14.08 Sampaio na Regeneração

6. O Sampaio da Regeneração

Durante a Regeneração, A Revolução de Setembro, periódico cada vez mais moderado, liderado por Sampaio, tornou-se uma espécie de órgão oficioso dos regeneradores. Porquê? Segundo António José Saraiva e Óscar Lopes (1979, p. 725), porque a Regeneração interrompeu a agitação ideológica em favor do progresso material do País:

A fermentação ideológica (...) vem a estagnar com o movimento da Regeneração inaugurado pelo golpe de Estado de 1851, no qual participam alguns cartistas moderados, setembristas e até socialistas “utópicos”. Garrett, Rodrigues Sampaio e António Pedro Lopes de Mendonça contam-se entre os seus aderentes da primeira ou da segunda hora. Uma nova camada dirigente, que tem o seu representante no engenheiro Fontes Pereira de Melo, pretende encaminhar o País para o progresso material. A sua obra consistiu, fundamentalmente, na criação de infra-estruturas de comunicação, especialmente pela construção de caminhos-de-ferro, facilitando a circulação da produção agrícola. Daí resultou a consolidação e ampliação da burguesia rural e do comércio com ela relacionado; mas também a abertura de novos campos de especulação ao capital financeiro, estreitamente associado ao Estado. Um princípio de governo parlamentar, embora falseado pela subordinação das massas rurais aos grandes proprietários agrícolas, entrou a funcionar, com a correspondente liberdade de imprensa e de associação política. Parece haver um real progresso do fomento agrícola, não acompanhado de um proporcionado desenvolvimento industrial. No entanto, não faltam manifestações de descontentamento por parte das camadas sociais que não beneficiam do sistema, sobretudo o artesanato e os pequenos industriais, condenados a prazo pela concorrência estrangeira e pela evolução tecnológica que se processava fora de Portugal: tumultos de Lisboa em 1856, que impõem o tabelamento do pão; revolução da Janeirinha em 1868 contra o imposto de consumo. Em 1876 assinala-se uma nova crise financeira, que leva à falência numerosos bancos.”

Um especialista em história económica portuguesa, Pedro Lains, em declarações ao jornal Público de 10 de Outubro de 2010 (artigo assinado por João Ramos de Almeida), também contribui para lançar luz sobre as vicissitudes portuguesas de oitocentos:

“No século XIX, foi necessário financiar a construção do Estado. Em 1830, o Estado era muito débil. O Governo, em Lisboa, podia emitir uma ordem, que não chegava a Trás-os-Montes.”

A centralização deu-se por toda a Europa e a dívida pública foi de longe – em Portugal – a fonte de financiamento. O sistema fiscal era incipiente e estava centrado nas taxas alfandegárias e nas transacções, quase nada sobre o rendimento. A dívida cresceu à medida dos gastos. “À cabeça, o funcionalismo, haver administração em todo o lado. Depois, as obras públicas”, salienta. “Estradas, caminhos-de-ferro, portos, escolas e instituições sociais. Mais a defesa e, “claro, o serviço da dívida ia crescendo.”

Portugal aderiu ao padrão-ouro em 1854 e ganhou crédito nos mercados de Londres e Paris. O primeiro empréstimo internacional surge em 1856. Tentou-se estruturar o sistema bancário e fiscal. Criou-se em 1868 a contribuição predial e industrial – que iriam ficar até 1989. Mas em 1880 falhou a reforma fiscal sobre o rendimento. Criar impostos gerava revoltas. (...) O recurso à dívida era a solução de curto prazo politicamente mais indolor.

(...)

Mas no final do século XIX, Portugal estava longe da Europa. A única estrada decente unia Lisboa ao Porto e a população era analfabeta. E se a dívida absorveu 31% do PIB entre 1852-59, chegou aos 75 por cento em 1891. Os juros levavam metade da receita. (...) Por outro lado, a educação e a assistência levavam só três por cento do PIB (...).

Recorria-se à dívida e prometia-se maior rigor, prosperidade. Nada se verificou. Sucederam-se as crises financeiras. Foi em 1857, 1866, 1873, 1876. Nalguns casos, com ruptura da banca. A economia sofria deflações contínuas (...). Subiam as taxas de juro e apertava-se nas contas públicas.

Saraiva e Lopes reforçam a ideia de que a marca da Regeneração é a crença no progresso, identificado com a criação de infra-estruturas de comunicação e com o fomento industrial e agrícola. Porém, dizem também que ao movimento regenerador se incorporaram valores do Antigo Regime, o que pode ajudar a explicar certas contradições que marcarão a vida – e o discurso – de António Rodrigues Sampaio após 1851:

Dobrado o meio século, após o movimento da “Regeneração” de 1851, todas as esperanças estão numa Regeneração, num Progresso, fomentados por uma administração fortemente centralizada, burocratizada, empenhada nas obras públicas, sobretudo vias-férreas, absorvendo para esse efeito a maior parte do crédito financeiro disponível, nacional ou estrangeiro, e reconciliando-se ideológica e pedagogicamente com o que achava de assimilável nos valores clássicos e religiosos do Antigo Regime. (SARAIVA e LOPES, 1979, p. 791-792)

O programa do Partido Regenerador, ao qual Rodrigues Sampaio facilmente aderiu, centrava-se, efectivamente, nos melhoramentos materiais de Portugal à custa do investimento público (o que faria crescer o endividamento do País), em detrimento das quezílias partidárias sobre a Constituição e a organização política do Estado. Reflectia, enfim, os ideais burgueses europeus, fundados no culto do progresso económico, social e político dos estados. A nova orientação do jornal A Revolução de Setembro reflectia bem as mudanças que o século atravessava e a confiança dos seus agentes no rumo de progresso material que o país tomava:

Esta confiança recebe (...) novo encorajamento da rápida transformação que se estava dando nas condições técnicas da vida: a partir de meados do século recebe grande impulso (...) a construção dos caminhos-de-ferro; abrem-se os grandes túneis e canais, generaliza-se a navegação a vapor e o telégrafo. À roda de 80, acumulam-se vários acontecimentos: descoberta do telefone, iluminação eléctrica da Exposição Internacional de Paris (1878), primeiros veículos automóveis (...). A produção do carvão, do ferro, do aço, do petróleo, está a aumentar vertiginosamente.

O desenvolvimento do maquinismo tende a destruir a produção artesanal e a dominar a pequena empresa; por algum tempo, a sociedade parece polarizar-se de forma a ter de um lado um proletariado cada vez mais numeroso, e do outro uma nova burguesia industrial e financeira, reduzida em número, mas mais poderosa do que qualquer outro grupo dirigente antes conhecido; enquanto, por outra banda, se sedimenta uma neo-aristocracia burguesa, mais interessada na fruição dos privilégios adquiridos do que na conquista de novas posições económicas. A “classe média” é o modelo social dos românticos e o seu público, mas tende a decompor-se em camadas instáveis e dispersas. (SARAIVA e LOPES, 1979, p. 716)

Em jeito de avaliação, pode dizer-se que, nesse ambiente, o sucesso jornalístico de Sampaio foi bem patente. Apesar de todos os problemas, o Revolução de Setembro, destinado à pequena burguesia e às novas classes médias de que falam António José Saraiva e Óscar Lopes, sob a liderança de Rodrigues Sampaio tornou-se, gradualmente, no mais importante periódico do país[1], a ponto de, em 1870, de acordo com Tengarrinha (1989, p. 139), já tirar 23 mil exemplares, concorrendo pelo título de jornal português de maior tiragem e circulação com o Diário de Notícias, jornal independente, transclassista, noticioso e organizado de forma industrial, que surgiu em 1864, provocando uma revolução no panorama jornalístico português. A literatura também enfrentou mudanças, nomeadamente com a aparição de uma tendência realista romântica:

No panorama literário do início da Regeneração sobressai (...) um certo contraste entre os três centros citadinos e culturais mais importantes: enquanto os escritores do centro comercial portuense e os novos escritores do meio universitário coimbrão testemunham uma insatisfação (...) contra a plutocracia crescente do “fontismo” (...) e uma certa persistência do idealismo vintista e patuleia (...), em Lisboa verifica-se um contraste mais nítido entre a tendência formalista (...) e uma bruxuleante tendência realista. (SARAIVA e LOPES, 1979, p. 727)

O realismo contagiou o jornalismo, pois era consentâneo com a retoma das velhas formas de expressão da notícia e da reportagem que o jornalismo industrial, muito bem protagonizado pelo Diário de Notícias, reivindicava para si, em oposição à tendência protestativa e emotiva própria do jornalismo político, do qual Rodrigues Sampaio era expoente.

Na nova conjuntura da Regeneração, António Rodrigues Sampaio acomodou-se, até porque a natureza do regime o satisfaria. É essa, nomeadamente, a visão de Victor de Sá (1984, p. 46):

Era contra a ditadura política, mas não era pela democratização social, apenas pela democracia (…) parlamentar, quando só os possidentes eram eleitores ou elegíveis. Era pela descentralização dos poderes do Estado, mas não era pelo sufrágio universal. Era pela elevação do nível educacional das classes trabalhadoras, mas não era pelo reconhecimento da sua autonomia (…).

Tinha, assim, já o aspecto de um pequeno burguês conservador, conforme o descreve Rocha Martins (1941, p. 93): “espadaúdo e gordo, lento de andada, comia, bebia e pensava à antiga portuguesa (…), refugiava-se no trabalho como um monge”. Mas “era generosíssimo a ponto de nem sempre ter de seu alguns mil réis ao canto da gaveta”.

Recorde-se, inclusivamente, que devido à moderação de Sampaio, após a Regeneração, José Estêvão afastar-se-ia do jornal que ele próprio havia fundado para “se demarcar” das posições do primeiro. (SÁ, 1984, p. 50)

Como era Sampaio na rotina diária? O jornalista seu contemporâneo Manuel Ferreira Ribeiro (1884, p. 5-6) relembra-o assim:

O jornalismo, na sua forma mais animada – a política – merecia-lhe atento cuidado. Lia com prazer os jornais do dia à hora da sua refeição matinal, separava aqueles cujos artigos mais o impressionavam, fazendo risonhas apreciações. De tarde, quase sempre depois do jantar, é que escrevia para a Revolução de Setembro os artigos (...) que (...) iluminavam o país (...).

Profundo latinista, era-lhe fácil a língua de Vieira. (...) Era literato consumado e artista na verdadeira acepção da palavra.”

Neiva Soares (1982, p. XXV-XXVI) diz que Rodrigues Sampaio era “provocador, sarcástico, verrinoso e quase injurioso, o que lhe acarretou (...) problemas, como os que teve de enfrentar várias vezes na Câmara dos Pares.” Porém, continua o mesmo autor, “Este seu fel era (...) de pouca dura, pois (...) ficava todos os dias à noite no tinteiro. No dia seguinte, a vida recomeçava-lhe (...) com a ordem para o criado: – Manuel, traz-me cá os venenos!” E explicava-lhe que “balas de papel”, como as réplicas saídas no Português, adversário do Revolução, não lhe faziam mal.

Embora mais cordato, Sampaio continuou a usar desassombradamente a pena no Revolução de Setembro. Isso valeu-lhe, inclusivamente, ter sido desafiado para um terceiro duelo, desta vez, com Sant'Anna de Vasconcelos, redactor d’O Português, a 13 de Setembro de 1854. Narrado por Teixeira de Vasconcelos (1859, p. 85) e Brito Aranha (1907, p. 81), o confronto, ocorrido ao meio-dia, perto do Campo Grande, em Lisboa, à pistola, a uma distância de 24 passos, terminou com um ferimento de Sant’Anna. Mas houve muitos outros episódios que permitem imergir na atmosfera do jornalismo oitocentista português. Ramalho Ortigão, por exemplo, conta numa das suas Farpas, que um dia surgiu à frente de Sampaio um jovem que exigia a rectificação de uma ofensa feita a seu pai num artigo do jornalista. Retorquiu-lhe Sampaio:

– A exigência do meu jovem e denodado amigo é perfeitamente justificada e digna do meu respeito. Somente eu não posso satisfazê-lo dum modo cabal. Está completamente fora dos meus hábitos de jornalista retratar-me e quanto ao arrependimento do que escrevo, guardo-o para os casos em que erro e não para este em que escrevi puramente a verdade, demonstrada e patente, não tendo sobre este ponto a dizer senão quod scripsi, scripsi. Mas se por um nobre sentimento de solidariedade filial, o meu amigo entende que deve proceder em desagravo da honra ofendida de seu pai, e não serei eu que o desaconselhe de fazê-lo, quatro caminhos (…) se lhe oferecem para me combater. Primeiro, escrever um artigo de contestação, para o que tem aqui papel e caneta e que lhe publicarei no jornal de amanhã. Segundo, chamar-me aos tribunais, onde eu comparecerei para ser descomposto pelo rábula escolhido para esse efeito. Terceiro, tomar um desforço pelas armas e ter a bondade de me mandar testemunhas e as suas condições, que eu aceitarei. Enfim, espancar-me em sítio público na cidade, o que é talvez o meio mais simpático para a opinião pública, porque o público gosta de ver levar para o tabaco os escritores agressivos e violentos como eu!

– Opto por este último expediente (…). Vou esperá-lo na rua. (…)

– Dez minutos apenas para concluir o artigo que estou fazendo e sou todo do meu nobre amigo (…).

O jovem foi, então, esperar o jornalista na Calçada do Combro e deu-lhe uma bengalada, que Sampaio desviou com o braço. De seguida, o jornalista agarrou pela cintura o jovem desafiador e atirou-o para cima do balcão de uma loja próxima, explicando ao dono:

– Olhe que não é um malfeitor. É um bom rapaz. Trate-o bem. E se quando voltar a si perguntar por mim, mande-me chamar ali à Revolução, que eu cá virei abaixo outra vez.

Um outro episódio corrobora a virulência de Rodrigues Sampaio e também o entendimento “denunciante” que certamente teria do jornalismo. De facto, Luz Soriano (1854, p. 6) publicou um opúsculo em que acusa Sampaio de formar uma “quadrilha” com três dos seus correligionários para o caluniarem e vilipendiarem através do jornal A Revolução de Setembro e para o amordaçarem no Parlamento. Escreve, ainda, que o jornal o acusava injustamente de corrupção, por moldes pouco ortodoxos, e também não é meigo nas palavras com as quais, ironicamente, caracteriza Sampaio e as vantagens políticas que este teria por ser redactor principal do Revolução de Setembro:

No dia 15 do citado mês de Maio a Revolução de Setembro trouxe estampado logo na frente um dos mais atrozes e violentos artigos que podia empregar contra mim, transcrevendo, mutilado como aprouve (...) um trecho de um folheto impresso em 1852 em que eu, por incidente, fora acusado (...) de concussionário (...). A venenosa baba que lhe sai da danada boca transcorre-lhe pelos cantos dela quando tão irado (...) assim fala. (...) É provável que a Revolução de Setembro me continuasse a mimosear com os cumprimentos do seu cultivado e cortês estilo, do qual ninguém se livra na pena do seu exemplar e moralíssimo redactor. Mas como julgo que nada mais terá acrescentado às acusações, (...) nada mais tenho a dizer (...), visto que quanto à afronta dos epítetos que contra mim terá empregado, não passando de um mero jogo de palavras, não merece isto resposta, sem que por modo algum intente ofuscar a glória que o seu autor daqui pode tirar.

Fácil é ao Sr. Sampaio despejar quantas calúnias lhe lembrarem (...), porque tendo para elas inteiramente gratuito o campo que lhe dão as vastas colunas do seu jornal, que os assinantes lhe pagam para fins mais úteis, tem sempre muito cómoda a repetição de tais actos (...). (LUZ SORIANO, 1854, p. 10-13)

Diga-se, aliás, que, num tempo em que o combate político não era feito com vidrinhos de cheiro e pantufas, Luz Soriano (1854) devolve várias das acusações que Sampaio lhe fez, igualmente de forma cruel, em cartas publicadas no periódico Imprensa e Lei e transcritas no referido libelo de 1854:

Acusam-me os meus adversários políticos, e sobretudo o redactor do Revolução de Setembro, o bem conhecido masmarro António Rodrigues Sampaio, de actos piores que os da subscrição Ximenes (...). Se por isto me cabe o epíteto de ladrão (...), não menos ladrão será (...) o Sr. Sampaio, que do actual Governo alcançou já uma recomendação oficial para o nosso corpo consular do Brasil a favor da distribuição dos livros de alguém a quem ele desejava servir (...). Finalmente, não menos ladrão será (...) o Sr. Sampaio para com todas aquelas pessoas que por deferência para com os seus rogos (...) lhe tomam assinaturas para o jornal que redige. (...) Pode ser que isto seja em mim grande imoralidade, mas muito maior do que a minha é certamente a do Sr. Sampaio, que escritor assalariado (se verdadeira é a fama de que o seu jornal é com efeito prestacionado pelo Governo), tem forçosamente de defender não as suas próprias opiniões e doutrinas, mas as opiniões e doutrinas de quem lhe paga. Tem portanto de acusar (...) todas as vezes que assim lho ordenar quem lhe mete nas mãos o dinheiro.

Observa-se, pelas palavras de Luz Soriano atrás reproduzidas, que no século XIX a troca de favores entre os poderosos era comum e que o próprio Sampaio a terá praticado – inclusivamente para garantir a viabilidade do Revolução de Setembro e a sua própria prosperidade. Para além disso, e repetindo uma acusação comum[2], e algo exagerada, para Luz Soriano um jornalista pago seria um jornalista vendido.

