da República em França, Rodrigues Sampaio envolveu-se, com José Estêvão, e por convite de António de Oliveira Marreca, na preparação dum golpe insurreccional, de matriz republicana difusa, conhecido por “conspiração das hidras”. Formaram, os três, a Comissão Revolucionária de Lisboa, conhecida por Triunvirato Republicano. Com a queda da II República em França, o movimento tornou-se inconsequente e os seus integrantes voltaram aos partidos monárquicos. Porém, esse episódio contribuiu para alimentar a animosidade que a Família Real nutriu, durante muito tempo, contra António Rodrigues Sampaio.

Entretanto, a Quádrupla Aliança tinha-se desunido desde o final da Patuleia. França e Espanha passaram a apoiar o “poder oculto” de Costa Cabral, que viam como guardião da Monarquia Portuguesa e, por extensão, de garante de estabilidade monárquica para Espanha e mesmo para o resto da Europa, assombrada pelo fantasma do republicanismo (BONIFÁCIO, 1999, p. 177).

Após algum tempo, Costa Cabral, já conde de Tomar, regressou ao país e voltou a formar Governo, em 1849. Esse foi, no entanto, o ano conhecido por “ano da caleche”, pois Rodrigues Sampaio, no âmbito de uma intensa campanha da imprensa oposicionista contra o Ministério cabralista e em especial contra o seu chefe, abertamente acusado de corrupção, revelou, no Revolução de Setembro, numa série de artigos, que Cabral recebera uma caleche em troca da outorga de uma comenda a um indivíduo chamado Frescata. O jornalismo político interventivo entrava já numa fase de denúncia da corrupção, antecipando a imprensa popular idealizada por Pulitzer e Hearst no final de Oitocentos.

A 12 de Janeiro de 1850, o jornal britânico Morning Post pega no tema da ladroagem que a imprensa oposicionista portuguesa recorrentemente abordava para falar da riqueza dos palácios de Costa Cabral e insinuou, dando voz pública a vários rumores, que este e a Rainha eram amantes. Cabral ainda intentou uma acção contra o jornal nos tribunais britânicos, mas a sua imagem, bem como a da Soberana, degradaram-se ainda mais.

Diga-se que, em 1850, um novo escândalo irrompeu: o da nomeação em catadupa de indivíduos afectos a Costa Cabral para a Câmara dos Pares do Reino. Com esse gesto, a Rainha, mais uma vez, concedeu ao seu primeiro-ministro o que ele lhe tinha pedido e, imiscuindo-se directamente na política partidária, tal como a oposição a acusava, permitiu-lhe o controlo da câmara alta do Parlamento (53 pares cabralistas em cem).

No que ao jornalismo diz respeito, a publicitação de alguns escândalos já obrigava, inclusivamente, a cultivar fontes bem informadas e a assegurar-lhes protecção e anonimato, conforme se revela, por exemplo, no seguinte excerto de uma notícia publicada no Revolução de Setembro a 3 de Junho de 1851, sobre um alegado desvio de dinheiro alegadamente praticado pela Junta de Crédito Público: “Enquanto à venda das notas, o nosso informador [itálico nosso] deslindará esse negócio. (...) A Junta, pela sua complacência, e talvez mais alguma coisa do que complacência, é cúmplice nos desvios dos seus dinheiros”.

Em consequência das acusações propagadas pela imprensa oposicionista, que novamente o acusava abertamente de ser “ladrão” e “concussionário” (BONIFÁCIO, 1997, p. 12), Costa Cabral apresentou, a 1 de Fevereiro de 1850, um projecto lei, quase imediatamente alcunhado de proposta de “Lei das Rolhas”, por prever um intenso sistema de controlo da imprensa[21]. Rodrigues Sampaio foi um dos que mais usou a pena para combater os propósitos governamentais e foi um dos subscritores, na companhia de homens como Alexandre Herculano, Almeida Garrett, José Estêvão, Fontes Pereira de Melo, Bulhão Pato, Lopes de Mendonça e Latino Coelho, de um documento de protesto, divulgado no Revolução de Setembro, a 21 de Fevereiro de 1850 (embora tivesse a data de 18 de Fevereiro). Esse documento expressava a ideia de que a Lei, a ser aplicada, resultaria no perecimento da liberdade de pensamento. Foi, aliás, apenas o primeiro de vários documentos de protesto, subscritos pelos mais diversos indivíduos, publicados no Revolução de Setembro até ao início de Junho. De facto, pode dizer-se, em consonância com Tengarrinha (2006, p. 139), que, entre 1849 e 1851, o Revolução foi o jornal “que mais fortemente se bateu, sobretudo com os demolidores editoriais de Rodrigues Sampaio, que ocupavam quase toda a primeira página, contra as arbitrariedades e concussões do Governo de Costa Cabral”. Por isso, foi “o principal responsável pelas grandes campanhas que levantaram a opinião pública das maiores cidades”, contribuindo, ulteriormente, para a queda de Costa Cabral (TENGARRINHA, 2006, p. 139).

A entrada em vigor da “Lei das Rolhas”, a 3 de Agosto de 1850, obrigou os editores de jornais a prestarem uma fiança exorbitante para assegurar possíveis indemnizações caso fossem condenados por crimes de abuso de liberdade de imprensa. De acordo com Neiva Soares (1982, p. XXV), Sampaio declarou, então, que queria assumir pessoalmente a responsabilidade pelos seus artigos, passando a assiná-los e assumindo o lugar de editor, em substituição de José Miguel da Silva. O seu primeiro artigo assinado foi publicado a 20 de Setembro de 1851, no número 2846 do Revolução de Setembro.

Os problemas para a imprensa estenderam-se ao serviço de correios. O número de 16 de Junho de 1849 do Revolução de Setembro, aliás, já dava conta dos problemas de distribuição do jornal na província. Inclusivamente, a partir de meados de 1849, a revolução dos correios (franquia prévia da correspondência) obrigou o jornal a incluir o aviso de que era necessário franquear a correspondência. Esse aviso surgia logo na primeira página, a seguir ao título, junto das referências à localização do escritório, locais de venda do jornal e preço e pagamento de assinaturas e anúncios, entre outras.

Entretanto, em 1850, agudizaram-se as divergências entre Costa Cabral e o marechal Saldanha. Quando, em Janeiro desse ano, o conde de Lavradio acusou Costa Cabral, na Câmara dos Pares, de crime de lesa-majestade, o marechal duque de Saldanha apoiou a acusação. Por isso, a 7 de Fevereiro, com a conivência da Rainha, o marechal foi demitido dos cargos de mordomo-mor da Casa Real, conselheiro de Estado, vogal do Supremo Tribunal de Justiça e ajudante de campo do Rei consorte D. Fernando.

A 29 de Janeiro de 1851, entrou em vigor uma nova lei eleitoral que em tudo beneficiava Costa Cabral. Nesse mesmo mês, tinha rebentado o “caso do Alfeite” – a Casa Real foi acusada de arrendar ao chefe do Governo uma propriedade por valor irrisório, pelo prazo de 99 anos.

Face à degradação da situação, a 7 de Abril desse ano de 1851, o marechal Saldanha promoveu uma revolta militar contra Costa Cabral, com grande apoio popular. A 9 de Abril, as Cortes foram adiadas (e só viriam a reabrir a 2 de Junho). Apesar das vicissitudes da intentona, que pareceu votada ao fracasso, e da fuga de Saldanha para a Galiza, o movimento acabou vitorioso, até porque o Poder Real sentiu o descontentamento do povo. Assim, a 29 de Abril, o movimento anti-cabralista já controlava o Porto. Passos Manuel e Faria Guimarães, entre outros, encabeçaram, então, uma delegação que foi buscar Saldanha a Lobios, na Galiza, reconduzindo-o ao país. Ao mesmo tempo, as tropas governamentais, comandadas pelo Rei consorte, D. Fernando, revoltaram-se em Coimbra. Costa Cabral, já sem capacidade de controlar a situação, abandonou a chefia do Governo e embarcou, então, para Vigo, reassumindo logo a seguir o cargo de embaixador em Madrid.

