14.11 Sampaio: Considerações finais

Considerações finais

Este trabalho teve por objectivo biografar a vida e documentar a obra de António Rodrigues Sampaio, um dos portugueses civicamente mais interventivos do século XIX e também, seguramente, um dos homens mais notáveis do seu tempo, um dos protagonistas da república com um Rei que foi erguida após o triunfo liberal de 1834 e um dos arquétipos do jornalismo do período Romântico. Foi seu objectivo reconstruir a biografia desse jornalista, centrando-a, precisamente, na sua acção jornalística. Seis questões de investigação foram colocadas: Quem foi ele? Como obteve sucesso? Como se envolveu no jornalismo? Qual o papel que teve nos jornais em que interveio e como actuava? Qual a influência que exerceu no seu tempo? Através dos seus escritos na imprensa, é possível intuir qual o seu pensamento sobre o jornalismo e sobre a época?

Às primeiras duas perguntas, pode responder-se que António Rodrigues Sampaio era um pequeno burguês, oriundo da pequena burguesia rural provinciana, tendo recebido a sua educação num seminário, como acontecia, de resto, com grande parte dos poucos favorecidos pela possibilidade de se instruírem. O seu sucesso deveu-se a um misto de oportunidade, capacidade, competência, coragem e, principalmente, ao facto de, enquanto pequeno burguês, se ter identificado, nos seus textos corrosivos e moralistas, com as aspirações de muitos dos seus contemporâneos, num tempo em que, por oposição ao Antigo Regime, cada vez mais o reconhecimento resultava do mérito e do valor pessoal em detrimento da condição de nascimento. Mesmo quando ameaçado de censura e prisão, Sampaio teve a coragem de defender convicta e intransigentemente as suas convicções, em sintonia com a dos seus correligionários, o que lhe permitiu assumir papéis de liderança. Nem sequer hesitou em hominizar-se e redigir jornais clandestinos nos momentos de maior crise. Teve a capacidade de usar a palavra como uma arma virulenta ao serviço dos seus ideais, o que lhe franqueou as portas do jornalismo doutrinário, hegemónico à época. E finalmente aproveitou as oportunidades concedidas apenas nas maiores cidades do país, quando, ao migrar para o Porto e, depois, para a capital, lhe foi proposto tornar-se jornalista, ocupação que o alavancaria para a sua bem-sucedida, embora tardia, carreira política.

Pode ainda acrescentar-se que a vida de António Rodrigues Sampaio teve duas fases. A primeira, que dura até à Regeneração, é marcada, principalmente, pelo jornalismo, embora se tratasse de um jornalismo político; a segunda, após a Regeneração, é marcada, sobretudo, pela política, apesar de Sampaio ter continuado a fazer jornalismo (ainda que doutrinário). Na primeira, conforme também ajuizou Tengarrinha (1963), “combate pelas conquistas fundamentais da liberdade e do estado de direito; na segunda, garantidos os direitos fundamentais, rende-se à esperança no progresso do país.” Mais do que isso, Sampaio, homem da esquerda liberal, integrou-se perfeitamente no regime surgido com a Regeneração porque, ao fim e ao cabo, se tinha instituído em Portugal uma república, no sentido que lhe era dado originariamente – uma comunidade de cidadãos livres a viver sob leis. O facto de a chefia do Estado ser hereditária e de o País ter um Rei à cabeça não gerava rejeição a Sampaio, porque tinham sido asseguradas aos cidadãos as liberdades fundamentais políticas e cívicas – mais até do que as religiosas (que ele, católico convicto, não via com bons olhos, conforme o demonstrou o episódio da proibição das Conferências do Casino Lisbonense).