António Rodrigues Sampaio terá mesmo solicitado favores em benefício de alguns dos seus antigos adversários, conforme, por exemplo, revela, imprudentemente, Francisco da Silva Figueira (1882, p. 19), que, ao querer elogiá-lo pelo seu carácter, conta a seguinte história:

Desavieram-se ele e outro colega de redacção e, em jornais diversos, passaram a digladiar-se sem piedade. O amigo, tornado adversário, foi par, e passados bastantes anos precisou da protecção de Sampaio, então ministro, para um filho ser bem sucedido em uma sua pretensão. Não se atrevendo a procurar o ministro (...), encarregou disso um amigo de ambos. Sampaio estranhou que o não procurasse directamente, e com confiança, o antigo amigo. Veio, abraçaram-se com a efusão sincera de amigos (...) e o requerente foi completamente satisfeito na sua pretensão.

Apesar das vantagens “de classe” de que beneficiava, Sampaio, crente católico, condoía-se com as desigualdades sociais e apregoava uma maior igualdade, como prova o seguinte excerto de um dos seus artigos:

Será possível que a desigualdade política seja uma condição humana e social inevitável e imprescritível? Será possível que o destino da humanidade seja diverso nos diferentes indivíduos e que a lei providencial criasse uns para a obediência perpétua e outros para o império indisputável? Será o fatum a lei dos homens livres, a miséria a sorte de uns, a opulência a herança dos outros e inviáveis os esforços da humanidade para estabelecer o reinado da igualdade?

Não é possível. Cristo, chamando irmãos aos seus discípulos, não proferia uma mentira social; os apóstolos, anunciando o Evangelho, não pregavam a utopia.

Sabemos que a desigualdade existe e tem existido; reconhecemos a sua dolorosa existência; admitimos só até certo ponto a sua legitimidade mas contestamos-lhe o direito de continuar a existir e sustentamos que o que numa época pode ser legítimo, chega tempo em que a sua legitimidade pode cessar. (Revolução de Setembro, 6 de Setembro de 1851)

Apesar da crítica também contundente dos seus adversários, em 1852, António Rodrigues Sampaio, aburguesado e crescentemente reputado, tornou-se grão-mestre da Confederação Maçónica e fundou o Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas, de que se tornou presidente, conforme revela a seguinte notícia:

A mesa desta associação participa a todos os seus associados que pelos indispensáveis arranjos, não só mobiliários, como no edifício do palácio da rua dos Mouros, onde vai estabelecer as suas sessões, as suspende por alguns dias, até as poder fazer no seu próprio edifício.

Por esta ocasião participa aos mesmos associados que as comissões da instrução popular, da confecção do jornal e da organização dos misteres estão trabalhando activamente nas tarefas de que foram encarregadas; que no próximo mês se abrirão os cursos professados pelos senhores lentes e demais cavalheiros que a isto se prestaram, assim como se abrirá a aula de leitura repentina para a qual desde já se procede à inscrição.

A mesa, em vista disto, faz sentir (...) a necessidade de elevar o número de associados; pedindo-lhes que empregando o seu reconhecido zelo civilizador, hajam de recrutar o maior número de indivíduos que de bom grado se prestarão a tal, atenta a modicidade da quota, que apenas é de 40 réis mensais.

Lisboa, 18 de Dezembro de 1852

António Rodrigues Sampaio, presidente.

Francisco Vieira da Silva, Júnior, vice-presidente.

João António Migueis, 1.º secretário.

Valentim José da Silveira Lopes, 2.º secretário.

António Joaquim de Oliveira, 1.º vice-secretário.

Carlos Augusto Pinto Ferreira, 2.º vice-secretário.

(A Revolução de Setembro, 21 de Dezembro de 1852)

Em 1859, Sampaio foi nomeado conselheiro do Tribunal de Contas, tendo, mais tarde, exercido interinamente a presidência deste órgão.

Após a normalização da situação política, criaram-se, novamente, condições para o florescimento dos jornais, até porque, entre 1851 e 1866, se desmantelou o edifício legislativo que condicionava a liberdade de imprensa[3]. Esse período de acalmia e estabilidade política, de relativa paz social e de rotativismo na governação impulsionou o crescimento económico, baseado na industrialização e numa revolução nos transportes, graças, principalmente, à acção de Fontes Pereira de Melo, como ministro e chefe do Governo (fontismo).

Abraçando a política, Rodrigues Sampaio prosseguiu a sua intermitente carreira parlamentar (não foi eleito para todas as legislaturas) a par da jornalística, quer no Revolução de Setembro, quer, episodicamente, noutras publicações, como os Almanaques Democráticos de 1852 e 1853, no semanário A Federação e, eventualmente, no Jornal do Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas[4], associação a que presidia desde 1852.

Conta Brito Aranha (1907, p. 92) que, em 1866, Joaquim António de Aguiar quis nomear Sampaio como ministro para o Governo que tentava formar, mas o Rei opôs-se, relembrado dos tempos revolucionários de Sampaio e das críticas que este dirigira à Rainha, sua mãe. Tendo sabido da ocorrência, Sampaio escreveu a Joaquim António de Aguiar uma carta, amplamente publicitada, na qual, ironicamente, dizia: “A Pátria não perde nada e eu lucro. V. Ex.ª matava-me politicamente fazendo-me ministro. Sua Majestade salvou-me fazendo crer a todos que eu era incapaz de o ser.” Essa carta, de resto, foi publicada postumamente, no Revolução de Setembro, a 17 de Setembro de 1882.

Em 1867, Sampaio fez uma viagem pela Europa[5] (BRITO ARANHA, 1907, p. 82). O seu jornal, A Revolução de Setembro, noticiou a sua partida para Vichy, França, a 2 de Agosto desse ano:

Partida – Partiu hoje para Vichy, onde vai fazer uso das águas termais na localidade, o Sr. conselheiro António Rodrigues Sampaio. No mesmo comboio partiram para Paris os Srs. Joaquim Pinto de Magalhães, Silveira da Mota e Santos Silva, deputados da nação. (A Revolução de Setembro, 2 de Agosto de 1867).

Durante a sua ausência, Sampaio foi acusado de, no jornal Espectro, ter lançado boatos contra a Rainha, D. Maria II. Uma vez que ele não se encontrava no País, A Revolução de Setembro saiu em sua defesa, publicando um conjunto de três textos significativamente intitulados Éditos de Três Dias Contra os Caluniadores de A. R. Sampaio (13, 14 e 15 de Setembro de 1867) e um editorial (dia 19) contra os que o atacavam. A 22 de Setembro, Rodrigues Sampaio agradeceu publicamente o gesto, em carta enviada ao periódico. Tanto quanto foi possível apurar, esse texto foi o último assinado por Sampaio no Revolução de Setembro, do qual já não era, sequer, o editor responsável, desde 15 de Janeiro de 1860[6]:

Amigos e Colegas:

Aqui estou de novo no meu posto que o melindre da minha saúde me obrigou a desamparar por algum tempo. Não perdeu por isso a causa pública, nem os bons princípios, porque o lábaro da liberdade, progresso e tolerância foi por vós galhardamente sustentado e o seu programa amplamente desenvolvido. Assumo a responsabilidade da vossa escrita como se fosse a minha própria. Sujeito-me a que me considerem solidário convosco como tenho ouvido, silencioso, as arguições que me fazem, proposições que não foram escritas por mim, e que foram proferidas por outrem, mas cujo pensamento eu adopto, desprezando a interpretação malévola que espíritos pequenos lhe atribuem.

Agradeço-vos a defesa que tomastes do meu pobre Espectro, desse filho querido do amor e da desventura – amor pela liberdade que cria ultrajada, desventura pela guerra fratricida que enervava as forças vitais do País; filho que amo tanto mais quanto maior é a força da calúnia e da inveja que o persegue, cuja paternidade reconheci no momento crítico em que as paixões políticas estavam acesas, e em que esse reconhecimento podia ser pretexto para a perseguição.

Se me criou incompatibilidades essa confissão dos meus actos, aceito-as ainda como galardão. Mais uma razão de amor e estima. É a posição que mais me agrada, me honra e nobilita a meus olhos. Se convém que um homem morra pelo povo, ofereço-me para vítima. Os invejosos são os que me salvam. Triunfe a boa causa, embora sofra quem concorreu para o seu sucesso.

Dissestes, e dissestes bem, que os que hoje injuriam o Espectro são os que então o glorificaram. Podíeis acrescentar, e não ireis além da verdade, que os que hoje o argúem de severo e pouco respeitoso, o arguiam então de inconveniente por haver reconhecido altas virtudes domésticas e particulares no Primeiro Magistrado da Nação, justificação que os cobardes julgavam, então, prejudicar a causa do Povo, como se uma causa nobre e generosa carecesse de caluniar os contrários para estabelecer o império da lei e da justiça.

Podíeis acrescentar ainda que numa guerra de muitos anos em que o partido popular empregou todas as armas desde os meios legais até o de insurreição contra o partido conservador, guerra em que o redactor do Espectro ocupava o lugar que o seu partido lhe destinara, nunca os seus nobres adversários daquela época, a quem ele não deixou jamais uma hora de repouso, extraíram dos seus escritos, truncando-os, as apreciações caluniosas que os imbecis não fizeram na hora do perigo, e que depois de se aproveitarem do auxílio que recebiam, colhendo as legítimas consequências, vêm hoje delatar sem renunciarem aos proventos, julgando que o podem prejudicar, quem por eles mais combateu e pugnou. Bem seguro está o Trono com os foliões que o atacavam e caluniavam nas horas de angústia, e que agora, quando todos o respeitam, vêm denunciar os que, se houvesse crime na luta, não seriam senão seus cúmplices. Mercenários vis que folgavam então com a guerra que os podia elevar, e que vituperam hoje para armar à paga das suas novas calúnias.

Não me envergonho do evangelho, e tenho compaixão dos falsos populares que caluniam os seus antigos correligionários como caluniavam então aqueles a quem faziam a guerra, denunciantes do perigo depois que ele passou de todo, preparando-se para o espólio da Monarquia quando não a julgavam segura!

Não temam tanto os adversários do gabinete um homem, que só parece grande porque os seus invejosos adversários são muito pequenos.

Recebei, pois, colegas e amigos, os meus agradecimentos, e a confissão da minha sincera estima e gratidão.

A. R. Sampaio

(A Revolução de Setembro, 22 de Setembro de 1867)

Em 1870, António Rodrigues Sampaio recorreu, com outros companheiros, ao seu antigo adversário, Costa Cabral, retirado em Tomar, para este ir dirigir a legação portuguesa junto da Santa Sé, prova do valor político que, apesar de tudo, os seus adversários reconheciam ao antigo chefe do Governo. A Revolução de Setembro, que tanto tinha combatido Costa Cabral nos tempos em que este chefiava o Executivo, noticiou a partida do conde em tom neutro. O que já lá ia, ia.

Partida – Parte amanhã para Roma o novo embaixador português, o Sr. Conde de Tomar. (A Revolução de Setembro, 7 de Julho de 1870)

Nesse mesmo ano, Rodrigues Sampaio foi eleito presidente da Câmara dos Deputados, na sessão de 30 de Abril:

CÂMARA DOS SRS. DEPUTADOS

Sessão em 30 de Abril de 1870

(Presidência do Sr. António Rodrigues Sampaio)

Abertura à 1 hora da tarde. (…)

(A Revolução de Setembro, 1 de Maio de 1870)

É de dizer, no entanto, que a 2 de Maio de 1867, na secção Cortes do jornal A Revolução de Setembro, se refere que a Câmara dos Deputados é já presidida, de novo, por Palmeiro Pinto. A eleição de Sampaio foi, portanto, ocasional – possivelmente por ele ser o deputado decano.

A 19 de Maio de 1870, deu-se mais um golpe de Estado promovido por aquele que tinha sido o inimigo eleito de Sampaio durante a Patuleia – o marechal duque de Saldanha, o mesmo que também tinha derrubado Costa Cabral. O facto foi noticiado durante vários dias, em Maio de 1870, no Revolução de Setembro, sendo descrito como um acto que poderia trazer consequências negativas para a crise política por que passava, naquela altura, o País. Os actos oficiais de nomeação também foram publicados:

Houve uma revolta militar. O Rei ou se entregou a ela ou foi coagido por ela, o Gabinete foi demitido e a insubordinação triunfou. Este é o facto, bom ou mau, funesto ou auspicioso que foi anunciado de madrugada com salvas e girândolas à população da capital. (Revolução de Setembro, 20 de Maio de 1870)

Os trabalhos parlamentares cessaram pela ausência do Governo. O marechal duque de Saldanha ainda não formou gabinete. As duas Câmaras não podem deliberar na sua ausência. Falou-se hoje na electiva nos acontecimentos que surpreenderam a capital. Escusado é dizer que ninguém os louva nem os pode louvar; mas todos concordam em que a crítica já nada remedeia. (Revolução de Setembro, 21 de Maio de 1870)

Não temos Ministério ainda organizado, e o marechal Saldanha acha-se encarregado de todas as pastas. Isto só revela que são graves as nossas circunstâncias, e arriscada a crise porque passamos. Foi um grande mal a revolta, e as dificuldades surgem depois dela realçada. A indisciplina desmoraliza, e não edifica. Tomou-se o paço da Ajuda, tomar-se-iam posições mais arriscadas, e pouca glória daí haveria para o experimentado e valoroso marechal[7] quando tivesse de vencer somente os inimigos que se lhe opunham. (Revolução de Setembro, 22 de Maio de 1870)

Atendendo ao merecimento e mais partes que concorrem na pessoa de António Rodrigues Sampaio, do meu conselho, deputado da Nação portuguesa e conselheiro do Tribunal de Contas: hei por bem nomeá-lo ministro e secretário do Estado dos Negócios do Reino.

O presidente do Conselho de Ministros assim o tenha entendido e faça executar. Paço da Ajuda, em 26 de Maio de 1870. – Rei. – Duque de Saldanha.

Atendendo ao que me representou o duque de Saldanha, presidente do Conselho de Ministros, ministro e secretário de Estado dos Negócios da Guerra e interino dos Negócios Estrangeiros: hei por bem conceder-lhe a exoneração dos cargos de ministro e secretário de Estado interino dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça, da Fazenda, da Marinha e Ultramar, e das Obras Públicas, Comércio e Indústria, para que havia sido nomeado por decreto de 20 do corrente.

O ministro e secretário de Estado dos Negócios do Reino assim o tenha entendido e faça executar. Paço da Ajuda, em 26 de Maio de 1870. – Rei. – António Rodrigues Sampaio. (A Revolução de Setembro, 28 de Maio de 1870)

Paradoxal mas efectivamente, foi Saldanha que abriu as portas do Governo, pela primeira vez, a António Rodrigues Sampaio, com o cargo de ministro do Reino, equivalente, hoje, ao de ministro da Administração Interna (ou do Interior), conforme publica o Revolução de Setembro, a 26 de Maio de 1870:

Está organizado o Ministério do seguinte modo:

Presidente do Conselho, ministro da Guerra e interino dos Estrangeiros – duque de Saldanha

Reino – António Rodrigues Sampaio.

Fazenda e interino da Justiça – José Dias Ferreira.

Obras Públicas – Marquês da Angeja.

Marinha e Ultramar – D. António da Costa. (Revolução de Setembro, 26 de Maio de 1870)

Porém, Sampaio apenas se manteve em funções por doze dias. Abdicou delas em ruptura com o marechal, que quereria governar sozinho e autoritariamente, atrasando, tanto quanto possível, a convocação de eleições. Francisco da Silva Figueira (1882, p. 17) assegura que Sampaio se demitiu porque “não devia governar em ditadura quem fora o mais valente atleta a liberdade”. E na verdade, a 10 de Junho de 1870, o artigo de fundo do Revolução de Setembro denuncia a ditadura saldanhista:

Desadoramos a ditadura porque é a supressão do regime constitucional, porque é a proclamação do poder despótico, porque é a desautorização das Cortes, e porque é a vingança da fraqueza contra a vontade soberana da Nação. (…) Estamos neste caso? Não. (…) A aparência do bem também ilude. O nobre marechal Saldanha podia julgar inconstitucional e violento o Governo sem o ser, podia quebrar a disciplina julgando que salvava a Pátria e não seria esta a única ilusão da sua vida, mas conseguindo o seu fim, se a sua resolução era sincera, devia entrar no caminho constitucional para justificar o seu cometimento, para que pudesse dizer que viera restabelecer a lei e não infringi-la, e para mostrar que quem derriba um Governo por anticonstitucional não o faz para satisfazer ambições e ser ainda mais anticonstitucional do que o Gabinete a que sucedera. (revolução de Setembro, 10 de Junho de 1870)

António Rodrigues Sampaio foi novamente eleito deputado nas eleições de 1870 e 1871, com o prestígio reforçado pela sua oposição aos propósitos autocráticos do marechal Saldanha. Em 1871, foi, então, pela segunda vez, chamado ao Governo, desta vez liderado por Fontes Pereira de Melo. Voltou a ocupar-se do Ministério do Reino, que ocupou até 1877. O seu maior envolvimento na política teve por efeito uma visível diminuição da sua actividade jornalística.

A 13 de Setembro de 1871, o Revolução de Setembro anunciava, em notícia de última hora, a constituição do Governo fontista do qual Sampaio fez parte, logo abaixo do editorial, onde se escrevia o seguinte:

Não se constituiu o gabinete tão depressa como se imaginava. Os que inventaram o expediente de ter sido uma combinação do Ministério demissionário o chamamento do Sr. Fontes devem ficar convencidos de que se assim fosse poucas horas depois da demissão de um apareceria a nomeação do outro. Não se costuma preparar para suceder no poder quem apoia lealmente o Governo.

Última Hora

Acha-se formado o Ministério do seguinte modo:

Presidente do Conselho, Fazenda, e interinamente Guerra – António Maria de Fontes Pereira de Melo

Reino – A. R. Sampaio.