A fuga de Cabral permitiu a formação de um novo Governo, chefiado pelo duque da Terceira, mas este só durou seis dias. Logo após, o marechal duque de Saldanha assumiu a presidência do Ministério, a 1 de Maio, cargo que ocuparia até Junho de 1856. Terminava, assim, o cabralismo, sem glória e com graves prejuízos para a imagem da Soberana (que morreria em 1853) e, consequentemente, da própria Monarquia. Entrava-se na Regeneração, que Rodrigues Sampaio, apoiou, juntando-se ao novo Partido Regenerador, pelo qual foi eleito deputado por várias vezes, a primeira das quais em Novembro de 1851. A Revolução de Setembro, periódico cada vez mais moderado, tornou-se, por seu turno, uma espécie de órgão oficioso dos regeneradores. O programa do partido centrava-se nos melhoramentos materiais de Portugal à custa do investimento público (o que faria crescer o endividamento do País), em detrimento das quezílias partidárias sobre a Constituição e a organização política do Estado. Reflectia, enfim, os ideais burgueses europeus, fundados no culto do progresso económico, social e político dos estados.

Na nova conjuntura da Regeneração, António Rodrigues Sampaio acomodou-se, até porque a natureza do regime o satisfaria. É essa, nomeadamente, a visão de Victor de Sá (1984, p. 46):

Era contra a ditadura política, mas não era pela democratização social, apenas pela democracia (…) parlamentar, quando só os possidentes eram eleitores ou elegíveis. Era pela descentralização dos poderes do Estado, mas não era pelo sufrágio universal. Era pela elevação do nível educacional das classes trabalhadoras, mas não era pelo reconhecimento da sua autonomia (…).

Tinha, assim, já o aspecto de um pequeno burguês conservador, conforme o descreve Rocha Martins (1941, p. 93): “espadaúdo e gordo, lento de andada, comia, bebia e pensava à antiga portuguesa (…), refugiava-se no trabalho como um monge”. Mas “era generosíssimo a ponto de nem sempre ter de seu alguns mil réis ao canto da gaveta”.

Recorde-se, inclusivamente, que devido à moderação de Sampaio, após a Regeneração, José Estêvão afastar-se-ia do jornal que ele próprio havia fundado para “se demarcar” das posições do primeiro (SÁ, 1984, p. 50).

Como era Sampaio na rotina diária? O jornalista seu contemporâneo Manuel Ferreira Ribeiro (1884, p. 5-6) relembra-o assim:

O jornalismo, na sua forma mais animada – a política – merecia-lhe atento cuidado. Lia com prazer os jornais do dia à hora da sua refeição matinal, separava aqueles cujos artigos mais o impressionavam, fazendo risonhas apreciações. De tarde, quase sempre depois do jantar, é que escrevia para a Revolução de Setembro os artigos (...) que (...) iluminavam o país (...).

Profundo latinista, era-lhe fácil a língua de Vieira. (...) Era literato consumado e artista na verdadeira acepção da palavra.”

Neiva Soares (1982, p. XXV-XXVI) diz que Rodrigues Sampaio era “provocador, sarcástico, verrinoso e quase injurioso, o que lhe acarretou (...) problemas, como os que teve de enfrentar várias vezes na Câmara dos Pares.” Porém, continua o mesmo autor, “Este seu fel era (...) de pouca dura, pois (...) ficava todos os dias à noite no tinteiro. No dia seguinte, a vida recomeçava-lhe (...) com a ordem para o criado: – Manuel, traz-me cá os venenos!” E explicava-lhe que “balas de papel”, como as réplicas saídas no Português, adversário do Revolução, não lhe faziam mal.

Embora mais cordato, Sampaio continuou a usar desassombradamente a pena no Revolução de Setembro. Isso valeu-lhe, inclusivamente, ter sido desafiado para um terceiro duelo, desta vez, com Sant'Anna de Vasconcelos, redactor d’O Português, a 13 de Setembro de 1854. Narrado por Teixeira de Vasconcelos (1859, p. 85) e Brito Aranha (1907, p. 81), o confronto, ocorrido ao meio-dia, perto do Campo Grande, em Lisboa, à pistola, a uma distância de 24 passos, terminou com um ferimento de Sant’Anna. Mas houve muitos outros episódios que permitem imergir na atmosfera do jornalismo oitocentista português. Ramalho Ortigão, por exemplo, conta numa das suas Farpas, que um dia surgiu à frente de Sampaio um jovem que exigia a rectificação de uma ofensa feita a seu pai num artigo do jornalista. Retorquiu-lhe Sampaio:

– A exigência do meu jovem e denodado amigo é perfeitamente justificada e digna do meu respeito. Somente eu não posso satisfazê-lo dum modo cabal. Está completamente fora dos meus hábitos de jornalista retratar-me e quanto ao arrependimento do que escrevo, guardo-o para os casos em que erro e não para este em que escrevi puramente a verdade, demonstrada e patente, não tendo sobre este ponto a dizer senão quod scripsi, scripsi. Mas se por um nobre sentimento de solidariedade filial, o meu amigo entende que deve proceder em desagravo da honra ofendida de seu pai, e não serei eu que o desaconselhe de fazê-lo, quatro caminhos (…) se lhe oferecem para me combater. Primeiro, escrever um artigo de contestação, para o que tem aqui papel e caneta e que lhe publicarei no jornal de amanhã. Segundo, chamar-me aos tribunais, onde eu comparecerei para ser descomposto pelo rábula escolhido para esse efeito. Terceiro, tomar um desforço pelas armas e ter a bondade de me mandar testemunhas e as suas condições, que eu aceitarei. Enfim, espancar-me em sítio público na cidade, o que é talvez o meio mais simpático para a opinião pública, porque o público gosta de ver levar para o tabaco os escritores agressivos e violentos como eu!

– Opto por este último expediente (…). Vou esperá-lo na rua. (…)

– Dez minutos apenas para concluir o artigo que estou fazendo e sou todo do meu nobre amigo (…).

O jovem foi, então, esperar o jornalista na Calçada do Combro e deu-lhe uma bengalada, que Sampaio desviou com o braço. De seguida, o jornalista agarrou pela cintura o jovem desafiador e atirou-o para cima do balcão de uma loja próxima, explicando ao dono:

– Olhe que não é um malfeitor. É um bom rapaz. Trate-o bem. E se quando voltar a si perguntar por mim, mande-me chamar ali à Revolução, que eu cá virei abaixo outra vez.

António Rodrigues Sampaio viveu num tempo em que a troca de favores e o compadrio entre os poderosos era comum, e o próprio Sampaio a terá praticado, inclusivamente em favor de alguns dos seus antigos adversários, conforme, por exemplo revela imprudentemente Francisco da Silva Figueira (1882, p. 19), que ao querer elogiá-lo pelo seu carácter, conta a seguinte história:

Desavieram-se ele e outro colega de redacção e, em jornais diversos, passaram a digladiar-se sem piedade. O amigo, tornado adversário, foi par, e passados bastantes anos precisou da protecção de Sampaio, então ministro, para um filho ser bem sucedido em uma sua pretensão. Não se atrevendo a procurar o ministro (...), encarregou disso um ministro de ambos. Sampaio estranhou que o não procurasse directamente, e com confiança, o antigo amigo. Veio, abraçaram-se com a efusão sincera de amigos (...) e o requerente foi completamente satisfeito na sua pretensão.

