Breve excurso em torno da candente questão do ensino do jornalismo

Mário Pinto

Professor

Faculdade de Ciências Humanas e Sociais ‒ UFP

mpinto@ufp.pt

Artigo publicado na Revista da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UFP, 2010

Resumo

No que à formação do jornalista concerne, duas teses, de relativa irredutibilidade (e irreconciliabilidade) continuam a fazer o seu percurso: uma, que, pondo a tónica na sua idiossincrasia, assevera que o jornalista nasce já feito; outra, nos antípodas desta, postula que ele se faz. Qual, então, a função das escolas de jornalismo, em ambos os casos? Nelas reside (embora nem sempre ecumenicamente aceite) a solução. Para os prosélitos da primeira, aprimorando o seu dom peculiar, ingénito; para os partidários da segunda, contribuindo para a formação profissional dos que não nascem imbuídos desta mercê.

Abstract

As the training of the journalist concerned, two theories of relative irreducibility (and irreconcilability) continue to make their journey: one that, with the emphasis in its idiosyncrasy, states that the journalist born already done, otherwise, the polar opposite of this, argues that it has to be made. What, then, the role of schools of journalism, in both cases? There is (though not always ecumenical accepted) the solution. Followed for the first, improving his peculiar and natural gift; for the party of the second, contributing to the training of those not born imbued with such skills.

Palavras-chave: Jornalista, faz-se, nasce feito

1. INTRODUÇÃO

Uns quantos testemunhos, cronologicamente distribuídos e a seguir aduzidos, bastarão para se ter a percepção, ténue que seja, de quão problemática é a tarefa de equacionar a temática em epígrafe, no essencial devido ao conceito vigente ‒ o de que o jornalista não se faz, antes nasce já feito ‒, conceito quase hegemónico como se pode confirmar:

1. João Paulo Freire (1936, p. 17) “Ser jornalista é uma vocação”, ou (id., p. 19): “Eu sei que o verdadeiro jornalista não se faz. Nasce feito.”;

2. Alfredo Cunha (1941, p. 32): “O verdadeiro jornalista […] nasce já com determinadas faculdades”, em jornalismo “a vocação é ainda o principal”;

3. Hugo Rocha (1946, p. 16): “O jornalista, o autêntico jornalista, não se faz”, “o jornalista deve nascer já dotado para a parte essencial da sua profissão”;

4. Luís Quadros (1949, p. 19): “nasce[-se] jornalista, como se nasce pintor”;

5. Carvalhal Ribas (1953, p. 325): “É facto sabido: jornalistas não se improvisam, já nascem feitos.”

Se a consensualidade antes expressa não deixa margem para dúvidas acerca da unanimidade prevalecente, outro tanto não acontece quanto às formas de ultrapassar a inexistência deste dom, situação em que emergem diferentes teses, entre as quais pontificam algumas endogenamente antagónicas (não raro nos antípodas umas das outras), o que vem reforçar o melindre da questão e contribuir para a sua aparente insolubilidade. Com efeito, se há um denominador comum ‒ todos concluírem ser congénita esta propensão ‒ as divergências posturais surgem quanto à possibilidade de solução: enquanto uns (os que, com vista à consecução de tal desiderato, advogam a premente acuidade de criação de escolas de jornalismo) acham que o handicap (a ausência deste dom) é passível de ser superado (ou, no mínimo, debelado), outros (os que só com reservas aceitam esta tese ou, pura e simplesmente, a refutam, dada a (suposta) inutilidade de tal medida) excluem liminarmente tal veleidade.

2. DESENVOLVIMENTO

Entre os primeiros, posiciona-se Alfredo Cunha (1941, p. 32), que, sublinhando a importância da componente inata (a imprescindibilidade da preexistência de vocação e o imperativo de se nascer já com determinada proclividade), reconhece, no entanto ‒ apesar de admitir “que tais escolas não formam, no rigor do termo, jornalistas” ‒ a crucialidade da função destas no aperfeiçoamento (e complementaridade) da característica ingénita que as escolas mais não fazem do que adestrar.