Justiça – Augusto César Barjona de Freitas

Estrangeiros – João de Andrade Corvo

Obras públicas – António Cardoso Avelino

Marinha e ultramar – Jaime Constantino de Freitas Moniz

Como ministro do Reino, Sampaio dedicou-se, por exemplo, ao reforço do mutualismo – o que lhe valeu, inclusivamente, a presidência honorária do Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas. Porém, conforme narram Ramalho Ortigão e Eça de Queirós nas Farpas de Setembro de 1871, logo nesse ano Sampaio terá pedido ao vice-presidente do Centro, onde se debatia o republicanismo, o internacionalismo e outras doutrinas incómodas para o poder, para que o organismo “não continuasse em discussões que nem estavam na permissão dos estatutos nem na sua dignidade de corporação”. Por isso, os membros retiraram o retrato de Sampaio da parede. Contam os autores, cheios de comicidade:

O Centro julgou-se tiranizado e protestou. Como? Fazendo um arranjo na sua sala. O retrato do Sr. A. R. Sampaio que estava na parede – está agora num armário. Oh grandes homens do Centro. Vós quisestes fazer uma alta justiça social. E o que fizestes? Uma alteração na mobília! Pretendíeis significar por esse facto que éreis os homens da dignidade austera, e todo o mundo vê que sois simplesmente os admiradores das paredes lisas. Dizei cá! A advertência do Sr. Sampaio, ministro, foi ou não opressiva do vosso direito? Não? Então, que homens sois vós que gratuitamente, caprichosamente, dais a desautorização a quem vos deu a associação? Foi opressiva? Então que homens sois vós que, por todo o desafogo do vosso direito violado, do vosso pensamento reprimido – não tendes mais iniciativa do que a de um criado tonto! A vossa justiça indigna-se – despregando pregos! (...) Ah! A vossa maneira de protestar é cómoda para os homens – mas terrível para a mobília!

De qualquer modo, no Governo – e porque uma coisa é verbalizar e outra é fazer ou poder fazer, Rodrigues Sampaio não pôde concretizar a maioria das coisas por que sempre se bateu enquanto jornalista, o que lhe valeu a crítica feroz dos seus antigos correligionários mais exaltados, que o acusavam de trair os seus ideais, e dos conservadores, que não cessavam de lhe recordar não só que tinha pertencido à Comissão Revolucionária de Lisboa durante a Patuleia mas também os ataques à Coroa e à Chefe de Estado, D. Maria II, que desferiu no Eco de Santarém e no Espectro[8]. Essa contradição, a falta de etiqueta que sempre exibiu e o facto de se ter amancebado com uma freira após enviuvar, aos 38 anos, tornaram-no, inclusivamente, um dos alvos preferidos dos caricaturistas de então, nomeadamente de Rafael Bordalo Pinheiro. O seu temível adversário Luz Soriano (1854, p. 17-18), por exemplo, para além de o acusar de ter sido seduzido pelo dinheiro, vendendo a sua opinião a quem lhe pagava, escreve:

E repare-se bem que era este o exímio escritor, este o famoso apóstolo, que sem nada de ascético ter na fisionomia, e no ventre, tão severo nos pregava (com a pena, que não com o exemplo) (...). É que a moral do Sr. Sampaio é de funil, larga para os seus e estreita para os seus contrários. É que a barriga de Sua Ex.ª é grande e ele não a quer encher com as três aves da igreja ao meio-dia (...). E quer este fariseu (...) que eu o tome por mentor e que por ele regule as minhas acções e a minha política! Ser perverso e querer que os demais o sejam é o cúmulo da perversidade. (...)

Não se esqueça pois ninguém que era este Sr. Sampaio o que indo buscar (...) as mais exaltadas teorias republicanas (...), autor de periódicos clandestinos, vomitava no público (...) calúnias (...) contra a falecida Rainha D. Maria II (...), torpissimamente (...) coberta (...) de impropérios por este mesmo homem, que não se pejou de lhe assacar crimes no mais recôndito da sua vida privada (...) nessa (...) Revolução de Setembro, pelourinho da (...) infâmia (...).

Membro influente da actual Câmara electiva, (...) a Monarquia é hoje para ele o melhor dos governos possíveis, e por modo tal que já hoje os soalhos das régias salas gemem sobre o enorme peso deste grande colosso (...).

A crítica de Luz Soriano é, de certa forma, pertinente, até porque Rodrigues Sampaio, em 1871, na qualidade de ministro, lutou pela proibição das Conferências do Casino Lisbonense[9] (NEIVA SOARES, 2006, p. 73), pretensamente por colocarem em causa dogmas da religião e do Estado. Foi mais uma das contradições da sua vida: um dos homens que mais se bateu pela liberdade foi também um dos que não hesitou em censurar o debate, em Portugal, das novas ideias que agitavam a Europa. Inclusivamente, como contam Eça de Queirós e Ramalho Ortigão nas Farpas de Janeiro de 1872, pouco tempo depois de ser empossado do cargo de ministro dos Negócios do Reino, logo promulgou uma portaria que impedia as críticas e exames ao hospital de São José. Eis como Eça relembra, sarcasticamente, o episódio, também recolhido na sua colectânea de “farpas” Uma Campanha Alegre:

Tínhamos já coordenado uma página tendente a mostrar que a portaria que impunha ao Sr. Alves Branco um silêncio, tão anti-higiénico, sobre o hospital de São José, era uma portaria que de longe se parecia com uma torpeza, mas que, vista de perto, e mais à luz, positivamente se reconhecia que era um crime!

Os jornais oficiais acodem porém a declarar que o Sr. ministro assinou a portaria sem a ler. E exaltam a sua dedicação em aceitar a responsabilidade pública daquela distracção burocrática!

É realmente louvável que o Sr. ministro sustente, por dignidade, o que assinou por surpresa. Mas seria mais louvável que castigasse a surpresa para desafrontar a dignidade! Porque o introduzir subrepticiamente, sob a pena ministerial que vai correndo, papéis obscenos, é uma acção cuja índole se parece singularmente com aquela outra tão conhecida nos tribunais – que consiste em meter sub-repticiamente a mão na algibeira de um semelhante e privá-lo dos seus valores. Roubar uma assinatura oficial para legalizar uma acção particular – não difere inteiramente de roubar uma bolsa alheia para saciar um vício próprio.

Mas houve realmente distracção ministerial?

Antes queremos acreditar que o Sr. ministro ordenou que se redigisse uma portaria no sentido inteiramente justo de fazer uma inspecção ao hospital, e que os senhores empregados se equivocaram a ponto de a redigir – no sentido de proibir toda a crítica e exame do hospital. Tal se nos afigura este caso imundo.

No entanto, parece-nos que, se não der alguma atenção mais aos papéis escritos que lhe passam pela pena, o Sr. ministro arrisca a empalidecer de surpresa diante de todos os números do Diário do Governo. Estando as secretarias, como é notório, povoadas de vales líricos e outras espécies sentimentais não menos torpes, é possível, oh Deus, que se leiam ainda estas linhas, para sempre infamantes:

Pela presente portaria fica determinado:

«Que não fujam, não findem os dias

Que eu ditoso prelibo a teu lado,

Nunca soe o momento fadado,

Em que eu deva deixar-te e partir...

Secretaria dos Negócios do Reino

O ministro

António Rodrigues Sampaio

Enquanto à portaria em si própria, todo o seu castigo está num facto: declara-se oficialmente que ela foi introduzida enganosamente à assinatura do ministro!

O próprio Revolução de Setembro apresenta o facto com alguma independência:

Foi hoje discutida largamente a interpelação feita ao senhor ministro do Reino acerca do negócio do hospital de S. José, e a oposição pôde, como é fácil em assuntos desta ordem, fazer ressoar em todos os cantos da sala as grandes palavras, as apóstrofes arrojadas, e as declamações impetuosas. Infelizmente, esgrimiam contra um fantasma que a sua fecunda imaginação criara, logo que o senhor ministro do Reino e o senhor ministro dos Negócios Estrangeiros, interpretando o pensamento do Governo, pensamento que se traduziu em factos, tiraram à portaria censurada todo o seu carácter odioso.

Não aprovamos a portaria. O modo como está redigida dá campo largo às interpretações liberais, e é incontestável que os considerandos parecem indicar que o senhor Alves Branco foi admoestado por ter analisado livremente no Correio Medico a organização do hospital de São José. Como muito bem diz o nosso colega do Jornal da Noite, é necessário que desapareçam do estilo burocrático estas velhas fórmulas autoritárias, que estão em manifesta contradição com o pensamento do ministro. (Revolução de Setembro, 8 de Fevereiro de 1872)

Noutro acto paradoxal, também em 1872, o ministro António Rodrigues Sampaio promulgou uma outra portaria que impedia que aos jornais fossem comunicadas as atribuições de mercês honoríficas pelo Rei, que se faziam sob proposta do Governo, obviamente para evitar as críticas da imprensa. Mais uma vez, Ramalho Ortigão e Eça de Queirós comentam o assunto, nas Farpas de Setembro a Outubro desse ano:

O Sr. ministro do Reino acaba de praticar (...) um acto deliberativo que ficará na história (...). O Sr. ministro proibiu que pela sua secretaria se comunicasse aos jornais notícia das mercês honoríficas.

O Sr. ministro, vedando por este modo a publicidade da mercê honorífica, coloca tacitamente a mercê honorífica na categoria de ofensa à moral e do insulto ao pudor.

Doravante, o decreto de honras e mercês passará a ser secreto como o acto vergonhoso.

Quando o Sr. ministro sentir a necessidade urgente de fazer um comendador, S. Ex.ª pedirá licença aos circunstantes, recolher-se-á num pequeno quarto escuro, fechará a porta por dentro, e mudo, recolhido, aferroado, expelirá a comenda.

Apesar de tudo, Eça e Ramalho também sabiam defender Sampaio quando o viam como injustiçado:

O Sr. António Rodrigues Sampaio, oferecendo à Câmara, do seu lugar de ministro da Coroa, um volume do Espectro, disse que “se honrava mais de ter feito aquele livro do que de sentar-se naquele lugar, e que se a Câmara achasse as duas coisas incompatíveis, ele abandonaria a sua pasta para ir adoptar o seu livro.

O Sr. Sampaio, actual ministro do Reino, tem sido ultimamente muito mais agredido na Câmara e na imprensa pelo seu antigo denodo de democrata e pela sua verve de panfletário do que pelos seus erros e desmandos de membro do actual Gabinete. É fácil a guerra que se faz a um escritor no momento traiçoeiro em que ele não dispõe nem da sua liberdade nem da sua pena para as represálias terríveis do talento injuriado. Não há nada mais cómodo para as pessoas fracas ou ineptas do que acharem oportunidade de poderem determinar como um crime a iniciativa dos fortes. A incapacidade coloca-se, assim, na lógica que leva a considerá-la – pelos efeitos passivos da sua inanidade – como uma espécie de virtude. O processo daquele que por uma causa qualquer – boa ou má, justa ou iníqua – arriscou a sua vida em cima de uma barricada, não pode todavia ser instaurado assim, pelas toupeiras que estavam inúteis e trémulas no fundo dos seus buracos, enquanto o acusado, combatendo, fazia estremecer o chão.

Ele injuriou a Rainha? Pois seja assim. Injuriar uma Rainha quando ela tem na sua máxima força o poder e o mando, quando ela tem a ordem guardada pelas baionetas dos seus regimentos em armas, injuriá-la num papel público, quando na praça pública estão carregadas as espingardas que cobriram a “lei das rolhas”, injuriar, então, era servir uma ideia, era fazer uma resistência, era cumprir um sacrifício.

(...)

A publicidade é como a lança de Télepho que sarava as mesmas feridas que fazia.

(...)

Preferir a paternidade de um panfleto escrito com o desinteresse da paixão e do talento à triste glória burguesa e constitucional de ministro português é ter um sentimento elevado e é dar um exemplo justo. Porque, em verdade, ser apenas um ministro – único estado social que nos dispensa de sermos alguma outra coisa – não é propriamente um destino. Para que uma existência actue assinaladamente nas relações dos homens e marque o sinal da sua passagem é preciso que ela se afirme eminentemente ou na justiça ou no sentimento ou na arte – pela coragem, pelo sacrifício ou pelo talento – que são as três máximas constelações do trabalho, constituindo a família, a obra ou o combate.

Aquele que fez um livro, em que se debateram todas as ideias e todos os interesses do seu tempo e da sua sociedade, movendo os espíritos, inclinando as vontades, influindo nas consciências, esse é o homem que viveu.

Ter gerido uma pasta no constitucionalismo português é unicamente ter passado no mundo.

(As Farpas, Janeiro-Fevereiro de 1873)

Em 1878, ano em que ganhou assento na Câmara Alta do Parlamento com a dignidade de par do Reino, Rodrigues Sampaio foi novamente empossado do cargo de ministro, em novo Governo de Fontes Pereira de Melo, mantendo a tutela do Interior. Iniciava-se a segunda fase do Rotativismo, depois de um decénio de instabilidade política. No Revolução de Setembro, prometia-se aos portugueses um período de prosperidade, sob a liderança de um novo Governo regenerador:

Está resolvida a crise.

Caiu o Ministério. Esse agrupamento de homens de boas intenções, presidido por um estadista carregado de anos e de serviços, mas impossibilitado de se erguer à altura das exigências da actualidade; esse agrupamento de homens, impelido para o abismo pelo espírito pequeno, vingativo, perseguidor, misérrimo, de um louco, posto traiçoeiramente ao serviço de um bando de ambiciosos; esse agrupamento de homens, sem prestígio solidário, sem partido, sem adesões, sem grandeza de intuitos, que há onze meses geria os negócios do País, deixou de existir na vida política (…). Apresentado ao poder moderador o conflito eloquentíssimo, havido entre o Parlamento e o Gabinete, resolveu ele, no uso da sua prerrogativa, conceder a demissão aos ministros e encarregar o ilustre chefe do Partido Regenerador, o Sr. conselheiro Fontes Pereira de Melo, da nova combinação ministerial. (Revolução de Setembro, 29 de Janeiro de 1878)

Está definitivamente constituído o novo Gabinete, sob a presidência do Sr. Fontes Pereira de Melo, que ficou também com a pasta da Guerra, sendo ministro do Reino o Sr. Sampaio, da Justiça o Sr. Barjona de Freitas, da Fazenda o Sr. Serpa, dos Estrangeiros o Sr. Andrade Corvo, da Marinha o Sr. Tomás Ribeiro, e das Obras Públicas o Sr. Lourenço de Carvalho. Representa o novo Ministério a experiência, o saber, a prudência e os bons e sãos princípios liberais; tem as glórias do passado e as promessas do futuro; ao nome da maior parte dos cavalheiros que o constituem está ligada a iniciativa e a realização dos grandes cometimentos de progresso moral e material, e o ministro que pela primeira vez é chamado aos conselhos da Coroa é um peregrino talento, de que muito há a esperar. (…) O País estacionado há meses, e sobressaltado pela solução da crise, vai de novo entrar na sua vida normal e caminhar seguro na senda do progresso! (Revolução de Setembro, 30 de Janeiro de 1878)

O principal feito de António Rodrigues Sampaio na sua nova passagem pelo Governo foi a aprovação de um novo Código Administrativo, que constituiu, embora com alterações, a base do direito administrativo português até à reforma de 1935. Nesse mesmo ano de 1878, um decreto, redigido em termos extraordinariamente elogiosos por António Rodrigues Sampaio, elevou à categoria de marquês o conde de Tomar, Costa Cabral, seu histórico e figadal adversário. Assim, a 16 de Julho de 1878, o Revolução de Setembro traz no artigo de fundo uma referência ao acontecimento, justificando o acto como um ponto final no ódio entre os dois adversários:

Os patriotas repuxados que sempre comeram, que nunca fizeram sacrifícios pela liberdade, mas que lidaram sempre por lamber o mel da colmeia social, fingem estranhar que o ministro do Reino actual referendasse o decreto que elevou a marquês o senhor conde de Tomar. (…) Queríeis que os ódios fossem eternos? Não o conseguireis. (Revolução de Setembro, 16 de Julho de 1878)

Em 1879, o Governo caiu e Rodrigues Sampaio abandonou o Ministério do Reino, prosseguindo apenas a sua actividade na Câmara Alta do Parlamento. O artigo de fundo de 31 de Maio de 1879 do Revolução de Setembro dá conta da queda do governo fontista:

O Ministério resignou o poder nas mãos de El-Rei. Deu motivo a esta resolução o facto de haver o ilustre ministro da Fazenda declarado em sessão do Conselho de Ministros que não podia continuar na gerência da pasta a seu cargo. (…) Nesta conjuntura, resolveu o Sr. Fontes apresentar a demissão do Gabinete, que foi aceite pelo poder moderador, sendo chamados ao paço os presidentes das duas Casas do Parlamento. (Revolução de Setembro, 31 de Maio de 1879)

Logo no dia a seguir, 1 de Junho de 1879, o Revolução de Setembro revela a substituição do governo fontista por um Governo do Partido Progressista, liderado por Anselmo José Braamcamp:

A política de hoje continua a representar-se por um ponto de interrogação. Já há Ministério? perguntam todos. Quem são os ministros? Como serão distribuídas as pastas? (…) Parece que o Sr. Anselmo Braamcamp conta por agora apenas com o Sr. Luciano de Castro (…). (Revolução de Setembro, 1 de Junho de 1879)

Em 1880, as celebrações do tricentenário de Camões não deixaram de ser celebradas no Revolução de Setembro, aproveitando António Rodrigues Sampaio o ensejo de criticar o Governo progressista e de celebrar, nacionalista, a autonomia e a independência de Portugal, numa altura em que as teses da união ibérica estavam fortemente disseminadas entre as elites do País:

Vai finda a festa, que foi sobretudo notável pela compostura e boa ordem.

Todos a ela concorreram. Só o Ministério nela se não viu. Também a festa era da Nação e ele não é a Nação, era da opinião pública e ele não tem por si a opinião pública, nela havia lugar para os poderes do Estado, e o Ministério não é o poder, é a fraqueza no Estado.