Foi Rodrigues Sampaio uma personalidade típica do jornalismo Romântico e burguês? De algum modo, sim. O seu exacerbamento discursivo, a sua linguagem simples, figurativa, sensorial e concreta, a sua permeabilidade à antinomia entre o bom e o mau, a evocação do sobrenatural (basta reparar no título do seu jornal clandestino na Patuleia – O Espectro), o seu individualismo, os seus constantes apelos à emoção e não à razão e à ponderação, fazem dele o fruto de uma época, o que não exclui a sua capacidade de moldar, pontualmente, a marcha dos tempos enquanto sujeito histórico. No entanto, Sampaio lança muitas vezes pontes com a contemporaneidade ocidental, o que se observa, por exemplo, quando ele apregoa os valores do Constitucionalismo e do Estado de Direito, sem deixar de se ancorar, por vezes, também a valores do Portugal Velho, o que se constata, por exemplo, no facto de não ter hesitado em lavar a honra em duelos e no facto de ter apoiado a suspensão das conferências do Casino Lisbonense por motivos religiosos.

À terceira pergunta, como se envolveu António Rodrigues Sampaio no jornalismo?, poderá responder-se que o fez com a naturalidade com que os políticos de então se envolviam na redacção de periódicos, principal forma que tinham para transmitirem a sua mensagem a um público alargado, em especial aos seus correligionários, apoiantes e seguidores, para arregimentar partidários e animar as suas hostes.

De facto, num tempo e num espaço onde os factos não eram segregados do comentário, em que a liberdade de opinião, exacerbada, incluía o insulto, a calúnia e a truculência, fazer política e fazer jornalismo, no sentido de “escrever política em jornais”, eram quase sinónimos. A ideia de “sacerdócio” jornalístico, antes de ter o sentido de “missão cívica de todas as horas”, significava exercício de apostolado doutrinário e político. Um jornalista “sacerdote” era, antes de mais, uma espécie de panfletarista, mais até do que publicista.

Dessa fusão entre o fazer da política e o fazer do jornalismo, a que se juntaria, depois, o fazer da literatura (emersão do fenómeno dos “escritores de jornal”), resultaria, aliás, a discussão que, em Portugal, se prolongou até ao século XX, sobre a natureza do “verdadeiro” jornalismo – se arte liberal assente na produção de informação sob a forma de notícias, entrevistas e reportagens, e portanto passível de ser ensinada e aprendida, ou se capacidade algo inata assente na capacidade de persuasão e numa elevada erudição (SOBREIRA, 2003; SOUSA, 2009a).

Ontem como hoje, portanto, os políticos orientam-se para a comunicação social, com a diferença de que, no século XIX, fazer jornalismo e fazer política confundiam-se. No século XIX português, pelo menos até à fase de industrialização da imprensa, após 1864/1865, não havia grande distinção entre ser-se político e ser-se jornalista, tal como não havia entre ser-se escritor e ser-se jornalista, até porque não existiam repórteres profissionais. Hoje, o jornalista profissional não é, por definição, um profissional da política e considera-se mesmo que os dois campos não se devem misturar, por muito que interajam, mas no Portugal dos primeiros três quartos do século XIX não existia um campo da política separado de um campo do jornalismo, já que quase todos os jornais eram, essencialmente, um prolongamento impresso e público da política. Foi, portanto, Sampaio um jornalista? No contexto da época – e os factos históricos devem ser lidos em função do contexto de cada época – sem dúvida que foi, no mínimo, um profissional do jornalismo ou mesmo um jornalista, no sentido que lhe é dado por Cruz Seoane e Saiz (2007, p. 23), com todas as aspas que se queiram colocar na palavra. Durante grande parte da sua vida, foi essa, aliás, a sua principal e remunerada profissão. Sampaio foi, de facto, um profissional remunerado para escrever textos com informação interpretada e opinião para jornais. Inclusivamente, mesmo quando se envolveu na política, continuou, por alguns anos, a dirigir o Revolução de Setembro e a receber remuneração pela tarefa. Era um repórter? Não. Mas tal como o jornalismo não se esgota na reportagem nem na notícia, também a figura do jornalista não se esgota no repórter – e muito menos se esgotava no contexto oitocentista do exercício da actividade. Aliás, o conceito de profissão em jornalismo, mesmo à luz das leis actuais, passa muito pela dedicação ao ofício como ocupação profissional principal, permanente e remunerada.