Impõe-se esclarecer, para que não subsista o mínimo quiproquó, que, conquanto possa parecê-lo, esta posição não comporta qualquer ambiguidade. É, ao invés, assaz transparente a opinião de Alfredo Cunha (id., ibid.) acerca da temática em apreço:

Congratulando-me com a uniformidade entre o meu parecer e o de quem presentemente representa a classe jornalística portuguesa, vejo com prazer que se aspira a criar, mais do que uma simples escola, uma espécie de Faculdade própria, que não ficaria mal numa Universidade, com um programa de disciplinas e um corpo docente que […] competirão com o dum instituto de estudos superiores.

Começando por aludir (id., p. 13) à fundação da Associação dos Jornalistas e Escritores Portugueses, à qual competiria “organizar cursos livres de ciências sociais”, curso que “seria o embrião ou precursor duma escola de jornalistas”, retoma a questão mais adiante (id., p. 30), realçando: “Alguns dos meios de que o Sindicato deveria usar para execução dos seus fins, oferecem novidade. Citarei, por exemplo, o estabelecimento de uma escola de jornalismo”, escola cuja utilidade “outros publicistas sustentam, e noutros países se reconhece.” Afirmação em abono da qual invoca (id., p. 31) a tese de Bataille e Oker, cujas conclusões foram aprovadas por unanimidade no Congresso Internacional de Imprensa de 1898: “Nela se emitia e justificava eloquentemente o voto de que, sob o patrocínio das Associações de Classe, se instituíssem em cada país cursos práticos gratuitos para o ensino profissional do jornalismo.” Proposta cuja fundamentação radica, precipuamente, em (id., ibid.),

não ser presentemente o jornal um mero instrumento de polémica, ou um trampolim de políticos, com desprezo da matéria noticiosa, tal qual em meados do século passado. Hoje, com o aperfeiçoamento das máquinas de impressão, com o telégrafo e o telefone, com a transformação do espírito público, cada vez mais ávido de saber o que se passa em todos os recantos do mundo, o jornal é um repositório de informações e notícias, dadas com o cunho pessoal que o talento de cada colaborador lhe imprima, quer se trate de crónicas literárias […] de relatos de viagens ou de expedições longínquas. Porque o jornalismo tornou-se uma profissão caracterizada e uma carreira ou modo de vida, com o predomínio do noticiarista e do entrevistador sobre o polemista e o articulista político.

Mas para isto […], é necessário que a educação geral seja completada pela educação profissional. E foi certamente sob a inspiração destas ideias, que o Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa incluiu nos seus Estatutos a criação duma escola de jornalismo, do mesmo modo que o actual Sindicato Nacional dos Jornalistas estabeleceu nos seus a organização de círculos de cultura apropriados, ou, como se lhes chama num programa publicado no seu Boletim ‒ um Curso de Formação Jornalística.

Assunto recorrente, o da criação destas escolas, e que, a propósito da fundação de mais uma (na Universidade de Kansas), esteve subjacente à abertura, “por uma folha da capital”, de um inquérito que (ib., p. 32) “versava o seguinte tema: ‒ tais escolas corresponderão a uma verdadeira necessidade, ou não serão mais do que uma manifestação de pedantismo?” Inquérito a que o próprio Cunha (id., ibid.), “Entrevistado por um redactor da aludida folha”, respondeu:

Evidentemente ao profissional da imprensa, para que possa exercer como deve o seu ofício, convém uma educação especial. Toda a arte tem a sua técnica, e toda a técnica exige ou, pelo menos, muito lucra com a preparação e a aprendizagem. Por isso (acrescentava eu) não se sabe bem por que é que o mister do jornalista continua sendo de simples improvisação.