Que iria fazer ali este Gabinete de que é membro quem proclamou não ter Portugal condições de vida autónoma e independente?

Camões foi a afirmação da nossa autonomia, foi o protesto contra a perda da nossa independência: o Ministério vexou-se de figurar na solene comemoração do grandioso herói da nossa história: e foi por isso que o Povo, saudando e aclamando todos, só não teve uma palavra de aplauso ou de simpatia para o Governo, múmia do poder, sombra do prestigio, fantasma da popularidade, morto amarrado ao próprio cadáver, por terrível expiação! (Revolução de Setembro, 12 de Junho de 1880)

Nesse mesmo ano de 1880, António Rodrigues Sampaio, envolvido nas comemorações do tricentenário da morte de Camões, foi eleito presidente honorário da Associação dos Jornalistas e Escritores Portugueses, grémio nacional de jornalistas[10], que se fundou na sequência dessa celebração. O jornal A Revolução de Setembro cobriu alguns dos primeiros actos da primeira organização portuguesa de jornalistas:

Teve efectivamente lugar na quinta-feira, 10, a fundação solene da Associação dos Jornalistas e Escritores Portugueses. Foi numa das salas da Sociedade de Geografia que teve lugar tão simpático e significativo acto. Às 10 horas da manhã do referido dia reuniram-se nas salas da já benemérita Sociedade uns duzentos jornalistas e escritores portugueses, os seis jornalistas madrilenos, a deputação dos de Badajoz, correspondentes de jornais ingleses, franceses, brasileiros, americanos, o representante da Agência Havas, o senhor Aubertin, o ilustre tradutor de Camões, vindo expressamente da Grécia a Lisboa para assistir ao centenário, etc. Isto diz um colega e prossegue: – “Na sala próxima estava a exposição camoniana com as publicações de homenagem, os quadros, os bustos, os relevos, as medalhas, as coroas dedicadas ao poeta. Assumiu a presidência da assembleia o jornalista decano, António Rodrigues Sampaio, sendo secretários, primeiro, o senhor Rodrigues Costa; segundo, Eduardo Coelho. Tinham-se distribuído na sala, a todos os concorrentes, exemplares impressos das bases da associação.

O presidente abriu a sessão congratulando-se com a imprensa pela honra que ia ter de inaugurar uma associação que tantas vantagens morais podia trazer à classe. Mandou ler as bases e propôs à assembleia uma manifestação de regozijo pela presença dos jornalistas e escritores estrangeiros, que nos davam tão subida prova de confraternidade. Leram-se diversos telegramas de felicitação à Associação dos Jornalistas e Escritores e assinou-se a acta da sessão, que previamente fora escrita, sendo encerrada a assembleia e recebendo o presidente e a mesa abraços e felicitações. Quando os escritores associados iam sair para se incorporarem no préstito cívico triunfal com os alunos das várias escolas de Lisboa, que nesse momento estavam em acto solene, fixando no pedestal da estátua a coroa de bronze, vieram estes em considerável número saudar com vivas entusiásticos a imprensa, a sua comissão executiva, os diversos membros desta, a liberdade, o progresso e a Pátria. Das janelas da casa da Sociedade de Geografia, lhes corresponderam alguns membros da comissão. Em seguida ao que foram todos saudar o monumento, onde foi colocada a coroa, que tem a seguinte legenda: A Camões – Os Estudantes em 1880. O presidente das escolas reunidas, o senhor Tavares, aluno da Escola Médica, proferiu um eloquente improviso. Novas vivas aos progressos da Pátria e da civilização, aos membros da comissão executiva, às classes académicas, à geração nova, etc., foram levantadas e todos se dirigiram pelo Chiado para a praça do Comércio, indo os académicos na frente. Ao entrar nas ruas da baixa foram saudadas as comissões populares dos festejos e a população e senhoras de Lisboa. (A Revolução de Setembro, 13 de Junho de 1880)

A Associação dos Jornalistas e Escritores Portugueses participa a todos os seus colegas que se acha definitivamente instalada e pede-lhes a sua adesão, quer na remessa dos jornais e publicações que dirigirem, quer na sua mesma inscrição como associados.

A Associação roga a máxima publicidade a este convite.

Casa da associação, Lisboa, 29 de Novembro de 1880, Praça do Monumento a Camões, 36, 1.º

A comissão directora:

M. Pinheiro Chagas

J. C. Rodrigues da Costa

Luciano Cordeiro

S. de Magalhães Lima

Tomás Sequeira

Alfredo Ribeiro

Eduardo Coelho. (A Revolução de Setembro, 10 de Dezembro de 1880)

A 23 de Março de 1881, o Governo progressista deixou a cena. Fontes Pereira de Melo não quis chefiar um novo governo. Coube essa tarefa a António Rodrigues Sampaio, que, já totalmente reconciliado com a Família Real, e cada vez mais pragmático e conservador, ocupou a presidência do Ministério (assim se chamava ao Governo) em acumulação com a pasta do Reino[11]. O artigo de fundo de 24 de Março de 1881 do Revolução de Setembro regista o acontecimento, num tom de perfeita normalidade democrática:

Como era já previsto ontem, caiu o Ministério, que ainda há pouco alardeava vitalidade e embalava em promessas de larga iniciativa aqueles a quem queria dissimular a aproximação do seu pensamento. Esta notícia foi recebida com verdadeiro júbilo pela capital, e seguramente o será por todo o país, onde o gabinete progressista se havia despopularizado totalmente. (…) À alegria da queda do Ministério acresce a de saber já que o honrado liberal António Rodrigues Sampaio teve a honra de ser por El-Rei encarregado de organizar a nova situação que há-de herdar o pesado encargo do poder. (Revolução de Setembro, 24 de Março de 1881)

Prossegue o Sr. Rodrigues Sampaio nos trabalhos preliminares para constituir Ministério, que conta se apresentará às Câmaras na sua próxima sessão de sábado. Recebendo este honroso encargo ontem à tarde, e tendo tido de conferenciar com diferentes homens notáveis dos diversos partidos, não cabia nas condições materiais do tempo a constituição definitiva do Gabinete a horas de se apresentar hoje mesmo às Cortes (…). (Revolução de Setembro, 25 de Março de 1881)

A chefia do Governo foi o ponto alto da vida pública de António Rodrigues Sampaio, tendo-se distinguido, nomeadamente, pela promulgação de uma importante lei de reforma da instrução primária. Porém, a 11 de Novembro desse mesmo ano, Sampaio foi substituído por Fontes Pereira de Melo, e o Revolução não deixou de o noticiar:

O novo Gabinete acha-se organizado da seguinte forma:

Fontes Pereira de Mello, presidente do Conselho e ministro da Fazenda, encarregado interinamente da pasta da Guerra. (Revolução de Setembro, 15 de Novembro de 1881)

Ainda em 1881, um antigo correligionário de Rodrigues Sampaio, o escritor António Duarte Gomes Leal, lançou, em livro, uma crítica feroz ao jornalista, redigida em verso, a última das que este receberia em vida. Foi causa directa do libelo a adopção de medidas de controlo da imprensa por parte do Governo de Rodrigues Sampaio, a despeito do que este sempre defendera como jornalista panfletário. Por um lado, o acesso às notícias de polícia, por exemplo, foi impedido por nova legislação publicada nesse mesmo ano, o que permitia à autoridade policial cometer arbitrariedades na investigação e repressão do crime[12]; por outro, os processos judiciais eram movidos à catadupa contra quem atacava o Governo ou o Rei, o que limitava os direitos cívicos dos processados, como aconteceu a Gomes Leal, impedido de concorrer a cargos políticos por causa de um processo judicial que se arrastava nos tribunais. Por isso, Gomes Leal (1881, p. 20) apelida Rodrigues Sampaio de “vendido”, “velho solitário (...), escória entre os velhos, refugo de traidor, (...) renegado hostil”. E recorda-lhe os tempos de panfletário em que se teria colocado ao lado dos “justos”, mas em que também teria caluniado a Rainha D. Maria II, a quem teria chamado “grande prostituta” (GOMES LEAL, 1881, p. 29), dando injusto eco às insinuações de que a Soberana seria amante de Costa Cabral. Foi esse tipo de ataques que levou, um dia, Sampaio (cit. in TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859, p. 90-91) a queixar-se a um amigo nos seguintes termos: “Se eu tivesse satisfeito todas as exigências de certos figurões, não teria respeitado Trono nem Altar (…), mas não o tendo feito (…) condenam-me (…). Queriam que eu derrubasse o poder para eles próprios subirem, impossibilitando-me eu próprio de o exercer.”

Coincidiu o lançamento do violento panfleto de Gomes Leal contra Rodrigues Sampaio com a demissão deste último da chefia do Governo e com a sua retirada da vida pública. Doente, acabou por falecer no dia 13 de Setembro de 1882, em Sintra, depois de, segundo a lenda, rever por uma última vez as provas tipográficas do Revolução de Setembro.

A voz mais enérgica e brilhante do jornalismo português emudeceu. As colunas deste jornal que foram a arena dos seus triunfos, e que serão, daqui em diante, a viva tradição do seu honrado nome e do seu notabilíssimo talento, ecoarão largo tempo as palavras incisivas, o conceito luminoso, as formas monumentais, em que se expandia aquele espírito superior. (…) A Revolução de Setembro sente as dores inexplicáveis da orfandade, porque António Rodrigues Sampaio era a personificação gigantesca do velho jornalismo português e era, simultaneamente, para a política, para a literatura, para a imprensa, em tudo e para tudo, a humanização, justamente glorificada, deste antigo jornal. (Revolução de Setembro, 14 de Setembro de 1882)

Sampaio foi inumado no cemitério dos Prazeres, em Lisboa. Na ocasião, correligionários e adversários uniram-se ao Povo, massivamente presente no funeral, numa homenagem derradeira a um dos homens que, apesar das suas contradições, mais fez pela implantação de uma democracia liberal e de um estado de Direito em Portugal. Eça e Ramalho, nas Farpas de Novembro-Dezembro de 1882, escreveram: “António Rodrigues Sampaio era um escritor de primeira ordem no meio de um jornalismo onde os escritores cada vez se vão tornando mais raros. Ele foi um dos artistas que mais gloriosamente serviu a sua Pátria escrevendo bem a sua língua, e foi, além disso, entre os homens públicos do seu tempo, aquele que mais altas e mais fortes qualidades de espírito, de coração e de carácter sacrificou às instituições vigentes.”

6.1 Acção jornalística de Sampaio no Revolução de Setembro (1851-1882)

Alguém com o perfil de António Rodrigues Sampaio dificilmente abandonaria a combatividade que o tinha tornado célebre e a profissão em que mais se tinha empenhado. Assim sendo, o redactor principal do Revolução de Setembro continuou, avidamente, a escrever, entre 1847 e o início da década de 60, sobre os múltiplos assuntos que o quotidiano lhe sugeria ou a política exigia. A partir do momento em que, quase continuamente, passou a exercer cargos governamentais (isto é, a partir de 1870), tanto quanto se pode percepcionar pela leitura do Revolução de Setembro, a intensidade da sua acção jornalística, que já se havia refreado no início da década de 60[13], terá abrandado significativamente, a ponto de se ter tornado residual – ou quase.

Como escrevia ele?

Em primeiro lugar, pode observar-se uma situação genérica. O jornalismo político vivia, como sempre viveu, de informação. Porém, nos textos de Sampaio, a informação é inevitavelmente enquadrada e interpretada. Normalmente, ele não escreve notícias puras. Quando dá informações – e dá-as amiúde – envolve-as quase sempre num embrulho retórico e emotivo, enquadrado semanticamente pela sua mundividência. Os factos são apresentados como sendo, antes de mais, factos políticos, no sentido de serem sujeitos a interpretação política e de terem conotações e consequências políticas. Eis um entre muitos exemplos:

A sessão de hoje na Câmara dos Deputados não ofereceu as vistosas peripécias e os diálogos animados que deram relevo parlamentar às hostilidades entre o Governo e o Banco de Portugal. A sessão de hoje foi mais modesta, mas não totalmente despida de curiosidade. Envolta com uma questão simplesmente administrativa, vieram, apesar da rigidez e austeridade regimental do presidente da Câmara, alguns debates importantes e preciosos comentários feitos pelo conde de Tomar à letra e ao espírito da Carta.

Tratava-se de um parecer da Comissão de Marinha, concedendo ao Governo uma plena autorização para criar um Conselho Ultramarino, de que dependam todos os futuros melhoramentos e reformas de que estão carecendo há tantos anos as desoladas e desditosas colónias portuguesas,

A criação do Conselho Ultramarino é uma das necessidades urgentes para essas colónias, se os ministros (...) quisessem que aqueles fertilíssimos territórios de além-mar sirvam para mais alguma coisa do que para ignóbeis presídios, ou para acomodar em sinecuras os apaniguados ministeriais, mandados às possessões ultramarinas a enriquecerem-se (...). (Revolução de Setembro, 18 de Janeiro de 1851)

Se bem que António Rodrigues Sampaio tenha combatido enérgica e corrosivamente, com o desassombramento que lhe era próprio, o segundo consulado de Costa Cabral, o tom da sua prosa mudou quando o país entrou na Regeneração. O seu discurso jornalístico tornou-se cada vez menos virulento e irónico, e às vezes até defensivo e justificador, à medida que o Revolução de Setembro começava a cumprir o papel de órgão oficioso do Partido Regenerador e era preciso defender o ponto de vista colectivo e as acções governamentais. Nessa altura, já são menos os vestígios do desregramento discursivo que exibia no passado, embora o seu discurso continue a ser matizado pela exploração dos recursos da retórica romântica a que já se fez amplamente referência, mais adequados a alimentar emoções do que a fomentar debates sérios e profundos. Eis, num artigo de crítica ao governo do Partido Histórico, um caso sintomático, no qual abundam a exploração dos contrastes (luz/trevas) e o apelo constante ao sobrenatural (trevas) e ao divino, em frases sincopadas, onde se introduzem abundantes metáforas, comparações, exclamações e interrogações retóricas, num tom assumidamente irónico e, às vezes, de estreita cumplicidade com o leitor presumido, a quem interpela directamente (“entendeis?” – pergunta ele a adversários e amigos leitores):

Descobriu-se a felicidade pública (...). O remédio era simples (...). Quereis saber como tudo é simples? Ponde em próspero estado a marinha, o comércio, a indústria e a agricultura, acabai com os monopólios, cingi o sistema tributário às prescrições da Carta (entendeis?), acabai com o exército de oficiais e afilhados, aboli os vínculos e não deixeis morrer à míngua as colónias!

Votamos por tudo isso. E depois? Fiat lux? Mas fica tudo às escuras. Quando a voz que pronuncia a sentença é omnipotente, a luz sabe das trevas, o mundo do nada, o homem da terra, a alma do espírito de Deus, mas quando a voz é do mesinheiro, o mais que acontece é alguma prestidigitação parva, ou algum charlatanismo ridículo. Se o doutor chamado para curar o doente (...) declarar que o melhor é ter ele saúde, o que se dirá? (...) Pois é o que hoje dizem ao país. Está mal? Esteja bem. Está pobre? Esteja rico. Carece de meios? Tenha meios. (Revolução de Setembro, 29 de Janeiro de 1856)

O texto acima, para além de representativo da retórica de António Rodrigues Sampaio, tem um outro ponto de interesse: o autor, paradoxalmente, dirige-se aos adversários, presumindo que seria lido por estes e não apenas pelos correligionários que comprariam o Revolução.

Um aspecto que se nota em alguns textos de Sampaio é a forma algo displicente com que os encerra. Por exemplo, no dia 1 de Julho de 1862, finaliza um texto no Revolução de Setembro com a expressão “Adeus, que não tenho mais tempo”, que repete, com nuances, noutros artigos (“Adeus, que me falta tempo para ver muitas coisas que desejava ver e não posso.”). Noutros escritos seus, pelo contrário, já se notam mais as suas habilidades retóricas. Em vários deles, o final é direccionado para os leitores presumidos, incluindo, paradoxalmente, os seus adversários (os políticos jornalistas liam-se uns aos outros e combatiam-se uns aos outros nas páginas dos jornais): “Pensem!”, “Pensem enquanto é tempo!”. Noutros artigos ainda, o final é irónico “Santa gente!” (mais uma vez sobre os seus adversários políticos) ou incisivo “E disse!”.

6.2 O apoio a Saldanha e a defesa da Regeneração e do Partido Regenerador

Quando o marechal duque de Saldanha ocupa o poder, a 1 Maio de 1851, António Rodrigues Sampaio, que durante a Patuleia lhe chamava “marechal das caras”, deu-lhe o seu apoio (acabaria por tornar-se deputado do Partido Regenerador, logo em Novembro) e, paradoxalmente, escreve, no Revolução de Setembro, por várias vezes, que aceitaria a ditadura em algumas coisas, desde que, conforme expressa a 26 de Maio, essa ditadura fosse exercida em favor do “bem público” e tivesse “reconhecida utilidade”. Assim, nesse mesmo texto, aceita, nomeadamente, ter de “se violar a Carta” Constitucional, “para se salvar o país e a moralidade” e reconhece, nesse âmbito, que se poderia rever “a instituição do pariato”, expurgando e reformando a Câmara dos Pares. Começava, efectivamente, a operar-se uma revolução no pensamento de Sampaio, materializada na sua prosa, cada vez mais defensiva e justificadora das pretensões dos seus novos correligionários políticos – os regeneradores, chefiados pelo marechal Saldanha.