Apesar da crítica também contundente dos seus adversários, em 1852, António Rodrigues Sampaio, aburguesado e crescentemente reputado, tornou-se grão-mestre da Confederação Maçónica. Em 1859, foi nomeado conselheiro do Tribunal de Contas, tendo, também, exercido interinamente a presidência deste órgão.

Após a normalização da situação política, criaram-se, novamente, condições para o florescimento dos jornais, até porque, entre 1851 e 1866, se desmantelou o edifício legislativo que condicionava a liberdade de imprensa[22]. Esse período de acalmia e estabilidade política, de relativa paz social e de rotativismo na governação impulsionou o crescimento económico, baseado na industrialização e numa revolução nos transportes, graças, principalmente, à acção de Fontes Pereira de Melo, como ministro e chefe do Governo (Fontismo).

Abraçando a política, Rodrigues Sampaio prosseguiu a sua intermitente carreira parlamentar (não foi eleito para todas as legislaturas) a par da jornalística, quer no Revolução de Setembro, quer, episodicamente, noutras publicações, como os Almanaques Democráticos de 1852 e 1853, no semanário A Federação e, eventualmente, no Jornal do Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas[23], associação a que presidia desde 1852.

Conta Brito Aranha (1907, p. 92) que, em 1866, Joaquim António de Aguiar quis nomear Sampaio como ministro para o Governo que tentava formar, mas o Rei opôs-se, relembrado dos tempos revolucionários de Sampaio e das críticas que este dirigira à Rainha Sua mãe. Tendo sabido da ocorrência, Sampaio escreveu a Joaquim António de Aguiar uma carta, amplamente publicitada, na qual ironicamente dizia: “A Pátria não perde nada e eu lucro. V. Ex.ª matava-me politicamente fazendo-me ministro. Sua Majestade salvou-me fazendo crer a todos que eu era incapaz de o ser.” Essa carta, de resto, foi publicada postumamente, no Revolução de Setembro, a 17 de Setembro de 1882.

Em 1867, Sampaio fez uma viagem pela Europa (BRITO ARANHA, 1907, p. 82), tendo enviado para o Revolução de Setembro várias cartas (“Notas de Viagem”) dando conta das suas experiências.

Em 1870, Sampaio recorre, com outros companheiros, ao seu antigo adversário, Costa Cabral, retirado em Tomar, para este ir dirigir a legação portuguesa junto da Santa Sé, prova do valor político que, apesar de tudo, os seus adversários reconheciam ao antigo chefe do Governo.

Nesse mesmo ano, Rodrigues Sampaio foi eleito presidente da Câmara dos Deputados e exercia esse cargo quando, a 19 de Maio, se deu mais um golpe de Estado promovido pelo seu inimigo eleito da Patuleia, o marechal duque de Saldanha. Paradoxalmente, foi este que lhe abriu as portas do Governo, pela primeira vez, com o cargo de ministro do Reino, equivalente, hoje, ao de ministro da Administração Interna (ou do Interior). Porém, Sampaio apenas se manteve em funções por doze dias. Abdicou delas em ruptura com o marechal, que quereria governar sozinho e autoritariamente, atrasando, tanto quanto possível a convocação de eleições. Francisco da Silva Figueira (1882, p. 17) assegura que Sampaio se demitiu porque “não devia governar em ditadura quem fora o mais valente atleta a liberdade”.

António Rodrigues Sampaio foi novamente eleito deputado nas eleições de 1870 e 1871, com o prestígio reforçado pela sua oposição aos propósitos autocráticos do marechal Saldanha. Em 1871, foi, então, pela segunda vez, chamado ao Governo, desta vez liderado por Fontes Pereira de Melo. Voltou a ocupar-se do Ministério do Reino, que ocupou até 1877. Dedicou-se, por exemplo, ao reforço do mutualismo – o que lhe valeu, inclusivamente, a presidência honorária do Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laborais. Porém, conforme narram Ramalho Ortigão e Eça de Queirós nas Farpas de Setembro de 1871, logo nesse ano Sampaio terá pedido ao vice-presidente do Centro, onde se debatia o republicanismo, o internacionalismo e outras doutrinas incómodas para o poder, para que o organismo “não continuasse em discussões que nem estavam na permissão dos estatutos nem na sua dignidade de corporação”. Por isso, os membros retiraram o retrato de Sampaio da parede. Contam os autores, cheios de comicidade:

O Centro julgou-se tiranizado e protestou. Como? Fazendo um arranjo na sua sala. O retrato do sr. A. R. Sampaio que estava na parede – está agora num armário. Oh grandes homens do Centro. Vós quisestes fazer uma alta justiça social. E o que fizestes? Uma alteração na mobília! Pretendíeis significar por esse facto que éreis os homens da dignidade austera, e todo o mundo vê que sois simplesmente os admiradores das paredes lisas. Dizei cá! A advertência do sr. Sampaio, ministro, foi ou não opressiva do vosso direito? Não? Então, que homens sois vós que gratuitamente, caprichosamente, dais a desautorização a quem vos deu a associação? Foi opressiva? Então que homens sois vós que, por todo o desafogo do vosso direito violado, do vosso pensamento reprimido – não tendes mais iniciativa do que a de umc riado tonto! A vossa justiça indigna-se – despregando pregos! (...) Ah! A vossa maneira de protestar é cómoda para os homens – mas terrível para a mobília!

Efectivamente, no Governo – e porque uma coisa é verbalizar e outra é fazer ou poder fazer, Rodrigues Sampaio não pôde concretizar a maioria das coisas por que sempre se bateu enquanto jornalista, o que lhe valeu a crítica feroz dos seus antigos correligionários mais exaltados, que o acusavam de trair os seus ideais, e dos conservadores, que não cessavam de lhe recordar não só que tinha pertencido à Comissão Revolucionária de Lisboa durante a Patuleia mas também os ataques à Coroa e à Chefe de Estado, D. Maria II, que desferiu no Eco de Santarém e no Espectro[24]. Essa contradição, a falta de etiqueta que sempre exibiu e o facto de se ter amancebado com uma freira após enviuvar, aos 38 anos, tornaram-no, inclusivamente, um dos alvos preferidos dos caricaturistas de então, nomeadamente de Rafael Bordalo Pinheiro. O seu temível adversário Luz Soriano (1854, p. 17-18), por exemplo, para além de o acusar de ter sido seduzido pelo dinheiro, vendendo a sua opinião a quem lhe pagava, escreve:

E repare-se bem que era este o exímio escritor, este o famoso apóstolo, que sem nada de ascético ter na fisionomia, e no ventre, tão severo nos pregava (com a pena, que não com o exemplo) (...). É que a moral do sr. Sampaio é de funil, larga para os seus e estreita para os seus contrários. É que a barriga de Sua Ex.ª é grande e ele não a quer encher com as três aves da igreja ao meio-dia (...). E quer este fariseu (...) que eu o tome por mentor e que por ele regule as minhas acções e a minha política! Ser perverso e querer que os mais o sejam é o cúmulo da perversidade. (...)

Não se esqueça pois ninguém que era este sr. Sampaio o que indo buscar (...) as mais exaltadas teorias republicanas (...), autor de periódicos clandestinos, vomitava no público (...) calúnias (...) contra a falecida Rainha D. Maria II (...), torpissimamente (...) coberta (...) de impropérios por este mesmo homem, que não se pejou de lhe assacar crimes no mais recôndito da sua vida privada (...) nessa (...) Revolução de Setembro, pelourinho da (...) infâmia (...).

Membro influente da actual Câmara electiva, (...) a Monarquia é hoje para ele o melhor dos governos possíveis, e por modo tal que já hoje os soalhos das régias salas gemem sobre o enorme peso deste grande colosso (...).