Claro que tais escolas não formam, no rigor do termo, jornalistas. O verdadeiro jornalista, como o verdadeiro actor […], nasce já com determinadas faculdades, que as escolas não fazem senão adestrar. E, em jornalismo, como noutra qualquer carreira, a vocação é ainda o principal. [...] e noções gerais de literatura, de ciência ou de arte, não fazem senão bem aos que escrevem em periódicos.

Por isso conclui ver com particular agrado a criação de uma Faculdade própria, dotada de um programa específico e de um corpo docente condigno. Aduzindo, em abono do seu posicionamento, um ofício enviado pelo Presidente do Sindicato dos Jornalistas ao Subsecretário de Estado da Educação em que a organização do Curso de formação jornalística é justificada e legitimada nestes termos (1941, p. 33):

O recrutamento do pessoal dos quadros redactoriais dos nossos diários faz-se, geralmente, por tentativas de experiência, incertas e pouco seguras nos seus resultados. A carreira profissional do jornalista começa com base em indícios nítidos de vocação e tendência natural, e desenvolve-se sempre ao sabor da revelação de espontâneas qualidades pessoais.

Reconhecemos que falta o encaminhamento necessário que oriente e aproveite para uma finalidade justa o esforço do autodidacta que faz do jornalismo o seu modo de vida […]. Em muitas capitais estrangeiras preencheu-se essa falta com as Escolas de Jornalismo.

Assaz dissemelhante é o posicionamento de Hugo Rocha, que, conquanto aceite a função destas escolas, o faz com inegáveis reticências. Reiterando (1946, p. 16) que “o autêntico jornalista, não se faz, como pode fazer-se o cantoneiro” ‒ desde logo porque “Os mesteres intelectuais requerem uma espécie de predestinação”, o que, por seu turno, implica que o jornalista “deve nascer já dotado para a parte essencial da sua profissão ‒ vivacidade de espírito, agudeza de visão, sentido das proporções, noção da verdade, da justiça, intuição fecunda, etc.” ‒, Rocha (id., ibid.) não deixa, contudo, de reconhecer que, num patamar mais elevado, “o perfeito profissional da Imprensa não aparece neste mundo por obra e graça do Espírito Santo… Não: esse faz-se. E faz-se, lenta, cuidadosa, perseverantemente.” Como?, perguntar-se-á.

Através da adestragem, em cujo carácter prático põe a tónica (“o jornalista, decorrido o tempo de aprendizagem na redacção, curtido o «pêlo» na passagem pelos serviços internos e externos do jornal, pode considerar-se, profissionalmente, acabado e completo.”), todavia sem descurar o empenhamento do próprio (id., ibid.):

É preciso que se saiba que uma prática aturada de nada valerá ao praticante, se este, por seu turno, não a completar, aperfeiçoar, valorizar com o surto da vontade própria, não se limitando a fazer o que os mestres lhe ensinam e procurando, também, criar personalidade própria. É que o jornalismo, como as chamadas profissões liberais, é, essencialmente, individualista.

Razão bastante para só nestas circunstâncias, e com este substrato, Rocha (id., p. 23) aceitar a utilidade de tais escolas:

É por isso que, se o autêntico jornalista traz do ventre materno essa espécie de predisposição profissional, não sou contrário, em absoluto, à instituição de escolas de jornalismo, destinadas, evidentemente, àqueles que sentem a vocação para ele, factor primordial a considerar.