O fantasma da interferência espanhola nos assuntos internos portugueses continuou presente depois da intentona de Saldanha e por causa dela. Nessa conjuntura, emerge recorrentemente da prosa de Sampaio o seu arreigado nacionalismo e o seu apoio ao golpe que conduziu Saldanha à chefia do Governo. É assim que, a 5 de Junho de 1851, no Revolução de Setembro, publica um artigo no qual diz acreditar “que o Governo espanhol desejasse intervir em Portugal”, só que lhe faltaria “um motivo plausível” e “o consenso (...) de Paris e de Londres”, pois:

Pouca perspicácia precisam os diplomáticos para compreender a situação do Duque de Saldanha e não podem, sem injustiça, argui-lo de descomedimento revolucionário. (...) Nenhuma ocasião perde de se mostrar isento de intenções exageradas e as suas ligações com o partido popular não vão além do que era preciso para constituir um Governo e livrar o País de mais sérias convulsões. Até com este fim se resolveu a insurreccionar-se (...). O duque não recua mesmo diante dos perigos da impopularidade para aplacar a sanha diplomática e alcançar dos governos estrangeiros (...) a complacência.

(...)

Vencidos os primeiros embaraços externos, é mister cuidar da segurança da revolução, para por peito à regeneração do País. Os 40 mil homens espanhóis ou voltarão em breve aos seus quartéis, ou se enfadarão de estacionar nas nossas fronteiras. Só as passariam se a guerra civil cá os chamasse (...). (Revolução de Setembro, 5 de Junho de 1851)

Nesse mesmo artigo, António Rodrigues Sampaio descreve, pedagogicamente, o que ele entende dever ser o programa da Regeneração:

regenerar o País quer dizer mudar a sua condição material e moral, organizando todos os ramos do serviço público de acordo com aquele intento e fazer leis que o realizem. (...) Se o Governo transacto era desperdiçado, este deve ser económico; se violava as leis, este deve acatá-las; se deprimia o espírito público, este deve exaltá-lo; se desprezava a instrução, este deve promovê-la; se abandonava as indústrias, este deve fomentá-las; se encarecia os capitais, este deve barateá-los; se se descuidava das comunicações, este deve solicitá-las; se exagerava o imposto, este deve reduzi-lo; se embrulhava o foro, este deve desenredá-lo. (Revolução de Setembro, 5 de Junho de 1851)

Dentro da mesma linha, num artigo publicado no Revolução de 18 de Junho de 1851, cheio de metáforas, mas num tom extremamente actual, Rodrigues Sampaio resume aquelas que, em seu entender, deveriam ser as linhas de força do Governo saldanhista: investimento em vias de comunicação, no sistema educativo... e preferencialmente tudo isso com menos impostos:

Não esperámos nunca que a Regeneração saísse repentina debaixo do bastão do marechal (...). O cancro era fundo e a espada só cortou a cabeça.

(...)

Estão em luta (...) interesses (...). Há muito quem lucre com a corrupção (...). Há muito quem tenha sofrido injustiças e as quer ver logo reparadas. Há (...) o espoliado que quer possuir. Há o amor-próprio do que se julga despeitado (...) por não poder salvar a Pátria (...). Há o interesse individual querendo prevalecer sobre o interesse público. Há, enfim, uma dúzia de pretendentes para cada cargo público, e não há dinheiro para pagar em dia a nenhum deles.

São estas as misérias da administração, e são elas as que complicam mais o Governo. Jaz aí um povo oprimido. Falta-lhe tudo, desde a instrução até às comunicações, esmagam-no com impostos sem lhe darem meios de trabalho, e ninguém, menos ele, se aflige com o seu mal.

(...)

Pois nós (...) pedimos também uma promoção, e não queremos para ela aumento de despesa. (...) Sejam todos oficiais militares, sejam barões ou sejam condes, mas o povo, vejam se o ensinam a ler, escrever e contar; vejam se lhe abrem alguma estrada, vejam se lhe diminuem algum tributo, e elevem assim a sua condição moral. (Revolução de Setembro, 18 de Junho de 1851)

É interessante notar, também, no texto acima, um outro dos motes da prosa de Sampaio: a crítica social. De facto, trata com significativa ironia aqueles que almejavam, antes de tudo, um título de nobreza, desconsiderando os interesses mais pragmáticos dos humildes.

Já a propósito das eleições de Novembro de 1851, que lhe valeram o lugar de deputado, Sampaio defendeu a postura do Revolução de Setembro, que não sugeriu escolhas aos eleitores, pois confiaria “no instinto público mais do que nas indicações dos que tantas vezes têm errado”. Reconhece, todavia, a sua lealdade para com o Governo, exigindo, em troca, “a mesma lealdade” e prometendo “censurá-lo se pagar a boa-fé com ingratidão” (Revolução de Setembro, 15 de Novembro de 1851). Explica, no mesmo texto, as razões dessa lealdade, retomando a posição anti-cabralista de sempre: “Temos pouco desejo de fazer a vontade ao cabralismo. Se ele entende que o Ministério deve cair por não nos perseguir, é um motivo para nós não lhe desejarmos a queda. Entre a boa paz com o Governo ou com o cabralismo, não é possível a hesitação.”

Aos críticos da Regeneração, relembra que sem meios teria sido impossível aos governos regeneradores fazer mais e melhor. Ao mesmo tempo, vinca que (por causa do cabralismo) os regeneradores teriam encontrado depauperado o tesouro público:

Quais foram os bens que a Regeneração encontrou quando tomou conta da direcção dos negócios? Que projectos grandes estavam iniciados, que recursos havia para os realizar? Que era a receita pública, em que serviço se consumia e que proveito se tirava dela?

(…)

O que a Regeneração achou foi um tesouro exausto e as suas rendas antecipadas; e a autoridade sem força moral, porque o despotismo a havia tornado odiosa. Hoje temos liberdade ampla, esforços grandiosos, perspectiva de um lisonjeiro futuro e o povo esperando tranquilo os frutos dos esforços do Governo. (Revolução de Setembro, 28 de Setembro de 1853)

Ao longo do tempo, António Rodrigues Sampaio sublinhou, repetitivamente, no Revolução de Setembro, a sua fé no movimento regenerador, ainda que com plena consciência de que o trabalho dos regeneradores não era suficiente e que haveria sempre muito a fazer:

A época é de civilização. O Porto dá-nos o exemplo do que pode a força da vontade e os esforços reunidos. A classe industrial, que os cabralistas nunca consentiram que se instruísse à sua custa, está ali dando provas do que pode quem quer e quem sabe. (A Revolução de Setembro, 17 de Dezembro de 1852)

A Regeneração ainda tem muito que regenerar. Se compararmos o que fez com o que existia, é grandioso o seu trabalho; se compararmos o que fez com o que se precisa fazer, é diminutíssimo. Vista à luz do passado, é gigantesco; visto à luz do futuro, apenas se enxerga. (Revolução de Setembro, 2 de Fevereiro de 1855)

Da Regeneração como sistema ninguém diz mal, nem se pode dizer. Não tem dado ao País quanto ele precisa, mas tem-lhe dado mais do que ele podia esperar. O que se pretende é uma mudança de ministros; mas ninguém a pede senão em nome dos mesmos princípios que os ministros actuais sustentam. Quer-se uma regeneração sem regeneradores. Quer-se uma imoralidade e um absurdo. Não cuidem que o Governo do Estado pode mudar facilmente de agentes sem mudar de princípios e de direcção. Os únicos executores de uma ideia são os que lideram e padeceram por ela e nunca há bom serviço senão quando há bom desejo. (Revolução de Setembro, 4 de Agosto de 1855)

Estamos num século de raridades. Aqui tudo se inverte e converte. O que era até agora próprio dos fundos públicos passou a ser próprio das pessoas.

Instruir o povo, fundando escolas, criando institutos, dotando professores, animando as artes; melhorar a situação económica abrindo vias de comunicação, distribuindo com igualdade o imposto, aplicando-o com discrição, era até hoje a missão do estadista. Incitar os poderes públicos a cumprir esta missão era o dever da imprensa; argui-los por faltar a ela era a sua prática constante; mas envergar a roupeta do jesuíta por cima dos guizos do histrião e ver arvorados em vigários gerais os publicistas cujas virtudes a fama apregoa, amaldiçoando os bens terrenos estes moralistas ascéticos macerados pelo jejum e pelo cilício, é o que nos faltava para ver nesta época de paradoxos.

(…)

Há sempre na governação muitos defeitos que corrigir, muitas faltas que notar, muitas advertências que fazer, muitas coisas que emendar. Os poderes públicos reconhecem muitos males que precisam de remédio e que, contudo, não podem remediar. Incitá-los, argui-los, é bom; acusar a sua falta, é um dever; lembrar-lhes o remédio, é um grande serviço.

(…)

Julgará alguém que a nossa administração é perfeita? Julgará que os mesmos ministros não se consideram contrariados em muitos dos seus desejos, enganados em algumas das suas esperanças? Cuidará alguém que os nossos recursos são iguais às nossas necessidades e que há quem se julgue satisfeito com o pouco que temos para o muito que nos falta?

Enganam-se se assim pensam. Temos melhorado muito. Temos dado à administração um grande impulso e uma direcção conveniente. (Revolução de Setembro, 16 de Maio de 1855)

Crente no homem, pois, eis como Sampaio se manifesta, ainda que com plena consciência das suas imperfeições e insuficiências, gritantemente valoradas e exuberantemente criticadas no terreno do político e da governação.

6.3 Intervenção política e cívica de Sampaio através do Revolução de Setembro

Com a Regeneração, Portugal entrou num período de acalmia e estabilidade, que só viria a ser interrompido com o movimento contestatário da Janeirinha, anti-tributário e municipalista, que eclodiu a 1 de Janeiro de 1868, provocando uma reorganização do espectro partidário e o fim do rotativismo entre regeneradores e históricos no Governo. A 28 de Maio de 1851, no Revolução de Setembro, António Rodrigues Sampaio saudava, do modo seguinte, a Regeneração: “Entramos em nova época. Os deveres da imprensa são outros. Já desapareceu de entre nós esse Governo devasso, com o qual não havia tréguas nem lei de combate. Acabou a luta encarniçada, o repto continuado, que nos teve em armas por tanto tempo.”

Devido à normalização da situação política, durante a Regeneração António Rodrigues Sampaio passou a escrever já não sobre temas de ruptura, mas sim, principalmente, sobre a actualidade política rotineira e normalizada da governação e do quotidiano. A sua verve tornou-se menos viperina, conforme o documenta, por exemplo, o seguinte exemplo, relacionado com a promulgação de uma lei eleitoral que, noutros tempos, possivelmente teria reprovado com mais energia:

Publicou hoje o Governo o decreto eleitoral. O direito de votar e ser votado está regulado (diz o mesmo decreto) de um modo definitivo e permanente; mas tem uma falta essencial – é não mandar proceder às eleições.

É preciso não haver sofismas nos princípios constitucionais. A lei queria-se para as eleições, para realizar o direito, não era para o definir, nem para as bibliotecas. A designação do dia em que devem começar as operações é essencial nestas circunstâncias. E uma vez que não vem no decreto de hoje, convém ser determinado desde já noutro.

Parece-me demasiada a pretensão de querer fazer uma lei eleitoral permanente por um acto de ditadura. Não dizemos bem em lhe chamar demasiada, chamamos-lhe impossível. A base do sistema representativo há-de ser debatida e sancionada somente nos conselhos da Nação. O decreto actual pode aspirar às honras de projecto, mas não merece as da permanência que se quer arrogar.

Notando esta falta do decreto e esta pretensão desarrasoada, devemos declarar que se acham nele consignados bons princípios e que é muito liberal com relação aos princípios moderados do Governo. (…)

O decreto traz uma inovação, determinando que para ser deputado basta um quarto de votos do número real dos votantes de todo o círculo eleitoral. Não compreendemos a razão deste quarto. Compreendemos maioria absoluta e relativa. Ambas têm a sua razão. Mas deste quarto não há razão. (Revolução de Setembro, 2 de Outubro de 1852)

Talvez um dos melhores testemunhos da tese atrás sustentada se encontre num artigo surgido no Revolução de Setembro de 24 de Abril de 1858. Nele, a propósito de um acto eleitoral próximo, é expressa a fé de António Rodrigues Sampaio numa democracia de gente cordata, em que as disputas se resolvam pelo voto. Votar contra o Governo, para ele, não pode ser confundido, conforme se pode ler, com um ataque pessoal aos ministros do elenco governativo, mas tão só uma forma de reprovação das políticas que esse mesmo Governo seguiu:

Eleitores!

Domingo dois de Maio abre-se a urna. Vamos a ela como quem vai certo do cumprimento de um dever, como quem não leva no coração nem o fel da injúria, nem o ressentimento do despeito, nem nenhuma paixão ruim.

A dois de Maio é a nossa desobriga política. Os ódios e os rancores não são próprios de uma grande causa, nem de ânimos generosos. A consciência é que dita o nosso proceder. Nem contra os adversários nos anima furor partidário, nem contra os vizinhos nos irrita a divergência de opinião. A lei pede-nos o nosso voto, damo-lo desinteressado.

Votamos contra o Governo, não contra as suas pessoas, mas contra os seus actos, (...) porque as necessidades públicas não são satisfeitas, a administração é descurada, os melhoramentos (...) são esquecidos, a viação pública é abandonada, os operários das estradas são despedidos sem pagamento, as promessas de obras são reiteradas sem intenção de as fazer, a justiça fica desmoralizada depois de arguirem a necessidade de reforma, a fazenda pública complica-se anunciando nova bancarrota, os difamadores alcançam as graças do poder só pelo mérito da difamação e a liberdade da urna é atacada por actos de prepotência e de arbítrio.

Votamos contra o Governo porque dissipou o dinheiro das estradas (...).

Votamos contra o Governo porque não sabe governar (...).

Votamos contra o Governo porque despreza o voto parlamentar (...).

Votamos contra o Governo porque concede moratórias aos amigos (...).

Votamos, finalmente, contra o Governo porque faz das eleições um leilão (...) fazendo promessas falsas (...). (Revolução de Setembro, 24 de Abril de 1858)

Estilisticamente, no texto acima, é interessante notar a repetição martelada e rítmica da ideia principal (“votamos contra o Governo”), muito comum na prosa sampaína, e o apelo de abertura, directo, aos eleitores. A argumentação não é particularmente profunda, muito menos contida. Não apela substantivamente à razão. Conforme é comum em Sampaio, a prosa cede à emoção do autor e à exposição superficial das suas razões.

Outro dos bons exemplos que pode ser dado para ilustrar a tese acima referida é dado por um artigo publicado no Revolução de Setembro de 29 de Maio de 1858, no qual apenas pede aos parlamentares – e por arrasto aos jornalistas – que não percam tempo com irrelevâncias. Sampaio fá-lo dirigindo-se directamente a eles, leitores presumidos, ainda que não certos e muito menos receptivos à mensagem, tal como era timbre em muita da sua prosa político-jornalística:

Deixem-se de ninharias e cuidem de coisas sérias.

(...)

A insinuação da imprensa para se darem vivas foi uma necedade e uma caturrice; a revelação que hoje nos fazem de que insinuaram o presidente da Câmara para não os levantar é outra.

(...)

O que o público quer saber não é se as aclamações faltaram por insinuação ou sem ela, se o entusiasmo foi abafado por ordem superior (...), o que desejamos todos saber é se (...) a companhia do caminho-de-ferro está formada, se aquelas tantas mil libras (...) estão recebidas, se enfim podemos contar com o caminho-de-ferro do Porto (...). O que o público deseja saber é o que se faz ao dinheiro (...), se os ministros darão conta dos dinheiros (...) e da sua aplicação (...), (...) se (...) apresentarão os relatórios e contas dos seus ministérios (...). (Revolução de Setembro, 29 de Maio de 1858)

Noutro texto, publicado a 28 de Maio de 1851 no seu jornal de sempre – o Revolução de Setembro, Sampaio faz a sua profissão de fé na democracia, do mesmo modo que atribui aos maus governos a responsabilidade pelas revoluções. Escreve-o fazendo hábil uso das interrogações retóricas, a propósito da expurgação da Câmara dos Pares dos membros hereditários descendentes dos aclamadores de D. Miguel, que ele considerava inconsequente porque não resolvia o problema de fundo do país – a governação:

Entendemos que os princípios democráticos são os que mais convêm às sociedades. Faremos quanto em nós couber para os tornar queridos do Povo, mas (...) a (...) experiência mostra que tudo esmorece diante da vontade do Povo. Não há direito contra essa vontade (...), e sempre tudo pela força das armas. (...) Que é pois o que impera? Qual é o móbil que faz andar tudo revolto, e porque acontece que facto nenhum se consolida apesar de todos alegarem a seu favor o bom direito?

Cremos que todas estas contínuas revoluções nascem do mau governo. Cremos que um Governo que promovesse os melhoramentos morais e materiais dos povos se havia de sustentar, e cremos enfim que todas as revoluções são o castigo com que a providência pune os maus governos e alivia as nações daqueles que as oprimem. (Revolução de Setembro, 28 de Maio de 1851)

Outro exemplo de exercício da crítica jornalística num contexto de normalidade democrática encontra-se no artigo de fundo do Revolução de Setembro de 3 de Março de 1858, no qual Sampaio elabora uma apreciação crítica do governo do Partido Histórico, recorrendo à sua usual exploração retórica, profundamente irónica, dos contrastes:

Os apóstolos da moralidade não diferem dos apóstolos da corrupção senão no exagero com que praticam as acções que incriminaram. A sua energia tem por consequência o marasmo; o seu saber produz o absurdo e o erro; da sua solicitude pelos melhoramentos da capital nasce o ataque contra as liberdades municipais; da recta aplicação dos dinheiros públicos provém o extravio de centenas de contos de réis. Do fervor pela realização de obras públicas nasce o desvio das somas votadas para elas; da melhor cobrança da receita nasce o aumento da dívida flutuante; do aparecimento da febre-amarela em Setembro nasce o desvio dos dinheiros públicos nos meses anteriores a Julho; do zelo e actividade na perseguição dos crimes nasce o cerceamento dos cruzados novos nas províncias do Norte; da reconhecida perspicácia do Sr. ministro das Obras Públicas nasce a periódica prorrogação do prazo para a retirada da velha moeda de prata cuja circulação só era perigosa no tempo o Sr. Fontes; da necessidade da reforma da instrução pública (...) nasce a pasmaceira actual; e da competência do Sr. Ávila (...) nascem os erros de 240 e tantos contos que aparecem nos relatórios do ministro (...).