A crítica de Luz Soriano é, de certa forma, pertinente, até porque Rodrigues Sampaio, em 1871, na qualidade de ministro, lutou pela proibição das Conferências do Casino Lisbonense[25] (NEIVA SOARES, 2006, p. 73), pretensamente por colocarem em causa dogmas da religião e do estado. Foi mais uma das contradições da sua vida: um dos homens que mais se bateu pela liberdade foi também um dos que não hesitou em censurar o debate, em Portugal, das novas ideias que agitavam a Europa. Inclusivamente, como contam Eça de Queirós e Ramalho Ortigão nas Farpas de Janeiro de 1872, pouco tempo depois de ser empossado do cargo de ministro dos Negócios do Reino, logo promulgou uma portaria que impedia as críticas e exames ao hospital de São José.

Noutro acto paradoxal, também em 1872, o ministro António Rodrigues Sampaio promulgou uma outra portaria que impedia que aos jornais fossem comunicadas as atribuições de mercês honoríficas pelo Rei, o que se fazia sob proposta do Governo, obviamente para evitar as críticas da imprensa. Mais uma vez, Ramalho Ortigão e Eça de Queirós comentam o assunto, nas Farpas de Setembro a Outubro desse ano:

O sr. ministro do Reino acaba de praticar (...) um acto deliberativo que ficará na história (...). O sr. ministro proibiu que pela sua secretaria se comunicasse aos jornais notícia das mercês honoríficas.

O sr. ministro, vedando por este modo a publicidade da mercê honorífica, coloca tacitamente a mercê honorífica na categoria de ofensa à moral e do insulto ao pudor.

Doravante, o decreto de honras e mercês passará a ser secreto como o acto vergonhoso.

Quando o sr. ministro sentir a necessidade urgente de fazer um comendador, s. ex.ª pedirá licença aos circunstantes, recolher-se-á num pequeno quarto escuro, fechará a porta por dentro, e mudo, recolhido, aferroado, expelirá a comenda.

Em 1878, ano em que ganhou assento na Câmara Alta do Parlamento com a dignidade de par do Reino, Rodrigues Sampaio foi novamente empossado do cargo de ministro, em novo Governo de Fontes Pereira de Melo, mantendo a tutela do Interior. O seu principal feito desta sua nova passagem pelo Governo foi a aprovação de um novo Código Administrativo, que constituiu, embora com alterações, a base do direito administrativo português até à reforma de 1935. Nesse mesmo ano, um decreto, redigido em termos extraordinariamente elogiosos por António Rodrigues Sampaio, elevou à categoria de marquês o conde de Tomar, Costa Cabral, seu histórico e figadal adversário.

Em 1879, o Governo caiu e Rodrigues Sampaio abandonou o Ministério do Reino, prosseguindo apenas a sua actividade na Câmara Alta do Parlamento. Em 1880, envolvido nas comemorações do tricentenário da morte de Camões, foi eleito presidente honorário da Associação dos Jornalistas e Escritores Portugueses, grémio nacional de jornalistas[26], que se fundou na sequência dessa celebração.

A 23 de Março de 1881, o Governo progressista deixou a cena. Fontes Pereira de Melo não quis chefiar um novo governo. Coube essa tarefa a António Rodrigues Sampaio, que, já totalmente reconciliado com a Família Real, e cada vez mais pragmático e conservador, ocupou a presidência do Ministério (assim se chamava ao Governo) em acumulação com a pasta do Reino. Foi esse o ponto alto da sua vida pública, tendo, nomeadamente, promulgado uma importante lei de reforma da instrução primária. Porém, a 11 de Novembro desse mesmo ano, foi substituído por Fontes Pereira de Melo.

Ainda em 1881, um antigo correligionário de Rodrigues Sampaio, o escritor António Duarte Gomes Leal, lançou, em livro, uma crítica feroz ao jornalista, redigida em verso, a última das que este receberia em vida. Foi causa directa do libelo a adopção de medidas de controlo da imprensa por parte do Governo de Rodrigues Sampaio, a despeito do que este sempre defendera como jornalista panfletário. Por um lado, o acesso às notícias de polícia, por exemplo, foi impedido por nova legislação publicada nesse mesmo ano, o que permitia à autoridade policial cometer arbitrariedades na investigação e repressão do crime[27]; por outro, os processos judiciais eram movidos à catadupa contra quem atacava o Governo ou o Rei, o que limitava os direitos cívicos dos processados, como aconteceu a Gomes Leal, impedido de concorrer a cargos políticos por causa de um processo judicial que se arrastava nos tribunais. Por isso, Gomes Leal (1881, p. 20) apelida Rodrigues Sampaio de “vendido”, “velho solitário (...), escória entre os velhos, refugo de traidor, (...) renegado hostil”. E recorda-lhe os tempos de panfletário em que se teria colocado ao lado dos “justos”, mas em que também teria caluniado a Rainha D. Maria II, a quem, conforme se disse, teria chamado “grande prostituta” (GOMES LEAL, 1881, p. 29), dando injusto eco às insinuações de que a Soberana seria amante de Costa Cabral. Foi esse tipo de ataques que levou, um dia, Sampaio (cit. in TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859, p. 90-91) a queixar-se a um amigo nos seguintes termos: “Se eu tivesse satisfeito todas as exigências de certos figurões, não teria respeitado trono nem altar (…), mas não o tendo feito (…) condenam-me (…). Queriam que eu derrubasse o poder para eles próprios subirem, impossibilitando-me eu próprio de o exercer.”

Coincidiu o lançamento do violento panfleto de Gomes Leal contra Rodrigues Sampaio com a demissão deste último da chefia do Governo e com a sua retirada da vida pública. Doente, acabou por falecer no dia 13 de Setembro de 1882, em Sintra, depois de, segundo a lenda, rever por uma última vez as provas tipográficas do Revolução de Setembro. Foi inumado no cemitério dos Prazeres, em Lisboa. Na ocasião, correligionários e adversários uniram-se ao Povo, massivamente presente no funeral, numa homenagem derradeira a um dos homens que, apesar das suas contradições, mais fez pela implantação de uma democracia liberal e de um estado de Direito em Portugal.

5. O pensamento de Sampaio sobre a imprensa

Tanto quanto foi possível apurar, Sampaio não escreveu muito sobre jornalismo, apesar de se definir como um jornalista que aceitava pacificamente a luta política através da imprensa e que admitia vozes discordantes no seu próprio jornal, conforme apregoou na Câmara dos Deputados, em Abril de 1856[28], dirigindo-se a outro parlamentar, que o acusava de acumular o jornalismo com o cargo de deputado, usufruindo, assim, de vantagens:

sou deputado e sou jornalista e não sei que a qualidade de deputado me inibia de exercer o ofício de jornalista, e declaro (...) que se tivesse de optar (...), optava pelo de jornalista. E o que me admira é que o ilustre deputado que (...) expõe aqui as suas opiniões, as não exponha também pela imprensa. Eu vou para lá, todos o sabem. Redijo os meus artigos e assino-os com o meu nome, não apareço só como editor responsável, mas também como redactor, e nem todos fazem assim, o que prova que a franqueza é mais fácil de alardear do que de seguir. Não censuro nisto ninguém, mas (...) seria mais curial que aqueles que se julgam ofendidos pela imprensa, recorressem à mesma imprensa, e se o ilustre deputado não tem um jornal que lhe admita os seus escritos, eu de muito boa vontade lhe ofereço um jornal (...).

Essa é que é a questão, e acho sempre inconveniente vir trazer para a tribuna as questões da imprensa. Se a imprensa pode falar agora aqui pela minha bôca, não pôde falar sempre, e o ilustre deputado (...) pode responder-me pela imprensa (...), que eu aceito todas essas armas.