Pressupostos que, não primando pela perspicuidade, permitem afirmar não ser muito curial a sua posição. Vejamos porquê. Se, por um lado, não se coíbe de quase exalçar a vertente intelectual, excluindo de todo em todo o pendor rotineiro da função (id., p. 10) ‒ ao que contrapõe “Não; a profissão de jornalista é essencialmente intelectual; direi mais: requintadamente intelectual.” ‒ posicionamento que esteia (id., p. 11) na circunstância de “Cada facto sobre que tenha de incidir o foco da atenção do jornalista constituir, via de regra, um caso novo”, razão por que “o jornalista não pode repetir-se na sua obra, não pode trabalhar, todos os dias, com os mesmos dados e é forçado a uma renovação constante”, peculiaridade que Rocha (id., p. 12) não hesita em afirmar constituir “a sua maior virtude”, por outro lado não deixa de sobrelevar (id., p. 23) que “O jornalista carece, também, de fazer a sua cultura pessoal, tanto extensiva como intensivamente.”, porquanto, “Ao contrário da grande maioria dos ofícios da comunidade humana, o jornalismo impõe múltiplos conhecimentos, senão profundos, ao menos de ordem geral”, daí resultando que, em sua opinião (id., ibid.),

pouco afecto ao critério da especialização, o jornalista só é perfeito e completo, quando está apto a intervir em todos os sectores do jornal, desde o cabeçalho ao rodapé da última página, passando, naturalmente, pelo artigo de fundo, pela crónica literária […], pela notícia da chamada reportagem da rua, […]. É fácil, pois, avaliar-se a soma de conhecimentos precisos para poder tocar ‒ e tocar bem ‒ todos os instrumentos da actividade jornalística.

Em suma: dando Rocha tanta ênfase (quanta a que enforma a maioria das suas afirmações) à componente prática da profissão (traquejo na redacção) ‒ ainda que, impõe-se referi-lo, não em detrimento da componente científica, que não renega em absoluto ‒ ficamos sem perceber cabalmente de que lado se posiciona o autor. Tanto mais que, sem ambages, faz depender a utilidade de uma (a aprendizagem científica) da existência da outra (a vocação inata, complementada pela prática na redacção), à qual a subordina, única situação em que admite a proficuidade da primeira.

Novo testemunho acerca do tema em apreço é o de Luís de Quadros (1949, p. 7), que recebeu diversas “Provas de interesse” vindas, no entanto, (id., p. 8) “quase unicamente de pessoas por completo ou relativamente distanciadas da profissão”, a quem agradece por apoiarem “incondicionalmente nosso desejo de que se funde quanto antes em Portugal uma escola técnica de Jornalismo”.

Retomando a vetusta questão da premente necessidade de instaurar o ensino do jornalismo, afirma Quadros (id., p. 15) terem sido as directrizes emanadas do congresso de Lisboa ‒ onde foi amplamente disseccionada e conseguiu significativo impulso ‒ que “conduziram os governos de muitas nações a transformar em realidade a tese [aí] exposta”, por Bataille, e que “se referia exclusivamente à oficialização dos Cursos de Jornalismo […] e à criação de escolas oficiais de jornalistas.” Imperativo de acurado tratamento que Bataille (citado por Quadros, id., p. 16) justificava destarte:

«Com o aperfeiçoamento das máquinas de imprimir, com o telégrafo e o telefone, com a transformação do espírito público, cada vez mais ávido de ser informado, uma metamorfose se operou no Jornalismo: a polémica foi relegada para segundo plano, e a informação passou para o primeiro.» E acrescentava a seguir: «E quando dizemos informação, encaramo-la sob todas as suas fórmulas com a maneira pessoal que lhe possa imprimir o talento do seu autor: quer se trate de crónica literária, crítica de arte, extractos das Câmaras ou dos tribunais, viagens ou expedições.» E, assim, terminava a sua magnífica exposição: «Por isso, é necessário que a educação geral do jornalista seja completada pela educação profissional».

A que se deve então esta nova exigência? No essencial, à circunstância de terem surgido novos dados que incutiram renovada acuidade ao tema (Quadros, id., p. 14):

(…) a informação atingiu um tal grau de celeridade e perfeição, impondo uma técnica assaz difícil, devido à concisão e clareza que deve caracterizar a notícia, que [...] o jornalista tem de ser, na actualidade, algo mais que um bom rapaz amparado a uma culturazinha geral de sexto ano de liceu. A sua cultura tem de ser vasta, tem que perceber de tudo e a sua técnica expressão apurada; isto é, tem que ser um autêntico profissional.