Quase três meses de inércia (...) é mais do que preguiça, é um crime (...), porque não trabalham nem deixam trabalhar (...).

O Governo do país é um verdadeiro congresso científico (...). Todos falam, um diz sim, o outro não, e nada se faz. A verdadeira ciência consiste na irresolução. A ciência não cai na esparrela de se pronunciar (...). (Revolução de Setembro, 3 de Março de 1858)

A questão do exercício do poder num contexto democrático é outro dos temas que Sampaio aborda no Revolução de Setembro, reprovando, dentro da sua visão moralista da sociedade, aqueles que se aproveitavam do poder para gozo pessoal e não para o exercerem em favor do bem-comum:

O poder não é um gozo, é um encargo. A opinião de quase todos os governantes não é esta e daqui vem a confusão e anarquia. Tem-se considerado como regalias o que devia ser obrigação, como direito o que devia ser dever, como gozo o que devia ser sacrifício e como recompensa o que devia ser condenação.

A reacção, porém, começou a manifestar-se e a dar outra direcção ao espírito público. Cansados de lutas, os povos pedem à liberdade os benefícios que ela prometeu e avaliam as instituições pelos seus resultados práticos. A imprensa, fatigada do debate pessoal, aplica-se em geral à discussão das coisas úteis, aponta as necessidades públicas, indica as precisões das localidades e os nossos correligionários das províncias enchem os jornais de um reflexo de luzes que anima as nossas esperanças, porque revela um princípio de vida que não há-de ficar estéril. (Revolução de Setembro, 7 de Julho de 1852)

As ruins paixões consideram o poder como termo final dos seus esforços; as paixões nobres consideram-no apenas como instrumento das coisas úteis. O poder não é um fim, é um meio de realizar os benefícios da civilização. (Revolução de Setembro, 2 de Junho de 1855)

Os deputados, intérpretes importantes do jogo democrático, são especificamente convocados por Sampaio a exercerem cívica mas desinteressadamente o seu poder, tendo em consideração as possibilidades de cada momento:

Os deputados não esperam coroas cívicas, nem os aplausos das turbas; mas com a consciência tranquila e sem remorsos, levam a convicção de que fizeram o seu dever. Sabem que a sua tarefa era mais larga, que as necessidades públicas eram maiores, que os esforços dos poderes públicos devem redobrar; mas igualmente sabem que não é dado ao homem fazer tudo num momento, que tudo tem seu tempo e lugar e que a escassez dos meios faz necessariamente limitar a iniciativa, acudindo ao mais urgente e adiando o que não pode ser, desde logo, inchado. (Revolução de Setembro, 18 de Julho de 1855)

Profundamente democrata, Sampaio fez também o elogio do rotativismo, considerando que só com a alternância dos partidos opostos no Governo era possível aferir quais as melhores receitas para o progresso do país. Fê-lo, porém, talvez já como reacção à instabilidade política provocada pela revolta da Janeirinha, que eclodiu no Porto, a 1 de Janeiro de 1868:

A rotação dos partidos no poder é de grande vantagem social. Sabe-se, por ela, qual é o préstimo e a utilidade das diversas teorias e conhece-se a capacidade dos apóstolos que as proclamam. (Revolução de Setembro, 29 de Setembro de 1869)

Entre muitos textos de crítica social e política que Sampaio publicou no Revolução de Setembro, um deles, pela sua aplicabilidade ao momento actual, merece destaque:

A solicitação de empregos é espantosa – não de agora mas de há muito. Todos querem ser governadores civis e alguns pegaram no código só depois da nomeação. Não o querem ser para administrar, querem-no ser para ostentação. E quando se fala na sua capacidade, diz-se que se lhes dá um bom secretário!

Isto não pode ser assim. É necessário que a administração seja confiada a quem administre, é necessário que o governador-civil saiba mais que o secretário e que este saiba mais que os outros empregados. (Revolução de Setembro, 17 de Setembro de 1865)

Eis, pois, o problema da “cunha”, ou, como dizem os brasileiros, o problema do QI (“quem indica”), exposta em toda a sua crueza, a propósito das nomeações para governadores civis. O problema da atribuição de cargos públicos aos apaniguados políticos à custa dos contribuintes e sem respeito pelas genuínas capacidades administrativas das pessoas. Um problema do passado, conforme dizia António Rodrigues Sampaio, e um problema do presente, que ele não viveu, mas que possivelmente intuiu.

A fusão entre históricos e reformistas, pelo Pacto da Granja, no novo Partido Progressista, destinado a combater a supremacia e superior implantação dos regeneradores, mereceu a António Rodrigues Sampaio um comentário irónico – afinal, dois adversários de sempre tinham-se entendido com o único objectivo de alcançarem o poder, subtraindo-o aos regeneradores:

Uniu-se em profunda paz Babilónia com Sião. Machico e Arada, com seus fuzilamentos providenciais, receberam a bênção do prelado de Viseu que os havia fulminado com os raios de Fontello. Confundiram-se os elementos, o húmido e o seco, o calor e o frio, a água e o fogo, o mole e o duro, o pesado e o leve, e o que era distinto voltou ao caos donde saíra. Queremos aludir à fusão ou infusão de históricos e reformistas. Não tem nada de estranhável este acontecimento. Odiavam-se é verdade, mas os ódios não devem ser eternos. (…) Reconheceu cada um dos grupos a sua insignificância, miraram-se ao espelho e sentiram-se quase sumidos; e depondo mútuas embófias disseram:

Mister é fazer aliança

Senão maus bichos nos comem. (Revolução de Setembro, 12 de Setembro de 1876)

A entrada do primeiro deputado republicano, Rodrigues de Freitas, no Parlamento, não deixou Sampaio indiferente. Mais do que isso, surpreendentemente, ou talvez não, Rodrigues Sampaio, já totalmente alinhado com a Monarquia, critica, veladamente, a falta de verdade do republicanismo, mas critica ainda mais fortemente os que alimentavam preconceitos contra ideologias que não conheciam:

Falou o Sr. Rodrigues de Freitas, e muita gente correu a ouvi-lo, o que não admira porque S. Ex.ª fala bem, e os portugueses são apaixonados por escutarem bons discursos, no púlpito, na tribuna, no foro ou nos comícios, fascinando-se ainda mais pela beleza da forma do que pela verdade da doutrina. Depois o Sr. Freitas ia orar em nome dos princípios republicanos, e era isso mais um estímulo para mover curiosidades, a que não são superiores nem mesmo os que de antemão condenam as ideias do orador. (Revolução de Setembro, 17 de Julho de 1878)

Frequentemente, o combate político de Sampaio desenrola-se em função do que a imprensa política publicava ou não:

A Imprensa e Lei não quer ter parte na farsa da Estrela. Não a tenha. Cuidávamos que, tendo mandado o programa para os Pobres do Porto, era interessada na função; mas se não o era, se aquele programa era brincadeira, e se foi por acaso que adivinhou, nós congratulamo-nos por haver na imprensa portuguesa quem assim prediz os acontecimentos, ignorando a combinação que os produz. Fica assim antes Bandarra do que conhecedora da farsa, se não é que o correspondente dos Pobres como palha para comprometer o partido.

A.R. Sampaio (Revolução de Setembro, 14 de Dezembro de 1855)

As pequenas questões da política quotidiana também ocupam amiúde Sampaio, que, pelo meio de elogios ao seu campo – em especial a Fontes Pereira de Melo – e de críticas aos adversários faz balanços das governações e noticia e interpreta sucessivamente assuntos como as eleições, as quedas e nomeações de governos, etc., tanto nas horas boas como nas más (incluindo-se aqui as derrotas eleitorais ou a queda de governos do seu partido – que, por vezes, aceita com galhardia). O tom oscila entre o informativo e directo – sim, Sampaio também escrevia notícias, ainda que amiúde comentadas e interpretadas – e o opinativo, sendo comuns, na sua prosa, a adverbiação, a figuração e a adjectivação. Por vezes, fala de si mesmo na terceira pessoa – noticiando negociações políticas em que esteve envolvido e desfazendo eventuais boatos que sobre as mesmas pudessem ocorrer.

Termina hoje o ano de 1855.

(…)

Concluíram-se umas estradas, continuaram-se outras, principiaram-se algumas; começaram-se dois caminhos-de-ferro, a construção do telégrafo eléctrico, o estabelecimento da mala posta de Lisboa a Coimbra; procedeu-se aos trabalhos do traçado do caminho-de-ferro de Santarém à fronteira e do Norte e talvez a esta hora estejam arranjados os meios de levar aquelas grandes obras à execução. (Revolução de Setembro, 1 de Janeiro de 1856)

Não caiu um Ministério. Caíram os ministros todos – todos sem excepção de um. Caiu o Ministério, o Governo: caiu um sistema. O voto da Câmara foi político, decisivo e terminante.

Estes são os factos. Não os deixaremos esquecer, nem dissimular, nem confundir. As circunstâncias do País são graves e o espírito público está penetrado de gravidade delas. O caso é de muita responsabilidade e nós queremos impô-la a quem ela tocar.

Foi o Ministério que caiu. Repetimo-lo. Caiu porque ele mesmo o disse e porque a câmara disse também.

E como o disse a Câmara? Pelo modo mais claro e terminante. A esquerda votou contra. Os centros votaram contra. A maioria, se votou a favor, foi só naquele debate e por aquela vez. Já havia declarado ao Governo que lhe cessava o seu apoio, que não julgava conveniente a sua existência.

Foi diante da Câmara neste estado e depois destas manifestações que o Governo se retirou. A demissão que pediu não significa o escrúpulo de governar com a maioria de seis votos, mas a consciência de que nem essa maioria tinha, de que era impossível a sua gerência. (Revolução de Setembro, 24 de Janeiro de 1858)

O senhor Fontes tem uma grande lucidez de espírito e uma grande sinceridade argumentativa. São os dotes que principalmente explicam os seus triunfos parlamentares. (Revolução de Setembro, 7 de Abril de 1853)

Estamos em pleno Governo constitucional. O Ministério parece que propôs a S. M. a nomeação de novos pares. O poder moderador não anuiu; e esta recusa importa a negação da sua confiança. A demissão do Gabinete é a consequência necessária.

Apoiamos ainda a administração que cessa as suas funções e achamo-la mais nobre, mais constitucional e mais legal na sua queda do que o fora na sua elevação. Os getas não estão aqui. Defensores dos princípios e dos homens que os executam, havemos de proclamar sempre que a sua gerência foi honesta, que a sua administração foi tolerante, justa e liberal, que a sua marcha foi sempre progressista e que o seu esforço foi heróico, porque nunca foi inferior aos recursos pecuniários de que podia dispor. (Revolução de Setembro, 3 de Junho de 1856)

A Câmara dos Deputados foi hoje dissolvida. As Cortes gerais são convocadas para 7 de Junho.

O acontecimento é natural posto que não era esperado. A Regeneração riu-se quando ouviu ler o decreto; a maioria ficou como que fulminada do raio. Nem esperava nem previa a solução e houve quem pressentisse o fim da sua carreira parlamentar. (Revolução de Setembro, 27 de Março de 1858)

Perdemos as eleições em Lisboa e sabemos ser resignados. Nem nos queixamos de revés, nem julgamos, por isso, perdida a Pátria. Entre os adversários triunfantes, reconhecemos mais de um carácter ilustre que pode honrar o Parlamento e no meio da derrota damos graças ao País por haver nele muitos cidadãos mais dignos do que nós.

Se os eleitores nos quiseram dispensar, a nós e aos nossos amigos, do serviço legislativo, é porque assim o julgaram conveniente; é porque no livre exercício do seu direito preferiram outros caracteres que melhor representassem as suas opiniões e interesses. O mandato deve ser livre, a maioria deve ser respeitada; e quando mesmo ela é forçada, respeita-se a sua ficção. (Revolução de Setembro, 3 de Maio de 1858)

O Ministério pediu a sua demissão e o senhor duque da Terceira acha-se encarregado de formar a nova Administração. (Revolução de Setembro, 16 de Março de 1859)

Não tencionávamos dizer nada sobre a formação do Ministério antes de constituído, se não soubéssemos que o senhor duque da Terceira se dirigira ao senhor duque de Saldanha e ao senhor Fontes, apenas fora encarregado daquela tarefa. A diferença de partidos aconselhava-nos a abstenção. Teríamos somente de notar em tempo e ocasião oportuna que a Regeneração entregara o poder aos históricos, que o senhor duque de Saldanha se empenhara pessoalmente para arranjar sucessores e que os históricos, largando o poder, o entregaram ao marechal duque da Terceira.

Mas uma vez que o nobre marechal procurou aqueles cavalheiros aos quais devemos lealdade de amigos e de correligionários, exporemos a nossa opinião em público tão sincera como lha temos exposto sempre em particular.

Na formação do Ministério desejáramos que se procurasse uma organização inteligente e forte. Para haver força é necessário ter um apoio valioso e para ter esse apoio é necessário ir buscar a inteligência aos diversos partidos. Combinem um programa em que todos possam concordar, desviem as dificuldades que não puderem vencer, ponham de parte as questões que não forem urgentes e em que discordarem, harmonizem-se num só pensamento, dêem garantias a todos os partidos e poderão fazer por esse modo reviver essa administração semi-morta.

Os primeiros passos do senhor duque da Terceira mostram que a sua tendência é boa e liberal e que a Regeneração, até agora tão caluniada, pode tomar parte e ter voto nos conselhos da Coroa; mas não basta que só ela e o partido cujas tradições o senhor duque da Terceira representa tenham parte no poder; nós teríamos como uma óptima combinação aquela em que o Partido Histórico fosse também representado. Esse partido cometeu erros graves que está expiando, foi exclusivo nuns pontos, intolerante noutros, mas muitos dos seus membros deram um nobre exemplo de independência. Apoiaram quando julgaram que podiam fazer alguma coisa, toleraram e sofreram quando viram que não podiam dar vida a um cadáver e pronunciaram-se contra quando viram que o seu sacrifício, além de ser inglório, era prejudicial ao País. Considerá-los agora na governação pública é aproveitar um elemento de força que deve predizer bons resultados.

Em conclusão – combinar a unidade do pensamento governativo com a multiplicidade das forças. (A Revolução de Setembro, 16 de Março de 1859)

Diz-se que o Ministério está formado do seguinte modo:

Duque da Terceira, presidente do Conselho com as pastas da Guerra e Estrangeiros;

General Ferreri, Marinha e Ultramar;

Martins Ferrão, Justiça;

Fontes Pereira de Melo, Reino;

Casal Ribeiro, Fazenda;

António de Serpa, Obras Públicas.

O Ministério, como se vê, é um Ministério de fusão; mas cremos que esta fusão assenta em princípios e que dará de si um Governo liberal e civilizador. (A Revolução de Setembro, 17 de Março de 1859)

O senhor Fontes pediu hoje à Câmara dos Deputados uma autorização para reorganizar a Secretaria do Reino, criando nela uma Direcção de Instrução Pública e abolindo o actual conselho superior. (Revolução de Setembro, 16 de Abril de 1859)

Acha-se organizado o Ministério. A distribuição das pastas é do seguinte modo:

Marquês de Loulé, presidente, Reino e Estrangeiros.

Alberto António de Morais Carvalho, Justiça.

Carlos Bento da Silva, Marinha e Ultramar

Belchior José Garcez, interinamente Guerra.

Tiago A. Veloso de Horta, Obras Públicas.

O senhor Braamcamp não quis aceitar a pasta da Fazenda que ontem se lhe destinava, motivo por que entrou o senhor Ávila, que o presidente do Conselho, se diz, quisera excluir na primeira tentativa de organização, mas que fora abrigado a aceitá-lo por não poder achar homem para aquela pasta.

Diz-se que o senhor Ávila se vingará nobremente da afronta, pondo por condição aos seus colegas que haviam de promover a aprovação das propostas de fazenda contra as quais tinham votado. Fizeram-se mútuos sacrifícios e tudo está arranjado. (A Revolução de Setembro, 5 de Julho de 1860)

A tribuna honrou-se hoje com um discurso digno dela. E a voz do senhor Fontes sempre escutada com interesse, mas nem sempre apreciada sem paixão, teve os aplausos de muitos dos seus próprios adversários e a admiração de todos.

O campo, contudo, era belo e Sua Excelência, cujo talento brilha mais nas questões difíceis, onde são necessários os grandes dotes da inteligência, pode sustentar as generosas ideias do seu partido sem desagradar aos outros e sem ofender o carácter de ninguém. (Revolução de Setembro, 1 de Abril de 1865)

A imprensa ministerial tem aludido a uma conferência política que o senhor duque de Loulé teve com o senhor António Rodrigues de Sampaio. Existiu a conferência mas não existiram as circunstâncias de que a querem revestir.

O senhor duque de Loulé desejava conversar com o senhor Sampaio sobre as coisas públicas e sobre a fusão para a qual o incitavam os seus amigos da maioria. Os amigos do senhor Sampaio autorizaram a este para se entender com o senhor duque de Loulé. (Revolução de Setembro, 7 de Maio de 1865)

A fusão obteve perante a urna um brilhante triunfo. O resultado excedeu as suas esperanças. A sua coragem obteve-lhe a vitória; a sua prudência deve-lhe aconselhar o bum uso dela.