Assim, foi mais pelo seu exemplo de vida e acção que Sampaio demonstrou a sua fé na liberdade de imprensa, bem expressa na frase “antes quero uma imprensa anárquica do que uma imprensa perseguida”, que proferiu no calor da luta contra o cabralismo. Contraditoriamente, conforme já se referiu, o exemplo que deu enquanto político, após 1851, foi o de alguém que passou a desconfiar da “imprensa anárquica” e que pretendeu, através dos tribunais e das leis, refrear o que entendia serem os excessos dos jornais.

Há alguns registos escritos do seu pensamento sobre a imprensa. Por exemplo, no Espectro de 26 de Fevereiro de 1847 escreve:

O jornalista é o sacerdote de uma religião, duma crença social – expõe a sua doutrina, discute, convence ou é convencido. A sua alma deve respirar sempre amor, o seu apostolado é um apostolado de paz. Se o seu irmão peca, deve dizer-lhe como o sacerdote do Evangelho: – Fili, pecasti, non adjicias iterum.

Portanto, para Sampaio, jornalismo é engajamento doutrinário, militância e panfletarismo, e o jornalista é o intérprete dessa missão. Mas deve ser um intérprete cordato, que aponte paternalmente os erros dos adversários. Essa visão corresponde, aliás, aos juízos que os contemporâneos de Sampaio fizeram sobre a sua pessoa: adversário corrosivo, frontalmente corajoso, mas leal e bondoso, pouco dado a vinganças.

O excerto de texto anterior evoca também a ideia do jornalista como sacerdote e do jornalismo como sacerdócio, comum nos escritos dos que reflectiram sobre a natureza da profissão em Portugal (ver, por exemplo, SOUSA, 2008a; 2008b). Sendo sacerdócio, o jornalismo implicaria a total disponibilidade do jornalista, crença e convicção. Essa visão opôs-se, por muitos anos, à do jornalista como técnico capaz de obter, produzir e difundir informação.

Num outro número do Espectro, o de 9 de Janeiro de 1847, lamenta “a cegueira de certos publicistas que sustentam uma Corte corrupta com receio de outra pior”. Publicista, para Sampaio, era aquele que se dedicava à publicidade, entendida como a publicitação de factos e ideias através da imprensa. Portanto, publicista era sinónimo de jornalista. Ora, segundo se depreende das palavras de Sampaio, a missão jornalística teria uma dimensão moral. Os jornalistas, embora doutrinários, não poderiam ser cegos, isto é, não poderiam ignorar a verdade e muito menos apoiar cegamente um Poder Régio e um Governo corruptos.

A 6 de Fevereiro de 1844, após o insucesso da revolta anti-cabralista de Torres Vedras, e num tempo em que a ofensiva contra a liberdade de imprensa recrudescia, Sampaio redigiu o seguinte texto no Revolução:

daqui a pouco, a publicidade, condição indispensável do sistema constitucional, será vedada, os prelos condenados como aríetes da anarquia, os tipos destruídos como projécteis da revolução. Calar-se-á o jornalismo. O silêncio da escravidão pesará sobre este país como uma campa de mármore negro sobre o túmulo.

Essa passagem permite perceber que António Rodrigues Sampaio considerava o jornalismo livre indispensável aos estados democráticos de direito, graças ao seu papel na publicitação e no escrutínio dos actos de poder. Sem jornalismo, impor-se-ia o “silêncio da escravidão” a um povo. Amordaçado, este ficaria incapaz de se sintonizar com a actualidade e de julgar com consciência de causa os actos de poder.

Também no Revolução de Setembro, mas a 10 de Abril de 1851, igualmente num texto contra Costa Cabral, escreveu o seguinte:

A imprensa é civilizadora, é conselheira de paz, é mensageira da verdade. Pondo a mão sobre o coração do país, conta todas as suas palpitações, espreita todos os seus movimentos, e procura dar-lhes uma solução pacífica e racional. A imprensa não diz ao povo que se insurja, mas diz e repete cem vezes ao Governo que o seu sistema leva o povo direito à insurreição. A imprensa não excita as paixões do país contra as autoridades, mas tem a obrigação de dizer que o roubo, o peculato e a concussão são motivos suficientemente fortes para excitar todas as sensibilidades e levantar todos os corações honestos e todos os ânimos pundonorosos.

O que se intui desse excerto de texto é que, para Sampaio, o jornalismo tem uma missão civilizadora, na linha dos argumentos liberais sobre a liberdade de imprensa. Efectivamente, para os liberais oitocentistas portugueses, conforme se pode observar, por exemplo, pelos textos de Casal Ribeiro (1850), Silva Ferrão (1850), Cavroé (1821) ou Sinval (1823), a imprensa livre é veículo de conhecimento e de confronto de pontos de vista, impede o despotismo, permite o escrutínio do poder e dá expressão pública aos pensamentos individuais, expandindo a liberdade de pensamento, vista como um direito natural do homem. Aliás, registe-se que Sampaio, no editorial do último número do Espectro (3 de Julho de 1847), tem uma frase, dirigida aos leitores, em que revela a sua crença na imprensa como veículo das luzes: “A imprensa livre vos ilustrará.”

De acordo com essa missão civilizadora, a imprensa seria ainda, de acordo com Sampaio, “conselheira de paz”. Aqui, estará já em destaque a faceta da imprensa como espaço através do qual os indivíduos podem confrontar pontos de vista sem necessidade de se encontrarem e, muito menos, de entrarem em guerra. Ele próprio diz que a imprensa pode contribuir para dar “uma solução pacífica e racional” aos problemas do país.

Mas mais importante, para Sampaio a imprensa também é “mensageira da verdade”. Comprometer-se com a verdade, exprimir o mundo com verdade, é o valor central do jornalismo, tomado à historiografia (SOUSA, 2008). Os artigos de Sampaio podem, assim, ser lidos como uma luta pela verdade, ou pelo menos como uma luta pela supremacia de uma verdade, mas também como pregões de determinadas causas. Registe-se, aliás, que as insinuações caluniosas e as acusações nem sempre justas que dirigiu a D. Maria II e aos Cabrais, especialmente a Costa Cabral, fogem à ideia de luta pela verdade. Alguns dos seus textos são mesmo exemplos de “jornalismo” de causas e neles a verdade dos factos é subordinada à conveniência das causas. O próprio excerto de texto acima inserido demonstra claramente a fé de Sampaio na imprensa como veículo de mobilização popular para a defesa dessas mesmas causas – “A imprensa não excita as paixões do país (...), mas tem a obrigação de dizer que o roubo, o peculato e a concussão são motivos suficientemente fortes para excitar todas as sensibilidades e levantar todos os corações honestos e todos os ânimos pundonorosos.”

Uma outra passagem do texto acima merece destaque. Para António Rodrigues Sampaio, a imprensa consegue auscultar o “coração do país”, dar conta de “todas as suas palpitações”, observar “todos os seus movimentos”. Aqui transparece a crença de Sampaio na imprensa como indício, ou talvez mesmo espelho, do que se passa no país. Afinal, ontem como hoje os jornais servem para dar a conhecer o que se passa.

Também é de dizer que os já referidos ataques de Sampaio, através do Espectro, aos jornais O Popular e Brado da Lealdade, que visavam a vida familiar de D. Maria II, demonstra que Sampaio cria na separação entre a vida privada, que não deveria ser objecto do jornalismo, e a vida pública, que legitimamente poderia ser objecto de cobertura e interpretação jornalísticas.