Requisito que, não elidindo o reconhecimento de ser “o Jornalismo, em essência, sinónimo de Informação”, implica, concomitantemente, a assunção de que (id., ibid.) “tal não quer dizer que ele possa ser exercido por qualquer pessoa”, porquanto (id., p. 15), “se a velocidade sempre desempenhou papel de muito relevo na informação […], em nossos dias a notícia […] ganhou a rapidez do instantâneo.” Et por cause, “impôs-se características […] a que só os verdadeiros jornalistas podem chegar com facilidade. Além disso, a estética entrou a ser factor de primordial importância na confecção de Jornais.” Constatações que permitem a Quadros (id., p. 19) preconizar:

Por todas as razões expostas […] ‒ e ainda porque se se nasce jornalista, como se nasce pintor ou poeta, não é menos certo que para se chegar a sê-lo em plenitude integral, um jornalista tem de se fazer, tem de se formar ‒ parece-nos urgente por isso que, no nosso país, […] se encare de vez, e a sério, a fundação de uma escola oficial de Jornalismo integrada na Universidade Técnica (…).

Tanto mais que já de há muito (id., p. 16) ‒ “na América do Norte […], os cursos de Jornalismo ganhavam alento e estrutura pedagógica”, apesar de ter sido (id., p. 17)

(…) só no corrente século [XX] que as escolas de Jornalismo adquiriram feição definida, após um longo período que podemos chamar experimental, uma vez que foi em 1908 que se fundou a primeira escola verdadeiramente digna deste nome. […] em Columbia (Missouri) e o seu programa abrangia quatro anos, permitindo obter o diploma de bacharel em Ciências do Jornalismo.

À qual outra se seguiu, fundada por Pulitzer (id., p. 17) e, assim, “quebrando resistências e más vontades, e até os receios dos profissionais de inferior preparação intelectual, hoje em dia as escolas de jornalistas proliferam pelo Novo e Velho Mundos.” Do que não faltam exemplos corroboradores. Todavia, e sem que tal retire mérito às suas propostas, Quadros acaba por se revelar mais preocupado com a falta de reconhecimento ‒ quer académico (por não conferir título) quer profissional (decorrente do desprestígio de todos terem livre acesso ao que designa de subprofissão) ‒ do que com a insuficiência das habilitações conferidas.

Prosseguindo a dissecção dos depoimentos no início destacados, vejamos agora o que a propósito diz Ribas (1953, p. 341), também ele favorável à fundação destas escolas:

Embora a capacidade jornalística dependa muitíssimo da aptidão inata e grandes figuras se tenham imposto na imprensa somente à custa da experiência das redacções e do autodidactismo, os países mais civilizados já dispõem de escolas de jornalismo, onde os inscritos possam adquirir conhecimentos técnicos e gerais indispensáveis ao desempenho e ao engrandecimento da profissão.

Exigência em cujo abono invoca o testemunho de Porter e Luxon, a que não hesita em recorrer: «O Mundo inteiro é campo de acção para o jornalismo e o jornalista cujos conhecimentos forem muito reduzidos jamais deixará de ser um pobre repórter».

Continuando o breve périplo por alguns dos ‘oráculos’ visitados, mais um testemunho, o de Brás Medeiros (1956, p. 5), que, após sublinhar, “também os problemas da Imprensa revestem, hoje, complexidade tamanha que já não se compadecem com o conhecimento superficial”, preconiza (id., p. 17): “Parece-nos azado ensejo para uma intervenção governamental a requerer mais vastas habilitações literárias como condição de ingresso no jornalismo. E por que não um curso específico?”