O País é digno da liberdade e os eleitores mostraram que sabiam desempenhar com independência e nobreza a missão que a sociedade lhes confiou. (Revolução de Setembro, 11 de Julho de 1865)

O Ministério pediu hoje a sua demissão. O nobre marquês de Sá declarou-o oficialmente à Câmara dos Deputados. Fez mais alguma coisa; disse que não se tinha governado e que não se podia governar sem maioria parlamentar.

Esta franqueza honra o nobre presidente do Conselho. (Revolução de Setembro, 1 de Setembro de 1865)

Está organizado desde ontem o novo Gabinete. Os cavalheiros que o compõem são os senhores:

Joaquim António d’Aguiar, presidente do Conselho e ministro do Reino.

António Maria de Fontes Pereira de Melo, ministro da Fazenda.

(…)

É necessário agora governar. (Revolução de Setembro, 5 de Setembro de 1865)

Continuam os louváveis esforços do senhor ministro do Reino para promover e melhorar a instrução primária. Hão-de ser coroados de bom êxito, porque, segundo o rifão popular, a diligência é mãe da boa ventura. (Revolução de Setembro, 17 de Outubro de 1866)

Realizou-se a notícia, que ontem demos de haver o Ministério solicitado e obtido a sua demissão. Assim o declararam hoje o nobre ministro da Marinha na Câmara dos dignos Pares, e o ilustre ministro do Reino na Câmara Electiva. Das declarações dos dois distintos membros do Ministério demissionário consta que nenhum motivo político, nenhum embaraço constitucional determinara esta resolução, que derivou apenas do precário estado de saúde do Sr. António de Serpa, e da pertinácia da doença do Sr. presidente do Conselho, não podendo o primeiro continuar, na gerência da pasta da Fazenda, a sustentar as fadigas daquele cargo nos debates das duas casas do Parlamento; e vendo-se o segundo, pelo motivo indicado, inibido de resolver as dificuldades que da determinação do seu ilustre colega trazia à situação. (Revolução de Setembro, Março de 1877)

O que podemos observar nos exemplos acima é que Sampaio narra os meandros da política oitocentista a partir de dentro, como bom conhecedor, alguém que sabe do que se passa e que por isso assume uma espécie de estilo narrativo omnisciente, sem deixar de apoiar os seus correligionários e de criticar os adversários.

6.4 A Monarquia... e a República...

São variadíssimos os temas do quotidiano sobre os quais António Rodrigues Sampaio opina. Mas ao falar da Família Real ao longo da Regeneração e do Rotativismo, os termos que usa afastam-se decididamente do tom republicano e revoltado que tinha emprestado ao seu discurso em tempos mais tumultuosos. Assim, nas horas boas e – principalmente – nas horas más, Sampaio acaba por revelar a sua aceitação da Monarquia, senão mesmo a sua crença no regime monárquico. Interessante também é destacar a sua veia de repórter e noticiarista em ocasiões em que Sampaio narra acontecimentos importantes para a vida do Portugal Monárquico daquele tempo, demonstrando a sua versatilidade discursiva. Eis como descreve, por exemplo, o falecimento de S. M. a Rainha Dona Maria II:

O compassado ribombo da artilharia, as bandeiras das embarcações a meio pau, as armas inclinadas para a terra, o dobre dos sinos anunciam a tristeza e o luto nacional mas estes sinais são menos expressivos do que a dor pungente que se revela nos semblantes de todos os portugueses. Há no País verdadeira saudade. Não há só o pranto oficial, há o sentimento espontâneo, que nem se contrafaz nem se dissimula.

Neste momento de eclipse social, em que a realeza se não distingue da última classe dos cidadãos, o dever cristão é rogar a Deus pela alma da que deixou de existir.

As meias-portas de todas as lojas da cidade fecharam-se, porque a finada era a Rainha e a representante de todos.

S.M. a Rainha estivera ainda Domingo no teatro alegre e contente. A sua morte inesperada causou por conseguinte uma profunda dor, aumentada pela surpresa.

A sua resignação foi heróica. Morrendo, porque era mulher como todas as outras, morreu com mais coragem do que elas. Sentindo aproximar-se a sua última hora, declarou que se queria despedir de El-Rei. Aproximando-se este do seu leito, dando-lhe ela os últimos conselhos, despediu-se dele entre lágrimas e carícias. Desejando despedir-se de seus filhos, quando estes se aproximavam, sua alma voava já para o céu, a unir-se aos bem-aventurados, perante o trono do Altíssimo.

E, contudo, esta morte fora, pela ciência, muito tempo antes prevista! E fora sabida a previsão pela própria finada! Quem sabe se este desgraçado conhecimento não influiu na sua morte! (Revolução de Setembro, 17 de Novembro de 1853)

Repetindo uma ideia já usada noutras circunstâncias, Sampaio relembra que na hora da morte soberano e súbdito são iguais. Mas, mais uma vez moralista, Sampaio enfatiza que a lembrança que perdura dos bons distingui-los-ia dos demais. Não deixa, porém, de realçar as diferenças de classes – haveria, segundo escreve, “classes superiores”. Mas também é crítico com o Portugal velho, a “aristocracia cansada”, reaccionária e retrógada. Rememora, finalmente, a sua condição de soldado de D. Pedro durante as guerras liberais:

Foi ontem o enterro do cadáver da Rainha de Portugal, a Senhora D. Maria II. A hierarquia, a púrpura, o ceptro, (...) nada a isentou da lei da morte. O palácio do Rei não teve maior privilégio do que a cabana do pobre. Realeza, aristocracia, democracia, tudo é o mesmo ao pé do túmulo. A trombeta fatal obriga a todos e a pálida morte zomba das grandezas mundanas como das misérias da vida.

Mas há um sentimento que o poder não pode dominar e que mesmo a morte não sabe extinguir. É o sentimento popular do respeito pelas virtudes, da veneração pela honestidade, do acatamento pelas brilhantes qualidades da mãe e da esposa. O funcionário supremo e irresponsável desaparece, mas o fruto das suas virtudes não morre com ele e o Povo, prestando-lhe homenagem, cumpre o dever sagrado, não só da religião evangélica, mas da religião social, seja qual for a crença política do indivíduo que a pratica.

O dia de ontem foi para a capital de um luto augusto e majestoso, porque também há majestade nas demonstrações de dor nacional. As corporações industriais e artísticas, umas anunciando-o e outras sem o anunciar, as associações populares, o corpo do comércio, tudo enfim que tinha alguma forma colectiva, mas que tem uma existência livre e independente do poder, tudo compareceu a pé, em sinal de reverência, naquele préstito fúnebre. Uns com tocha, outros sem ela, porque não as havia na capital para tantos milhares de pessoas, foram ali representar o luto e a saudade da Nação, acompanhando silenciosos e inclinando-se reverentes quando passava o augusto cadáver da que fora sua Rainha.

Nunca se vira até aqui solenidade tão augusta, nem espectáculo tão tocante. A longa distância do palácio das Necessidades à igreja de S. Vicente ainda o tornava mais sublime. O povo agrupado nas ruas do trânsito, as senhoras nas janelas, dava a tudo isto um ar de majestade e grandeza que fazia realçar a manifestação do sentimento público.

Tudo o que foi grande e real foi do Povo. Tudo o que não foi deste foi ordinário e comum. Tudo o que foi extraordinário foi o que não vinha no programa, tudo o que foi oficial não passou de coisa vulgar e sabida. Podia ver-se em casa sem a repugnância de incomodar a vista com umas poucas de capoeiras velhas e ridículas.

O Povo foi a pé – parte, porque desejava e não podia dar por outro modo provas do seu sentimento e não queria faltar a esta demonstração de respeito – parte porque tendo significado noutras ocasiões a sua consideração aos finados pelo acompanhamento a pé, não queria reverenciar menos a que fora sua Rainha. Estes tinham, ou podiam ter, trens, e não quiseram usar deles. Os que eram do povo seguiram seus irmãos; os das classes superiores seguiram o seu exemplo. A Corte só e os designados no programa acompanharam de sege. É que a aristocracia velha e cansada não podia percorrer a pé o espaço que vai do leito da morte ao túmulo, nem se queria confundir com o Povo nestas demonstrações de afecto democrático, que a podem comprometer com a Europa reaccionária e retrógrada.

E nós, democratas, respeitámos neste momento as virtudes da finada, como temos respeitado as de todos os que têm simbolizado alguma grande ideia ou praticado algumas grandes virtudes sociais. Inclinámo-nos diante da que ocupou um Trono como já nos inclináramos diante do cadáver também augusto de sua inocente e virtuosa irmã. Eram ambas filhas do chefe de quem fomos soldado.

Chegado a S. Vicente o préstito fúnebre, uma pomba, que pairara algum tempo sobre ele, foi-se poisar sobre o coche da Coroa, onde se demorou até que o mesmo coche dali saíra. Parece que o Espírito Santo, como dizia o Povo, velava sobre os destinos de Portugal, inspirando a pessoa do seu Monarca.

Os ofícios religiosos acabaram depois das cinco horas da tarde. O real cadáver foi colocado numa das capelas de S. Vicente de Fora. Descanse em paz sua alma no céu. (Revolução de Setembro, 21 de Novembro de 1853)

São múltiplas as ocasiões em que Sampaio, cada vez mais integrado e talvez até identificado com a Monarquia após a viragem da metade do século, relata com temperança, respeito e – quiçá – admiração os acontecimentos relevantes para o Reino e para a Família Real. O juramento da regência de D. Fernando, por exemplo, é assim noticiado:

Foi hoje solene a sessão do juramento de S. M. o regente. Nunca a concorrência foi maior.

S. M. confirmou o juramento que havia prestado na sua proclamação solene. Este juramento não será traído.

S. M. El-Rei D. Pedro V esteve sentado no Trono à direita do regente. O infante D. Luís servia de condestável do Reino. (Revolução de Setembro, 20 de Dezembro de 1853)

O fim da regência e o início do reinado do amado Rei D. Pedro V, com a sua aclamação, torna-se motivo de festa – mas porque o reinado que se iniciava, vinca Sampaio, era constitucional:

É hoje o último dia da regência; ela acaba mas o poder continua, movendo-se na órbita constitucional, aproveitando os frutos dos esforços passados, procurando corrigir os seus defeitos, satisfazer a necessidades novas e continuar assim a obra do progresso sem interrupção e sem afrouxamento.

A regência acaba mas as obras que ela inaugurou e prosseguiu hão-de sobreviver a muitas gerações e a posteridade há-de abençoar a sua memória. (Revolução de Setembro, 16 de Setembro de 1855)

O Senhor D. Pedro V assumiu ontem, no seio da representação nacional, o governo destes Reinos, havendo previamente prestado o juramento marcado na Carta Constitucional da Monarquia. Dirigindo pela primeira vez a palavra a seus súbitos, confiando em Deus e esperando a sincera e leal cooperação de seus Povos, o senhor D. Pedro concluiu deste modo: – “Os ministros do meu augusto pai, como regente do Reino, continuam no exercício das suas funções.”

Nestas palavras solenes, a Regeneração, se teve a honra de merecer a aprovação do Monarca, ficou também com a grande obrigação e com a tremenda responsabilidade de levar a cabo a obra começada. (Revolução de Setembro, 18 de Setembro de 1855)

O senhor D. Pedro V nasceu numa época de agitação mas de liberdade; prestou o seu juramento, como herdeiro presuntivo da Coroa e subiu ao Trono em tempos de tolerância e liberdade. Quis a providência que assim fosse e o que parece acaso foi decreto seu. Respeitemo-lo, que é para bem da Nação. (Revolução de Setembro, 19 de Setembro de 1855)

A adesão ao espírito do reinado de Sua Majestade El-Rei D. Pedro V nota-se também, na prosa de Sampaio, no apoio que deu a uma viagem do Soberano e do seu irmão (que viria, igualmente, a reinar em Portugal) pela Europa – mas o jornalista não se cansa de tentar identificar essa viagem com o próprio ideário desenvolvimentista da Regeneração:

Parte domingo para a sua viagem a diversas cortes da Europa El-Rei o Senhor D. Pedro V e seu augusto irmão o Senhor D. Luís, duque do Porto.

(…)

Esta viagem deve ser agradável aos augustos viajantes e útil à Nação. Percorrendo países adiantados, verão ali os progressos da civilização, observarão o desenvolvimento das artes e da indústria, os prodígios do génio e saindo do seu país natal, talvez ricos da ciência especulativa que uma esmerada educação lhes proporcionou, voltarão a ele mais ricos ainda das lições de experiência, das observações práticas, vendo confirmadas as teorias que lhes ensinaram seus mestres e, realizados os grandes melhoramentos, aos quais, por ora, só aspiramos, pelos quais combatemos, arguindo-nos de utópicos por julgarmos que os podemos, que os devemos ter e que não sairemos da miséria enquanto não os plantarmos entre nós.

Aplaudimos por isso esta viagem. Valerá mais do que longos anos de estudo e um dilata do reinado. (Revolução de Setembro, 27 de Maio de 1854)

D. Pedro V era, de facto, um Rei amado pelo Povo e que conquistou a simpatia – ou até mesmo o amor – dos seus concidadãos. Sampaio não ficou à margem do elogio público à generosidade e à personalidade do Soberano:

Reinar por direito de nascimento pode ser obra do acaso; reinar pela força da revolução pode ser obra da fortuna, reinar pelo voto popular pode ser ilusão das maiorias; mas ser digno de reinar é mais do que ser Rei e bem o merece ser quem faz tão bom uso do que é seu.

Sua Majestade El-Rei deu trinta mil réis para os órfãos por causa da epidemia [de febre-amarela]. Se este exemplo for imitado na devida proporção, muita lágrima será enxugada e os pais que agora morreram saberão que a caridade adopta os seus filhos; se não o for, o que não esperamos, a acção do Primeiro Cidadão do País não perderá da sua grandeza por não ser seguida, a Pátria fará o que a caridade não puder ou não quiser fazer. (Revolução de Setembro, 24 de Outubro de 1856)

A chegada da futura Rainha Dona Estefânia, esposa de D. Pedro V, foi, portanto, uma ocasião de celebração para Sampaio – cujo discurso manifesta firme convicção nas diferenças sociais do “sangue e posição”:

Saudamos o Real Consórcio. Associamo-nos ao regozijo público e assim, como nos dias da adversidade acompanhámos o povo na sua dor, do mesmo modo participamos com ele da sua alegria nestes dias de festa nacional.

Abençoe Deus esta santa união e conserve ela os Reais Consortes tão príncipes no amor como o são no sangue e posição. (Revolução de Setembro, 19 de Maio de 1858)

As ocasiões em que a solidariedade de Sampaio com a Família Real mais vem ao de cima são aquelas em que a dor é intensa – mas com frequência usa esses relatos para recordar como na hora da morte todos os homens são iguais. Eis, por exemplo, como Sampaio noticia a morte da Princesa Dona Amélia:

A dor não conhece distinções mundanas. É um atributo da nossa espécie que nobilita e iguala. O coração dos reis baixa sem etiqueta à morada dos plebeus. O coração dos plebeus sobe sem humilhação ao palácio dos reis. (…) Princesa, nós não choramos em vós nem os interesses da realeza, nem as pretensões dinásticas: choramos a candidez de vossa alma, a agonia de vossa mãe, as lágrimas de vossa irmã e a estirpe liberal em que os feitos de vosso pai vos entroncou. (Revolução de Setembro, 14 de Fevereiro de 1853)

O final do reinado de D. Pedro V foi marcado por uma série de mortes na Família Real, que culminariam no falecimento do próprio Monarca. A morte da Rainha Dona Estefânia, pouco tempo após chegar ao País, foi um dos primeiros momentos de dor em que se nota a sensibilidade de Sampaio perante o drama vivido no palácio real:

A morte entrou no palácio do Rei e escolheu a vítima mais cara ao seu coração. Ontem um tálamo, hoje um túmulo. Ontem amor e esperança, hoje dor e saudade!

Morreu a Rainha, a Senhora D. Estefânia. Viveu entre nós bem pouco tempo para ser gozada, mas tempo de sobejo para nos fazer sentir a sua perda. Subindo à morada dos justos, menos perdeu ela do que nós. Choremos pois com o Rei que é homem e esposo, com os pobres que eram filhos dela e com todo o Povo de quem era ainda mais Rainha pelo amor e virtudes do que pela posição social. (Revolução de Setembro, 19 de Julho de 1859)

A 7 de Novembro de 1861, é noticiada a morte do Infante D. Fernando. O profundo sentimento religioso de Sampaio vem à tona:

O senhor infante D. Fernando morreu. A Família Real está de luto. A infelicidade tem pesado há tempos sobre a casa dos nossos Reis e o Povo, que respeita os seus príncipes, toma parte na sua dor e rogando a Deus pelos mortos, suplica-lhe para os vivos dias de melhor ventura. (Revolução de Setembro, 7 de Novembro de 1861)

A 12 de Novembro de 1861, António Rodrigues Sampaio noticia a doença e morte de D. Pedro V, mais uma vez salientando a ideia da igualdade dos seres humanos no momento final. Mas o Povo começava a desconfiar de tantas mortes e rebelava-se perante a suspeita de lhe terem assassinado o Rei amado e seu irmão:

Uma grande dor ameaça de novo o País. A vida do jovem Rei está em perigo. A Igreja já dirigiu preces ao Senhor pela conservação dos seus dias. Os socorros da ciência e da arte têm sido inúteis até aqui.

A consternação é geral. Têm sido tantos os infortúnios da Casa Real, há tão pouco tempo que nobilitariam vítimas menos augustas. É tão bondoso o coração do Monarca, tão modesto o seu trato, tão brandas as suas maneiras, que a infelicidade o torna ainda mais respeitável.