É de dizer, porém, que enquanto jornalista de opiniões, causas e doutrinas, António Rodrigues Sampaio não deixava de dar informação que, mesmo quando interpretada e comentada, não surpreenderia, em termos de estrutura temática e critérios de noticiabilidade, se surgisse num jornal contemporâneo.

De facto, Rodrigues Sampaio, dentro dos temas cultural e pessoalmente percepcionados como disponíveis e consonantes com o que seria de esperar tratar em periódicos doutrinários, prestou atenção aos mesmos assuntos que ontem, como hoje, preocupam os portugueses – a guerra; a situação política, social, económica e financeira do país; a governação; as acções dos governantes e outras figuras públicas; a conjuntura internacional; a forma como os estrangeiros olham para os portugueses; a vida cultural (burguesa). De alguma maneira, esse facto prova que alguns critérios de noticiabilidade são relativamente intemporais, já que radicarão nos traços estruturantes da cultura, que, por sua vez, possivelmente, ecoarão algumas das orientações inscritas na matriz genética que moldará muitas das cognições e atitudes humanas e muitos dos comportamentos exibidos pela espécie (sobretudo quando relacionados com a sobrevivência e afastamento do perigo). Por isso, a escolha dos temas por Sampaio resulta de padrões de selecção como:

a) A proximidade (privilegiou os acontecimentos nacionais e frequentemente, nas raras vezes em que se referiu a assuntos internacionais, fazia uma leitura nacional ou até nacionalista dos mesmos – por exemplo, quando se mostrou feroz adversário da ideia da união ibérica);

b) A actualidade e a novidade (privilegiou temas recentes e novos);

c) A negatividade (privilegiou, entre outros, temas que lhe permitiam condenar moralmente os seus adversários pela conduta que estes exibiam ou temas que expunham as chagas sociais ou davam conta de sofrimento, miséria e morte);

d) O conflito (a vida jornalística de Sampaio foi pautada pelo constante confronto de posições – que contribui para atrair leitores – e nunca hesitou em digladiar-se verbal – e até fisicamente – com os seus adversários);

e) A referência a personalidades de elite (os soberanos, os líderes políticos e militares foram alvos regulares da sua prosa);

f) A referência a países cultural e afectivamente próximos, nomeadamente ao Brasil e a Espanha, e a países de elite, nomeadamente a Inglaterra e a França (muitas vezes tendo em consideração a forma como estes olhavam para Portugal e as possibilidades que detinham de interferirem nos assuntos internos portugueses).

À quarta pergunta, pode responder-se que a influência que Sampaio exerceu no seu tempo foi suficientemente grande no campo político para ter chegado a primeiro-ministro, embora não tivesse sido inovadora no campo jornalístico, já que se limitou a seguir, embora com coragem e desassombro invulgares, o tipo de jornalismo doutrinário e romântico que se fazia na época, ao qual subordinou a sua oratória jornalística. Apesar de viver do jornalismo, não sendo, portanto, puramente um jornalista “por ocupação”, foi essencialmente um “político de jornal”. Aliás, a sua influência política pode, ainda, ser indirectamente aferida pelas homenagens de que foi alvo, em especial no final da sua vida.

A quinta pergunta colocada sobre a vida e obra de António Rodrigues Sampaio referia-se ao papel que ele teve nos jornais em que interveio. Neste caso, os factos da vida do biografado falam por si. Nos jornais Revolução de Setembro e Vedeta da Liberdade, foi escolhido para redactor principal, certamente pelos dotes que evidenciou e pela confiança que conquistou. Já a fundação clandestina do Eco de Santarém e do Espectro revelam a sua coragem e a sua capacidade de iniciativa. Em suma, as suas qualidades pessoais e de escrita panfletária, reconhecidas pelos seus pares, tê-lo-ão catapultado para posições de saliência e liderança no jornalismo, reveladas, por exemplo, na escolha que sobre si recaiu para primeiro presidente honorário da Associação dos Jornalistas e Escritores Portugueses. Foi o seu desassombrado e arrojado posicionamento jornalístico e a sua lealdade ao Partido Regenerador que, por sua vez, lhe franquearam as portas da política. O exercício do parlamentarismo e da governação, e talvez também a experiência de vida que só vem com a idade, tornaram-no moderado e pragmático, talvez mesmo algo conservador, o que teve reflexos na sua acção jornalística, principalmente a partir de 1851, quando já tinha 45 anos.