Totalmente diferente dos precedentes é o posicionamento dos que, porque mais cépticos, rejeitam peremptoriamente o estabelecimento das escolas de jornalismo, visto não lhes reconhecerem utilidade, tampouco justificação. É o caso de Bento Carqueja (citado por Alfredo Cunha, 1941, p. 31), “que sustentou que, assim como não há escolas de poesia, também não as pode haver de formação de jornalistas.”

Dissemelhante ainda, mas com outro fundamento, é a postura de Ribas. De facto, sobre o que ninguém se deteve, como ele (1953, p. 325), foi a aquilatar até que ponto a concretização de semelhante vocação pode consubstanciar um profundo ónus, quando é consabido que número não negligenciável destes predestinados

Para satisfazerem a vocação, resignam-se muitas vezes a atravessar vidas medíocres e mal-remuneradas à sombra das redacções, condenados, conforme expressão de Humberto de Campos, a vender miolo do cérebro para comprar miolo de pão.

Demonstrado que está ter constituído o estabelecimento do ensino do jornalismo um anelo reiteradamente protelado ‒ tão antigo, na génese, quão longo o período que permaneceu insolúvel ‒, em torno do qual se geraram tantos quiproquós, foram expendidas tantas e tão contraditórias teorias, cremos reunidas as condições de poder asseverar ser Freire (o único a ir ao âmago da questão) quem, com maior proficiência, equacionou tão candente problemática. Aliás, acreditamos haver sido precipuamente a aguda percepção das lacunas existentes e o injuntivo de as colmatar, bem como a premência da consecução de um limiar mínimo de rigor expressivo que terão estado subjacentes à decisão de Freire editar, já em 1936, uma obra em que explana as suas ideias acerca da improtelável necessidade de estabelecer, com chancela oficial, o ensino de jornalismo em Portugal, questão cuja crucialidade plasma, sem ambages, na expressão (1936, p. 11) “o problema máximo do jornalismo”.

Começando por questionar (id., p. 9) se “deveria, ou não, existir uma escola de jornalistas?”, dúvida que sustenta (id., ibid.) no facto de, à época, o jornalismo se fazer “na sua maioria, ou por vocação e autodidactismo, ou por necessidade”, e na constatação (id., ibid.) da singularidade de que “embora haja profissionais, não existe ainda entre nós, para tal, aprendizagem escolar e científica, apesar de o jornalismo ser uma profissão como a medicina, o notariado, a advocacia, ou qualquer outra”, recorda, em seguida (id., p. 10), “que o assunto não é novo” e identifica a data em que “foi pela primeira vez posto oficialmente em discussão”: 1898, no congresso de Lisboa.

Recuperando o final da exposição de Bataille (Freire, id., p. 12), insiste existirem países que já tinham solucionado a questão “ou por meio de cursos livres, como o de Kock, ou por cadeiras universitárias incluídas nos cursos gerais.” E sendo o de Johnson um dos mais notáveis, Freire sugere fixarmo-nos um pouco nele. Acontece que, apesar da abrangência das matérias nele versadas, a verdade é não resistir a sua composição a uma comparação com o que já no tempo de Freire era preconizado ‒ a inexistência de uma disciplina referente ao ensino da língua é marcante ‒, o que lhe merece o seguinte comentário (id., p. 12): “o curso Johnson, que era o mais completo, seria hoje insuficiente para a cultura geral de um jornalista”. Aliás, Freire (id., ibid.) reconhece ainda, que, mesmo Bataille “ia muito mais longe do que Johnson.”, pois propunha (id., ibid.) um leque mais diversificado de disciplinas, preconizava “cursos e conferências anexas, dirigidas por professores universitários” e, ademais (id., p. 14), que para o curso de jornalismo “se exigisse […] que além de um mínimo de conhecimentos gerais, o estudante apresentasse uma folha corrida da sua moralidade. Um diploma preliminar e um atestado de bons costumes.”