Num dos traços mais paradoxais do seu percurso de vida, uma vez chegado ao poder, António Rodrigues Sampaio usou os tribunais para querelar vários jornalistas por abuso de liberdade de imprensa. Porquê? Numa carta ao seu advogado Manuel Maria Beirão, publicada no jornal Futuro de 10 de Abril de 1860, a respeito do insucesso de uma acção que tinha interposto contra O Português, ele procura justificar, defensivamente, o recurso aos tribunais para dirimir uma questão que dizia essencialmente respeito à imprensa:

Quando me argúem de um facto falso e desonroso, não discuto na imprensa, porque aí devem discutir-se as opiniões e não as calúnias, peço a reparação nos tribunais, único lugar onde se julgam tais pendências.

(...)

Não me desconsola a decisão do júri. A acusação era que eu tinha vendido a consciência e o voto. Pedi que O Português retirasse aquelas expressões, e não o fez.

(...)

Estranhou o sr. Bruschy que eu largasse as armas da imprensa para ir aos tribunais acusar um colega (...). Não há dúvida que a honra do sr. Bruschy já foi maculada pela imprensa. Não há dúvida que s. s.ª não foi aos tribunais (...). Não há dúvida que se socorreu de dois padrinhos e que julgou que a questão da imprensa devia sair da mesma imprensa, não para os tribunais, mas para o campo onde a agilidade, a força, uma estocada ou um tiro deviam decidir quem tinha razão.

O que se nota no excerto da referida carta acima inserido é efectivamente uma certa contradição entre aquela que tinha sido a prática jornalística de Sampaio e o facto de considerar ofensivo, e motivo de uma querela judicial por abuso de liberdade de imprensa, a acusação eminentemente política (uma apreciação, portanto) de que teria “vendido a consciência e o voto”, quando ele próprio de coisas muito mais graves tinha acusado os seus adversários, nem sempre com provas conclusivas, e às vezes baseado em puro rumores. Nessa fase da sua vida, para ele já não podiam, paradoxalmente, ficar na imprensa as questões de honra levantadas na própria imprensa. De qualquer modo, é de salientar a firme convicção de Sampaio na utilidade das instituições de Justiça do Estado de Direito – os tribunais – para resolver as questões relativas aos ilícitos de abuso de liberdade de imprensa, principalmente quando comparada com a alternativa de lavagem da honra em duelo.

Considerações finais

Este trabalho teve por objectivo biografar a vida e documentar a obra de António Rodrigues Sampaio, um dos portugueses civicamente mais interventivos do século XIX e também, seguramente, um dos homens mais notáveis do seu tempo. Foi seu objectivo reconstruir a biografia desse jornalista, centrando-a, precisamente, na sua acção jornalística. Seis questões de investigação foram colocadas: Quem foi ele? Como obteve sucesso? Como se envolveu no jornalismo? Qual o papel que teve nos jornais em que interveio e como actuava? Qual a influência que exerceu no seu tempo? Através dos seus escritos na imprensa, é possível intuir qual o seu pensamento sobre o jornalismo e sobre a época?

Às primeiras duas perguntas, pode responder-se que António Rodrigues Sampaio era um pequeno burguês, oriundo da pequena burguesia rural provinciana, tendo recebido a sua educação num seminário, como acontecia, de resto, com grande parte dos poucos favorecidos pela possibilidade de se instruírem. O seu sucesso deveu-se a um misto de oportunidade, capacidade, competência, coragem e, principalmente, ao facto de, enquanto pequeno burguês, se ter identificado, nos seus textos corrosivos e moralistas, com as aspirações de muitos dos seus contemporâneos, num tempo em que, por oposição ao Antigo Regime, cada vez mais o reconhecimento resultava do mérito e do valor pessoal em detrimento da condição de nascimento. Mesmo quando ameaçado de censura e prisão, Sampaio teve a coragem de defender convicta e intransigentemente as suas convicções, em sintonia com a dos seus correligionários, o que lhe permitiu assumir papéis de liderança. Nem sequer hesitou em hominizar-se e redigir jornais clandestinos nos momentos de maior crise. Teve a capacidade de usar a palavra como uma arma virulenta ao serviço dos seus ideais, o que lhe franqueou as portas do jornalismo doutrinário, hegemónico à época. E finalmente aproveitou as oportunidades concedidas apenas nas maiores cidades do país, quando, ao migrar para o Porto e, depois, para a capital, lhe foi proposto tornar-se jornalista, ocupação que o alavancaria para a sua bem-sucedida, embora tardia, carreira política.

Pode ainda acrescentar-se que a vida de António Rodrigues Sampaio teve duas fases. A primeira, que dura até à Regeneração, é marcada pelo jornalismo, embora se tratasse de um jornalismo político; a segunda, após a regeneração, é marcada, sobretudo, pela política. Na primeira, conforme também ajuizou Tengarrinha (1963), “combate pelas conquistas fundamentais da liberdade e do estado de direito; na segunda, garantidos os direitos fundamentais, rende-se à esperança no progresso do país.”

Foi ele uma personalidade típica do jornalismo Romântico e burguês? De algum modo, sim. O seu exacerbamento discursivo, a sua permeabilidade à antinomia entre o bom e o mau, a evocação do sobrenatural (basta reparar no título do seu jornal clandestino na Patuleia – O Espectro), o seu individualismo, os seus constantes apelos à emoção e não à razão e à ponderação fazem dele o fruto de uma época, o que não exclui a sua capacidade de moldar, pontualmente, a marcha dos tempos enquanto sujeito histórico. No entanto, Sampaio lança muitas vezes pontes com a contemporaneidade ocidental, o que se observa, por exemplo, quando ele apregoa os valores do Constitucionalismo e do estado de Direito, sem deixar de se ancorar, por vezes, também a valores do Portugal Velho, o que se constata, por exemplo, no facto de não ter hesitado em lavar a honra em duelos e no facto de ter apoiado a suspensão das conferências do Casino Lisbonense por motivos religiosos.

À terceira pergunta, como se envolveu António Rodrigues Sampaio no jornalismo?, poderá responder-se que o fez com a naturalidade com que os políticos de então se envolviam na redacção de periódicos, principal forma que tinham para transmitirem a sua mensagem a um público alargado, em especial aos seus correligionários, apoiantes e seguidores, para arregimentar partidários e animar as suas hostes.

De facto, num tempo e num espaço onde os factos não eram segregados do comentário, em que a liberdade de opinião, exacerbada, incluía o insulto, a calúnia e a truculência, fazer política e fazer jornalismo, no sentido de “escrever política em jornais”, eram quase sinónimos.

Dessa fusão entre o fazer da política e o fazer do jornalismo, a que se juntaria, depois, o fazer da literatura (emersão do fenómeno dos “escritores de jornal”), resultaria, aliás, a discussão que, em Portugal, se prolongou até ao século XX, sobre a natureza do “verdadeiro” jornalismo – se arte liberal assente na produção de informação sob a forma de notícias, entrevistas e reportagens, e portanto passível de ser ensinada e aprendida, ou se capacidade inata assente na capacidade de persuasão e numa elevada erudição (SOUSA, 2009a).

Ontem como hoje, portanto, os políticos orientam-se para a comunicação social, com a diferença de que, no século XIX, fazer jornalismo e fazer política confundiam-se. No século XIX português, pelo menos até à fase de industrialização da imprensa, após 1864/1865, não havia grande distinção entre ser-se político e ser-se jornalista, tal como não havia entre ser-se escritor e ser-se jornalista, até porque não existiam repórteres profissionais. Hoje, o jornalista profissional não é, por definição, um profissional da política e considera-se mesmo que os dois campos não se devem misturar, por muito que interajam, mas no Portugal dos primeiros três quartos do século XIX não existia um campo da política separado de um campo do jornalismo, já que quase todos os jornais eram, essencialmente, um prolongamento impresso e público da política. Foi, portanto, Sampaio um jornalista? No contexto da época – e os factos históricos devem ser lidos em função do contexto de cada época – sem dúvida que o foi. Durante grande parte da sua vida, foi essa, aliás, a sua principal e remunerada profissão. Sampaio foi, de facto, um profissional remunerado para escrever textos com informação interpretada e opinião para jornais e mesmo quando se envolveu na política parlamentar e no Governo, continuou a dirigir o Revolução de Setembro e a receber remuneração pela tarefa. Era um repórter? Não. Mas tal como o jornalismo não se esgota na reportagem nem na notícia, também a figura do jornalista não se esgota no repórter e muito menos se esgotava no contexto oitocentista do exercício da actividade. Aliás, o conceito de profissão em jornalismo, mesmo à luz das leis actuais, passa muito pela dedicação ao ofício como ocupação profissional principal, permanente e remunerada.