Através dos escritos de António Rodrigues Sampaio, é possível intuir qual o seu pensamento sobre o jornalismo? Esta foi a sexta questão de pesquisa colocada. A ela é possível responder que, sobretudo, ele acreditava numa imprensa combativa, doutrinária, politicamente evangelizadora (e, neste sentido, “sacerdotal”), que apregoasse “a verdade” (uma verdade), escrutinasse o poder, sustentasse a democracia, combatesse o despotismo e expusesse os atentados ao bem comum – a corrupção, a extorsão, a ladroagem, os abusos, o compadrio (acto em que paradoxalmente terá ele próprio incorrido, talvez sem consciência de causa, de tal forma era comum). Talvez não tenha deixado amplos e consistentes escritos sobre o seu pensamento jornalístico, mas a sua acção jornalística permite entender qual seria o seu entendimento sobre o papel do jornalista e dos jornais. Paradoxalmente, como parlamentar e governante, nem sempre agiu de acordo com esses nobres princípios.

Deve dizer-se, igualmente, que os jornais de Sampaio serviram, também, para reforçar ideológica e identitariamente os partidos a que se uniu. No período da Patuleia – tempos do Eco e do Espectro – essa missão que tomou como sua foi ainda mais evidente, já que havia, inclusivamente, de justificar a contranatura convergência entre hiperconservadores absolutistas e liberais de esquerda nas forças patuleias, o que só foi possível através da criação de uma matriz de ideias e valores que pudessem ser vistos como comuns, em nome do bem maior da Nação. Assim, o Eco e O Espectro foram feitos para darem a conhecer a causa dos rebeldes patuleias e para actuarem, em Lisboa, como meios oficiosos da Junta rebelde, mas também contribuíram para a consistência identitária da ideologia dos rebeldes, alicerçada nos valores do nacionalismo, da liberdade (face a tiranos ou estrangeiros...), do desenvolvimento do País (e também da intensificação do colonialismo...), e do império da Lei (igual para todos). No entanto, ao posicionamento de Sampaio nunca são alheios valores fundamentais do campo político setembrista, da esquerda liberal. Ele pugna, nos seus jornais, por uma ampla participação democrática dos cidadãos[1] na vida política e demonstra ser favorável a uma Monarquia em que o Rei não desça ao terreno da luta partidária (ao contrário do que fez D. Maria II). Os seus escritos até à Regeneração, em especial os textos de 1847-1849, são também permeáveis aos valores republicanos que impulsionaram a Primavera dos Povos.

Finalmente, acompanhando os textos de Sampaio, intui-se que muitos dos problemas do Portugal oitocentista continuam a ser problemas no Portugal do século XXI: a situação periférica do país; o atraso industrial e infra-estrutural; a instabilidade e as insuficiências na educação; os problemas financeiros (défice orçamental, endividamento); as assimetrias na distribuição dos rendimentos; as disfuncionalidades da Justiça; a corrupção e o compadrio; a incapacidade do funcionalismo público; etc. António Rodrigues Sampaio teve a clarividência necessária para diagnosticar com precisão as debilidades e defeitos da Pátria e os problemas da Nação e do seu Estado – muitos dos quais ainda hoje se mantêm. Mesmo tendo-os exposto de maneira mais emotiva e superficial do que profunda e racional, permanecerão para o futuro o seu diagnóstico certeiro e muitas das suas recomendações políticas e económicas.

[1] Dos cidadãos ilustrados, pois o povo, na prosa de Sampaio, é essencialmente o povo instruído e proprietário.