Também o curso de Henry Fouquier, que, mesmo en passant, se justifica aflorar ‒ distribuído por quatro anos, era no primeiro, o mais ecléctico, que pontificavam duas rubricas (“Curso profissional de redacção” e “Composições escritas”) cuja crucialidade é irrefragável e que mais que todas reputamos condição sine qua non ‒ supera o de Johnson, como explicitamente admite Freire (id., p. 17) (“O avanço entre esta escola e a de Johnson é considerável”). O que, frisando a imprescindibilidade de uma escola de jornalismo, o leva a explicitar (id., ibid.): “mas uma escola de jornalismo prático, e não de jornalismo de diplomas.” Motivo? “Não se fazem mister doutores em jornalismo, mas sim jornalistas completos.” (id., ibid.). Inopinada nota de azedume dificilmente compaginável com o propalado empenho do autor na instituição de uma escola de jornalismo ‒ apesar de, de imediato, ressalvar (id., ibid.) “mas há uma grande distinção entre o que toda a gente resolveu chamar jornalista e o verdadeiro jornalista.” ‒ e de, contraditando-se (id., p. 21), aduzir:

Reconheço, no entanto, que, hoje mais do que ontem, amanhã mais do que hoje, um jornalista que se preze e preze a sua profissão não pode apenas ater-se à sua vocação, havendo mister que complete essa vocação com os conhecimentos gerais indispensáveis aos que desempenham funções de responsabilidade mental, mas ainda com uma especialização que o habilite a pronunciar-se conscientemente, segundo o sector jornalístico a que aplicou a sua actividade.

Voltando à questão de partida, verdadeiro leitmotiv da obra ‒ (id., p. 19): “o verdadeiro jornalista não se faz. Nasce feito. Mas […] essa espontaneidade exuberante se fortaleceria se a educassem convenientemente” ‒, impõe-se não elidir (e Freire não poupa no vernáculo), que (id., p. 20) “Não há nada mais perigoso do que um jornalista ignorante: mas também nada existe mais incomodativo do que um burro a julgar-se jornalista”, dados os perigos daí emergentes. Coincidência ou não, nas então designadas “nossas colónias”, já nessa altura (id., ibid.) “à frente dum jornal, como seu director, não pode figurar um cidadão sem formatura.” Exigência que, pura estultícia ou não, em sua opinião se justifica (id., p. 38): “este disparate é filho da reconhecida necessidade de não se encontrar à frente dum jornal uma criatura semi-analfabeta.” Justificação que não o impede, mesmo contraditando-se, de reconhecer (id., ibid.): “Evidentemente um jornalista para ser jornalista, não precisa ser formado em leis ou em filosofia; mas o que precisa é saber ler e escrever… em português.” Predicado que Freire aproveita para introduzir (id., p. 38) a questão das categorias, que “urge estabelecer, para os profissionais da imprensa”:

Uma pessoa medianamente instruída (não digo culta) pode muito bem ser um informador, ou um jornalista-repórter. Mas se for apenas medianamente culta, já não deve aspirar a ser um jornalista-redactor e muito menos um jornalista-chefe, ou um jornalista-director.

E, a pretexto (1936, p. 39), insistir no improtelável imperativo da criação de uma escola de jornalistas que “não pode ser um curso de tretas, nem uma academia de larachas. Tem que ser um curso especializado, não para improvisar jornalistas, mas para completar o jornalista.” Requisitos que levam Freire (id., ibid.) a admitir: “De maneira que, num curso de jornalistas, há que atender à parte intelectual, e à parte técnica.” E, a propósito desta dicotomia e da divisão da classe (informadores, repórteres e redactores), a falar da “educação jornalística” que cada um deve ter. Por exemplo (id., ibid.), “Para um informador, o saber ler e escrever é o bastante.”