À quarta pergunta, pode responder-se que a influência que Sampaio exerceu no seu tempo foi suficientemente grande no campo político para ter chegado a chefe do Governo, embora não tivesse sido inovadora no campo jornalístico, já que se limitou a seguir, embora com coragem e desassombro invulgares, o tipo de jornalismo doutrinário e romântico que se fazia na época, ao qual subordina a sua oratória jornalística. Apesar de viver do jornalismo, não sendo, portanto, puramente um jornalista “por ocupação”, foi essencialmente um “político de jornal”. Aliás, a sua influência política pode, ainda, ser indirectamente aferida pelas homenagens de que foi alvo, em especial no final da sua vida.

A quinta pergunta colocada sobre a vida e obra de António Rodrigues Sampaio referia-se ao papel que ele teve nos jornais em que interveio. Neste caso, os factos da vida do biografado falam por si. Nos jornais Revolução de Setembro e Vedeta da Liberdade, foi escolhido para redactor principal, certamente pelos dotes que evidenciou e pela confiança que conquistou. Já a fundação clandestina do Eco de Santarém e do Espectro revelam a sua coragem e a sua capacidade de iniciativa. Em suma, as suas qualidades pessoais e de escrita panfletária, reconhecidas pelos seus pares, tê-lo-ão catapultado para posições de saliência e liderança no jornalismo, reveladas, por exemplo, em ter sido o escolhido para primeiro presidente honorário da Associação dos Jornalistas e Escritores Portugueses. Foi o seu desassombrado posicionamento jornalístico e a sua lealdade ao Partido Regenerador que, por sua vez, lhe franquearam as portas da política. O exercício do parlamentarismo e da governação, e talvez também a experiência de vida que só vem com a idade, tornaram-no moderado e pragmático, talvez mesmo algo conservador, o que teve reflexos na sua acção jornalística, principalmente a partir de 1851, quando já tinha 45 anos.

Através dos escritos de António Rodrigues Sampaio, é possível intuir qual o seu pensamento sobre o jornalismo? Esta foi a sexta questão de pesquisa colocada e a ela é possível responder que, sobretudo, ele acreditava numa imprensa combativa que apregoasse “a verdade” (uma verdade), escrutinasse o poder, sustentasse a democracia, combatesse o despotismo e expusesse os atentados ao bem comum – a corrupção, o compadrio (acto em que paradoxalmente terá ele próprio incorrido, talvez sem consciência de causa, de tal forma era comum), a extorsão, a ladroagem, os abusos. Talvez não tenha deixado amplos e consistentes escritos sobre o seu pensamento jornalístico, mas a sua acção jornalística permite entender qual seria o seu entendimento sobre o papel do jornalista e dos jornais. Paradoxalmente, como parlamentar e governante, nem sempre agiu de acordo com esses nobres princípios.

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[1] Pesquisa apoiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e com co-financiamento da União Europeia através do QREN, programa COMPETE, fundos FEDER. Projecto PTDC / CCI-JOR/100266/2008 e FCOMP-010124-FEDER-009078.

[2] Constituição liberal inspirada na Constituição francesa de 1791 e na Constituição espanhola de Cádis, de 1812.

[3] D. Pedro IV de Portugal e D. Pedro I do Brasil.

[4] Os revolucionários lograram promulgar uma nova Constituição, em 1838, um documento que emulava a Constituição de 1822, mas com alguns compromissos com a Carta Constitucional.

[5] O próprio jornal narra a perseguição que lhe moveram em 1844. A 25 de Maio, sai mais cedo, justificando-se com a necessidade de se antecipar a “um ataque a todas as tipografias constitucionais” que estaria em preparação. A última folha do jornal, inclusivamente, sai em branco, pois não houve tempo para a compor: “Este número vai mais cedo para o prelo porque sabemos com certeza que se tenciona dar um ataque a todas as tipografias constitucionais. Vai parte desta folha em branco para denunciarmos ao país este atentado, que nem essa denúncia poderíamos fazer se demorássemos a impressão.” A 28 de Maio, noticia que vários dos seus distribuidores tinham sido presos. A 29 de Maio, insere a notícia de que só poderia publicar meia folha, porque tinham prendido quatro dos compositores e impressores e um distribuidor: “Publicamos só meia folha porque 4 dos nossos compositores e os impressores foram hoje presos (…), apesar de nos acharmos munidos de um despacho do juiz competente. Um distribuidor também foi preso. Amanhã na Boa-Hora o nosso editor responderá por estas publicações e aí apresentará os títulos legais em que se autoriza. (…) Os nossos assinantes têm sofrido muitas faltas que não podemos remediar. Todos os regedores de paróquia e cabos de polícia têm ordem para prenderem os distribuidores (…) Mas (…) não consentimos numa violação flagrante que se passasse em silêncio seria o estabelecimento do despotismo.” Mais tarde, apesar de o jornal e o seu editor terem sido ilibados de qualquer crime durante o julgamento de pronúncia, que decorreu entre 31 de Maio e 5 de Junho, a vigilância das autoridades não abrandou. Por isso, a 22 de Junho, o Revolução noticia que continuam as perseguições. Aliás, entre 30 de Maio e 5 Junho de 1844, o jornal incluía o seguinte aviso: “Ainda não podemos publicar folha inteira por causa da autoridade administrativa”. No dia 24 de Outubro, um longo texto evoca os marcos da ofensiva contra o jornal, apesar de, em juízo, se ter provado que nem o jornal nem o editor nem a tipografia eram culpados de ilícitos, pelo que poderiam continuar a correr. Relembra-se nesse texto, por exemplo, que o distribuidor Ricardo Siles Coutinho foi preso uma vez por vender o Revolução e outra por ter sido falsamente acusado de o vender. Com ironia, regista-se que “o déspota”, o governador-civil de Lisboa, irmão de Costa Cabral, parodiado de “homem honesto e inteligente”, “mandou assaltar a oficina da Revolução” tendo levado “um prelo, caixas, letra” cujo paradeiro não se sabia. E acrescenta-se, mantendo-se o tom corrosivamente irónico: “É edificante ouvir o sr. Silva Cabral a falar em legalidade e a querer superintender nas decisões dos tribunais”.

[6] Diário da Câmara dos Deputados, IV, Abril de 1846, p. 347-348.

[7] Neiva Soares (1982, p. XIX) acredita que o jornal, para ser expedido pelos correios, era metido dentro de outros.

[8] Apesar dos artigos de fundo do Revolução de Setembro, nesta fase, não serem assinados (Sampaio só o começará a fazer em 1851), são, presumivelmente, da autoria de António Rodrigues Sampaio, redactor principal do jornal. É com base nessa presunção, e também na avaliação que Franquelim Neiva Soares (1982) fez para a sua antologia de textos de Sampaio, que se elegeram os artigos do Revolução de Setembro referidos neste trabalho.

[9] É de dizer que Costa Cabral e a Rainha, sua apoiante, foram vítimas de uma campanha suja através dos jornais oposicionistas e de panfletos, legais ou clandestinos, e na qual Sampaio participou. Acusaram Costa Cabral de ser ladrão, corrupto e, sobretudo, de alimentar “sentimentos imorais” (CASAL RIBEIRO, 1850) pela Rainha, um boato que perdurou até à segunda e definitiva queda de Costa Cabral e que foi intensificado pelo fato de a Soberana se hospedar um dia na sua casa, uma honra concedida aos súbditos mais fiéis. Na via pública corria efectivamente o boto de que a Rainha era amante de Costa Cabral.

[10] A Maria da Fonte, também conhecida por Revolução do Minho, é a designação da revolta popular anti-cabralista, mas de pendor conservador e reaccionário, detonada, no Minho, pelo profundo descontentamento popular contra as novas leis do recrutamento militar, contra o agravamento da carga fiscal, contra a introdução da contribuição predial (o país precisava de receitas para financiar a ambiciosa política cabralista de obras públicas) e, sobretudo – causa próxima da rebelião, contra a proibição dos tradicionais enterros nos adros das igrejas (por motivos de saúde pública), que padres miguelistas exacerbados classificavam como obra do diabo e da maçonaria (Costa Cabral era publicamente conhecido como maçom, tendo sido grão-mestre do Grande Oriente Lusitano).

[11] O golpe foi alcunhado pelos liberais setembristas como “Emboscada” para fazer passar a ideia de que a Rainha tinha sido vítima de uma armadilha dos cabralistas mais do que co-responsável por ela.

[12] Pode atribuir-se a autoria do panfleto a Sampaio uma vez que integra, antecedendo-a, a colecção do Espectro publicada ainda em vida do jornalista, sob a forma de livro. Se não fosse sua a autoria do mesmo, certamente não apareceria nessa colecção.

[13] O perigo de uma restauração miguelista, ou pelo menos o medo que gerava, acabaria, mais tarde, por dar fundamento à intervenção estrangeira no conflito português. A aliança contranatura entre setembristas e sectores miguelistas, aliás, nunca foi bem compreendida.

[14] A colecção da Biblioteca Nacional (cota RES 302//2A) apenas possui quatro números e um suplemento, sendo o quarto número datado de 14 de Dezembro. Se O Espectro começou a ser publicado a 16 de Dezembro de 1846, assumindo-se como sucessor do Eco de Santarém, não é crível que tenham sido publicados mais números deste último periódico.

[15] Cota RES 302//2A.

[16] A “Parte Oficial” era uma secção comum nos jornais portugueses da época. Por exemplo, o próprio Sampaio transcreve frequentemente no Espectro notícias e outros textos inseridos nas partes oficiais de outros jornais. Leia-se o seguinte exemplo: “O Diário contém partes oficiais muito interessantes (...).” (6 de Janeiro de 1847)

[17] António Rodrigues Sampaio confessa-o no último número.

[18] Sampaio assumiu sempre a condição de crente. Inclusivamente, conforme se diz neste trabalho, foi contra as Conferências do Casino Lisbonense, precisamente por ver nelas um desafio à religião.

[19] Pelo menos, as colecções da Biblioteca Pública Municipal do Porto e da Biblioteca Nacional recomeçam com o número de 2 de Agosto de 1847.

[20] A Revolução de Setembro sobreviveu a Sampaio, tendo fechado somente a 23 de Março de 1901.

[21] A lei dava às Câmaras dos Pares e dos Deputados, sem possibilidade de recurso, o poder de julgar verbal e sumariamente as infracções que lhe dissessem respeito, o que as tornava juízes em causa própria. As penas aplicadas podiam ir de multas entre 150 mil e três milhões de réis até à prisão entre um e quatro meses. Os jornais poderiam ser suspensos se um editor cometesse duas infracções num ano. Em períodos de altercação da ordem pública, que na realidade estavam sempre a ocorrer, o Governo ficou com o poder de impedir a divulgação pública de toda a classe de impressos por um determinado prazo e ainda com o poder de nomear comissários dedicados à instrução de processos por abuso de liberdade de imprensa no Ministério Público. Criaram-se tribunais especiais para julgamento dos crimes de abuso de liberdade de imprensa, que substituíam os tribunais de júri. Foi proibido o recurso a colectas públicas para o pagamento de multas e indemnizações por abuso de liberdade de imprensa, prática até então comum. Para se poder fundar um jornal, tornou-se necessário efectuar um depósito substancial susceptível de garantir o pagamento de eventuais multas ou indemnizações. Os próprios vendedores de jornais ficaram restritos a apregoar as denominações dos que tinham para venda, não os conteúdos.

[22] Logo em 1851, foram mandados arquivar os processos por abuso de liberdade de imprensa pendentes; em 1856, estabeleceu-se que as leis de liberdade de imprensa se observassem também no ultramar. Em 1862, amnistiaram-se os crimes de liberdade de imprensa em que o acusador era somente o Ministério Público. Em 1863, publicou-se uma lei sobre os direitos dos jornais. Finalmente, em 1866, aboliram-se, por lei, “todas as cauções e restrições estabelecidas para a imprensa periódica”.

[23] Neiva Soares (1982, p. XXVI) assegura que leu todos os jornais, à excepção dos números em falta na Biblioteca Nacional, e que não encontrou vestígios da colaboração de Sampaio nesta publicação associativa.

[24] Diga-se, no entanto, que António Rodrigues Sampaio manteve até morrer um enorme orgulho no Espectro. Um dia, segundo conta Ramalho Ortigão nas Farpas, já na condição de ministro do Reino, acusado nas Cortes de ter sido um radical, lançou um volume encadernado do jornal para a mesa e declarou: “Se, depois de o ter examinado, a Câmara entender que há alguma espécie de incompatibilidade entre as ideias que aí se acham expostas e a minha presença nos conselhos da Coroa, retiro-me, porque prefiro a honra de ter escrito esse livro à glória de estar sentado nesta cadeira.”

[25] As conferências do Casino Lisbonense foram realizadas por impulso de Antero de Quental, Eça de Queirós, Oliveira Martins, Teófilo Braga e Manuel de Arriaga, entre outros, tendo-se nelas debatido questões literárias e das artes plásticas, como o Realismo, questões políticas, como a República e o Socialismo, e ainda questões científicas, como a aparição das ciências sociais, o darwinismo, etc. Por isso, eram corrosivas para o Portugal hiper-conservador e profundamente católico oitocentista. Segundo o manifesto paradoxalmente publicado no Revolução de Setembro d 18 de Maio de 1871, as conferências pretendiam “Abrir uma tribuna onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam este movimento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos; ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a sociedade civilizada, procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam na Europa; agitar na opinião pública as grandes questões da filosofia e da ciência modernas; estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa.”

[26] Era, porém, uma associação elitista que congregava, principalmente, “escritores de jornal” e “políticos de jornal”, não repórteres profissionais, então vistos como uma espécie de ralé do jornalismo nacional. Ser articulista, redactor de artigos políticos, era visto, ainda, como o objectivo “elevado” de muitos dos que se envolviam na vida dos jornais.

[27] A portaria “muda”, de 12 de Outubro de 1881, explicitava que “Tendo a experiência demonstrado graves inconvenientes na publicação das ocorrências policiais, não só pelo desfavor que se lança sobre as pessoas nelas envolvidas (muitas vezes sem justa causa, pela falta de tempo para apurar a verdade dos factos) mas também, e sobretudo, pelo muito que se prejudica a acção da autoridade policial na investigação dos crimes e na descoberta dos criminosos, os quais, advertidos pela imprensa periódica, não raras vezes iludem todos os propósitos dos agentes policiais e se subtraem, assim, à acção da justiça, há Sua Majestade El-Rei por bem ordenar (...) que, de agora em diante, não dê em notícias das ocorrências e factos policiais”.

[28] Diário da Câmara dos Deputados, vol. IV, 1856, p. 38-39.

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