De sublinhar (e enaltecer) esta obsessão de Freire pela graduação académica e pelo nível de conhecimentos, reiteradamente referido, como logo na página seguinte (id., p. 40) é visível, quer acerca do informador (“tem, pelo menos, que saber ler e escrever correctamente”) quer acerca do repórter: “não ficaria mal se […] se exigisse o 5º ano dos nossos liceus. Não era muito e dava-lhe certas facilidades de expressão”.

Explanada a organização da classe nos moldes à vol d’oiseau aqui apontados, Freire (id., p. 41) passa à especialização que se devia exigir ao redactor. Descrição que, uma vez concluída, é rematada com o seguinte comentário (id., pp. 42-43):

Isto auxiliando a vocação, bastava, quanto a mim, para dar aos componentes dum corpo redactorial a cultura média indispensável ao desempenho das suas funções.

E passava-se então, para quem o quisesse e tivesse aspirações de mando e de destaque, ao Curso Superior de Jornalismo, agregado ao Curso Superior de Letras, único curso superior que devia ser a base desse curso superior de jornalismo [que] constaria apenas de três anos e obedeceria ao seguinte esquema:

Esquema de organização do curso em que não vislumbramos qualquer alusão ao ensino da língua, o que, tratando-se de uma componente que o próprio Freire valoriza, não pode deixar de causar perplexidade. Omissão só imputável ao facto de ele mesmo ter, eventualmente, considerado que tal aquisição era já, neste estádio, um dado adquirido. Hipótese que se nos afigura não descartar ‒ tanto que, a terminar o seu depoimento, o admite “sujeito a modificações, à crítica dos componentes”, ‒ e que, a confirmar-se, constituiria uma decisão acertada. Porque embora a selecção (e seriação) de disciplinas comporte uma certa elasticidade ‒ sem ser aleatória ‒ não menor é a delicadeza de que se reveste, como esta asseveração de Ribas (1953, p. 341) prova:

Não deixa de ser difícil a discriminação das matérias componentes de tais cursos [de jornalismo], pois o jornalista necessita dispor de noções enciclopédicas, não só para enfrentar as artimanhas da colheita, do registo e da transmissão de factos, mas ainda para a compreensão do seu papel na engrenagem social. Na opinião de Porter e Luxon, seria base indispensável ao jornalista: «saber história, emprego correcto do idioma, ter conhecimentos de literatura, economia, sociologia, ciência política e noções elementares de outras ciências tais como química, física, biologia e psicologia».

Passando agora a estudos temporalmente mais próximos de nós, dois testemunhos bastarão para verificarmos persistirem quer a tese hegemónica quer a indefinição posicional. Assim, enquanto Pilar Diezhandino (1994, p. 25) discorrendo acerca dos que são proclives a acreditar ter a redacção jornalística algo que ver com a criação artística afirma estarem nesta linha “todos aquellos que de una forma u otra dicen o piensan que el periodista, como el poeta, es un espécimen humano que nace, no se hace.”, já Francisco Iglesias (1984, p. 42) crê que discutir “si el periodista nace o se hace” é um “planteamiento a todas luces simplista y banal”, porque “Quienes entendían que la labor periodística era un oficio que sólo se podía aprender con la práctica en las redacciones de los periódicos, no alcanzaban a ver la necesidad de que para preparar informadores hubiera que crear unos centros específicos.”

3. CONCLUSÃO

Fácil de inferir, porque corolário do atrás exposto, é ser ampla a consensualidade em torno da opinião, destarte arvorada em tese prevalecente, segundo a qual os jornalistas não se improvisam, antes nascem já feitos. Questão que se revela algo aporética é a da genuína utilidade das escolas de jornalismo que, conquanto quase ecumenicamente reclamadas, não são consentaneamente valorizadas. Tampouco a impreterível prioridade a conferir ao ensino do idioma pátrio, condição sine qua non para se pôr termo ao idiomicídio em curso.

BIBLIOGRAFIA

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