Alguém que sente talvez mas que não pensa, porque a dor, mesmo por forte que é, lhe tira a razão, tem levantado suspeitas sobre a origem da moléstia e arguido inocentes. A suspeita infundada de uns converte-se logo em certeza para outros e desse erro nasce uma opinião falsa que é necessário ter a coragem de combater e refutar.

Não há culpados nesta grande desgraça. Toda a suspeita é uma injustiça, toda a afirmação uma calúnia.

Tem chegado ao paço notícia deste falso juízo e dizem-nos que tem causado ali profunda sensação, porque se a Família Real sente o seu grande infortúnio, ainda sente mais os agravos e injustiças que por causa dele se possam fazer a outrem.

É pois em nome de uma grande dor e de uma imparcial justiça que pedimos se desvaneçam suspeitas infundadas que podem agravar os males presentes que já são de suma gravidade.

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ÚLTIMA HORA

A Nação retoma o luto que tem sido o seu traje ordinário há uns poucos de anos. A gala dura momentos, a tristeza é permanente.

Sua Majestade El-Rei morreu esta noite por volta das 7 horas e meia. O anjo da morte não se tem arredado da habitação dos príncipes como se fosse necessário avisar que eram iguais aos outros homens aqueles que nunca os consideraram senão como irmãos.

Não é a grandeza que inspira as gerais simpatias, é o infortúnio não merecido, é a idade das esperanças, das doces ilusões da vida, a idade da inocência e da virtude, onde não tem havido sequer motivo para a aversão e onde sobram razões para o amor.

Inclinemo-nos diante do túmulo do moço Rei, que se é mortal na desgraça, é o anjo na inocência (Revolução de Setembro, 12 de Novembro de 1861).

O elogio de Sampaio ao regime monárquico é sugerido na notícia que ele próprio dá sobre a nova regência de D. Fernando, até à chegada de D. Luís:

El-Rei, o senhor D. Fernando assumiu a regência do Reino, pela urgência de circunstâncias e voto do Conselho de Estado, prestando juramento de guardar a constituição e as leis e de entregar o governo ao sucessor do Trono, o senhor D. Luís, apenas este chegar da sua viagem. (…)

Nestas ocasiões angustiosas, a Nação chora o homem, chora o cidadão, chora o infortúnio, mas não chora o Rei. Esse não sofre, porque vive sempre. Rei morto, Rei posto. O homem desapareceu mas o lugar está preenchido. E esta homenagem não é a menos honrosa nestes governos. É a verdadeira. (Revolução de Setembro, 13 de Novembro de 1861)

A 14 de Novembro de 1861, D. Luís chegava a Lisboa para começar, de facto, o seu reinado – seria o último Rei português que Sampaio conheceria e aquele de quem seria primeiro-ministro:

Chegou hoje El-Rei, o Senhor D. Luís, às 7 horas da manhã. A bordo do vapor, na saudação de Rei, no tratamento de Majestade que lhe deu o presidente do Conselho, recebeu a notícia do golpe que enluta a Nação, não sendo nada a glória de reinar à vista da tristeza de um Povo inteiro, que é também a amargura dos seus príncipes.

No meio da dor pública, no meio de lágrimas suas e dos seus súbditos recebe o Augusto Príncipe o pesado cargo de reinar. Chorando, saberá o que são penas e o coração afeito às desgraças da vida e aos revezes da sorte levará para o trono a experiência e a humanidade que o guiarão no decurso do seu reinado. (Revolução de Setembro, 15 de Novembro de 1861)

O funeral de D. Pedro V é relatado com sincero pesar:

O sepulcro dos reis recebeu hoje mais um cadáver. O Povo despediu-se de um dos seus melhores amigos.

Neste último adeus, a dor foi igual para todos. Uma profunda tristeza afligia todos os corações, tornava pálidos todos os rostos, humedecia todos os olhos.

Choravam tanto os que tinham vivido junto do Rei, como aqueles que nunca lhe tinham falado e estavam habituados a vê-lo passar, a falar das suas virtudes e a sofrer com as suas desgraças.

Nunca a cidade se revestiu de tão pesado luto, nunca um Povo se despediu com mais saudade do seu Rei. É que a desgraça é a pedra onde se aquilatam os amigos e o Senhor D. Pedro V nunca desamparou os seus súbditos nas horas da desventura. (Revolução de Setembro, 17 de Novembro de 1861)

Morreu o Rei. Viva o Rei! D. Luís jura perante as Cortes. António Rodrigues Sampaio regozija-se pelo facto de o novo reinado ser regido pela Carta Constitucional, que regula o “pacto fundamental” entre a Monarquia e o Povo. É a sua veia liberal que vem sempre ao de cima:

Ratificou ontem El-Rei, o Senhor D. Luís, o seu juramento perante as Cortes Gerais da Nação. Está firmado o pacto fundamental entre o Rei e o Povo. Ao facto de reinar pelo direito da legitimidade, juntou-se o da aceitação e reconhecimento nacional. Está satisfeito o culto popular da religião monárquico-representativa (Revolução de Setembro, 19 de Novembro de 1861).

Após a ascensão de D. Luís ao Trono, a morte não se afastou do Palácio Real. O Infante D. João também adoeceu e morreu, o que alimentou as suspeitas do Povo, crescentemente convencido que estavam a assassinar a Família Real. O sentimento de revolta transformou-se em motins. António Rodrigues Sampaio, comedido, ponderado e realista, tentou, nessa conjuntura, exercer uma acção pedagógica junto do seu público para realçar que quer D. Pedro V quer os seus irmãos tinham morrido de causa natural e que os motins não tinham justificativa. Era sincera a sua solidariedade para com a má sorte da Família Real, expressa sempre em tom saudosista e lamentador, até laudatório, mas vigoroso (aproveita, inclusivamente, para se queixar da falta de actuação do Governo e acusar aqueles que instigavam às desordens), conforme se pode observar pelos exemplos a seguir inseridos:

Portugal geme debaixo do peso de infortúnios repetidos uns após outros. Morreu o seu Rei na flor dos anos, tinha morrido poucos dias antes o Senhor Infante D. Fernando, está gravemente enfermo S. A. o Senhor Infante D. João, convalesce lentamente o Senhor Infante D. Augusto e só resta incólume de tantos príncipes, El-Rei o Senhor D. Luís, cujo coração deve estar tristemente magoado e opresso. (Revolução de Setembro, 25 de Dezembro de 1861))

A capital presenciou ontem cenas de escândalo e vergonha. As propriedades e as pessoas foram atacadas, o Ministério sumiu-se e só não houve maior anarquia porque os desvairados eram poucos e o Povo ama a ordem pública.

A doença da Família Real serviu de motivo, porque o sentimento do amor e da dor é grande, o pretexto excelente e a paixão não costuma raciocinar. As suspeitas de envenenamento, posto que infundadas, lavram no ânimo da gente que não sabe explicar de outro modo a morte de todos os reis e de todos os príncipes e os velhacos que desejam achar vítimas para as suas especulações designam logo os seus adversários como autores do suposto crime. (Revolução de Setembro, 27 de Dezembro de 1861)

Expirou esta noite o Senhor Infante D. João. A Nação tem ainda coração para sentir mas já não tem lágrimas para derramar, porque a dor lhas tem secado todas.

Estão dois túmulos abertos e já lá cai no sorvedouro mais uma vítima. Excelsa e pura como as duas primeiras é ela e se para propiciar a divindade era necessário um tal sacrifício, nenhuma hóstia seria mais agradável a Deus.

Resignemo-nos, acatemos os decretos da Providência e roguemos-lhe que suspenda a vara da sua justiça, deixando de nos castigar no que temos de mais virtuoso e mais nobre na nossa terra. (Revolução de Setembro, 28 de Dezembro de 1861)

O auto de exame sobre o cadáver do Senhor Infante D. João, a que se precedeu no Palácio de Belém, tem desenganado quase toda a gente de que a moléstia que atacara a Família Real e contristara toda a Nação tem a sua origem em causas naturais e não é filha de nenhum plano tenebroso nem de nenhum crime nefando.

(…)

Este desengano é e era necessário menos ainda por causa da inquietação pública do que por causa da saúde e tranquilidade d’El-Rei e da sua angustiada família. Não podia nem pode haver consolação naquela Casa enquanto a perversidade ou a ignorância presunçosa insistir na ideia do envenenamento, em malsinar todos os servidores do paço, em arguir os amigos mais leais do Rei, em denunciar os que mais perdem e mais se afligem com os males que todos deploramos, em soprar a desconfiança em ânimos aflitos, tirando-lhes toda a esperança de lenitivo e apresentando-lhes o género humano como inimigo. O homem resigna-se facilmente aos decretos da providência, aceita com coragem o seu destino mas não é assim quando lhe dizem que está cercado de inimigos e traidores e que a mão que lhe ministra o alimento lhe propina nele o veneno e a morte. (Revolução de Setembro, 31 de Dezembro de 1861)

A ordem está restabelecida; mas à agitação da anarquia, sucedeu um torpor nos corpos políticos, um marasmo na administração pública, que inquieta e aflige o País.

Os senhores ministros estão sãos e salvos, mas o Ministério está morto e a nau do Estado anda boiando sem governo, à mercê da primeira tempestade que se levantar. (Revolução de Setembro, 12 de Janeiro de 1862)

Nota-se, pelos exemplos anteriores, que o estilo de Sampaio se mantém estável. Apesar de mais reflectido e contido, o jornalista continuava a zurzir nos seus adversários políticos, mesmo em circunstâncias de luto nacional, recorrendo abundantemente à adjectivação, à adverbiação e à linguagem figurativa (no âmbito da qual sobressaem as metáforas, comparações e repetições). Por outro lado, é um Sampaio amante da ordem e da estabilidade – incluindo um amante da estabilidade conferida pelo regime monárquico – que emerge do seu próprio discurso.

Outros assuntos relacionados com a Monarquia – alguns mais políticos do que outros – mereceram, igualmente, a atenção de Sampaio. Um dos mais interessantes tem a ver com a discussão pública, a que, surpreendentemente, António Rodrigues Sampaio não é indiferente, em torno das escolhas de D. Luís I para esposa e Rainha de Portugal:

Deliberadamente nos temos abstido de repetir e comentar as notícias que, com mais ou menos fundamento, se têm espalhado acerca do casamento do Rei. Associamo-nos com todo o partido liberal ao desejo de ver segura a sucessão da Coroa. A dinastia do senhor D. Pedro V é garantia das instituições, como as instituições que possuímos são garantia da dinastia. Instituições e dinastia são artigos inseparáveis no nosso credo, em que vemos o penhor da independência e prosperidade da nossa terra.

(…)

Na nossa opinião, a esposa do senhor D. Luís I será simplesmente a Rainha de Portugal. A escolha que melhor assegurar a felicidade doméstica do Rei será a mais feliz escolha.

(…)

Nos tempos em que vivemos, o casamento do Rei é e deve ser um negócio de família, mais que um negócio de Estado. A Nação tem direito a pedir ao Rei que assegure a sucessão, mas não tem direito a impor-lhe a companheira da sua vida íntima. (Revolução de Setembro, 4 de Julho de 1862)

Diga-se, no entanto, que a escolha de D. Maria Pia não foi pacífica – e não o foi sequer para alguns espanhóis e portugueses, que Sampaio classifica como sendo reaccionários:

Os órgãos do partido ultramontano reaccionário em Espanha mostraram-se empenhados em sustentar que o casamento do Senhor D. Luís I, Rei de Portugal, com a Princesa D. Maria Pia, filha de Victor Manuel, Rei de Itália, significava um plano maquiavélico, seguido com perseverança nas cortes de Turim, Paris e Lisboa, para expulsar da Espanha os Bourbons e fazer da Península Ibérica um só reino sob o ceptro da dinastia de Bragança. Os órgãos do mesmo partido em Portugal associaram-se ao empenho dos seus correligionários de Espanha e uns e outros trataram de explorar o sentimento de nacionalidade em proveito da sua causa. (Revolução de Setembro, 10 de Agosto de 1862)

A visita de Dona Isabel II, Rainha de Espanha, a Portugal foi, assim, justamente celebrada por Rodrigues Sampaio como sendo representativa da cooperação entre os países ibéricos, no respeito pelas respectivas independências:

É um notável acontecimento a visita que nos faz a Rainha de Espanha. Estimamo-lo e admiramo-lo com imparcialidade e justiça. Podem os dois países ser independentes, podem reger-se por leis diversas e o Povo ser amigo e irmão. No respeito mútuo conserva-se e corrobora-se a estima e a amizade. (Revolução de Setembro, 6 de Dezembro de 1866)

A 17 de Setembro de 1868, Dona Isabel II de Espanha foi deposta no decurso da revolução “La Gloriosa”, de cariz difusamente republicano. Terminava, de facto, um reinado marcado pela instabilidade política e militar e por um casamento escandaloso[14]. Sampaio, no comentário ao acontecimento, e já profundamente afastado dos seus antigos devaneios republicanos e revolucionários, oscila entre o lamento e o realismo, louvando até a revolta por não ter produzido vítimas. Mas o jornalista, sobretudo, fazia votos para que a instabilidade em Espanha não tivesse reflexos em Portugal:

(...) o trono de Espanha afundou-se no meio de uma revolução triunfante. Essa revolução foi gloriosa, porque não foi manchada com o triste e hediondo espectáculo dos fuzilamentos e execuções. Foi um imenso progresso naquele país e saudamos por ele os nossos vizinhos.

(…)

Não pensem porém que neste acto de justiça nos alegrou a queda de um trono. Fomos sempre severos para com a Rainha destronada, não participámos nunca do prazer das suas glórias, mas não amarguraremos o seu infortúnio nem a insultaremos na sua desgraça. A verdadeira inviolabilidade dela, a nossos olhos, começou desde que lhe caiu das mãos o ceptro e pisou a terra do exílio. O funcionário morreu, sobrevive a senhora que foi Rainha.

(…)

A dinastia de Isabel II caiu pelo mau uso que fez do poder. Conselheiros cegos e fanáticos julgaram que firmavam o poder com medidas que só cavavam a sua ruína.

(…)

Os males da Espanha podem reflectir-se em Portugal. A guerra civil é a que nos pode prejudicar mais.

(…)

Parece-nos, porém, que o maior perigo para Portugal vai passando. (Revolução de Setembro, 9 de Outubro de 1868)

Certo é que, estando vagante o trono espanhol, correram rumores da candidatura ao mesmo quer de D. Fernando quer do próprio D. Luís. Rodrigues Sampaio, alimentado pelo seu nacionalismo, tentou combater esses rumores, por vezes citando fontes oficiais mas anónimas:

Informações, que podemos considerar oficiais, asseguram-nos que o senhor D. Fernando recusaria absoluta e definitivamente a coroa de Espanha. (Revolução de Setembro, 18 de Fevereiro de 1869)

Algumas folhas de Madrid, aludindo a notícias de Paris, dizem que a Espanha já tem Rei, que esse Rei é D. Luís de Portugal, que abdicará a coroa deste Reino em seu filho primogénito, ficando seu avô, D. Fernando, regente até à sua maioridade, e que o filho de D. Luís sucederá na coroa de Espanha e Portugal, conservando cada Nação a sua autonomia particular e o seu Parlamento.

Seja qual for a origem da notícia e o intuito com que é propagada, temos fortes razões para crer que é inteiramente falsa. A candidatura do senhor D. Luís está posta de parte. Não sabemos se virá ainda à tela da discussão, mas cremos que não se pensa presentemente nela. (Revolução de Setembro, 26 de Setembro de 1869)

Mais tarde, é novamente o valor da independência nacional que Sampaio acolhe na rejeição, em absoluto, e com ironia, da ideia da união ibérica sob uma mesma Coroa:

Enquanto na Espanha, assolada pela luta dos partidos, ferida no coração pela guerra civil, convulsionada pela discussão sangrenta das mais exageradas ideias, ainda há alguém que julgue possível solução para aquele estado anormal e lastimoso a junção dos dois países da Península sob uma Coroa única. (Revolução de Setembro, 2 de Dezembro de 1874)

Apesar da sua crescente adesão ao regime monárquico, a proclamação da Terceira República Francesa, na sequência da Guerra Franco-Prussiana e da abdicação de Napoleão III, deixou Rodrigues Sampaio preocupado mas também contidamente feliz. Porquê? Porque acima de tudo, independentemente da forma de regime, o jornalista acreditava na democracia liberal e na preservação das liberdades dos cidadãos... e até na descentralização administrativa:

Et fugit velut umbra…

Uma catástrofe imensa esmagou o Segundo Império.

Um imenso triunfo regista a história alemã.

Um facto inaudito, único, que os mais longos olhares não lobrigavam nas trevas do futuro, cuja suposição pareceria horas antes uma loucura, acaba de assombrar a Europa.

Um império caiu.

Um homem que representava uma instituição, que a consubstanciava em si, cujo nome se identificava com toda uma história e de uma nação fez-se prisioneiro, à discrição, do rei e do povo a quem lançara dias antes o repto de morto. E não é tudo.

Sedan eclypsou Ulm.

Vai nos ares um estrondo imenso de imprecações e de júbilos, de maldições e hinos, de lamentos e surpresas, de aflições e orgulhos. Passa, temeroso, incendiado, o turbilhão das grandes cóleras e das grandes alegrias. Escuta-se o ruído dos grandes prantos e das grandes ovações.

A seu tempo se escutará a voz serena da história.

(A Revolução de Setembro, 6 de Setembro de 1870)

Acabou o império de Napoleão III e foi proclamada a República em Paris. É a transição ordinária e quase tradicional da França.

Não fazemos o juízo do ano político. Vemos os factos e noticiamo-los. As consequências dele hão-de repercutir-se em toda a Europa, hão-de despertar esperanças e incutir receios e convém que os governos dos estados estejam à altura da sua missão.

Nesta conjuntura, toda a prudência é necessária. Nunca foi mais indispensável que o governo fosse despido de preconceitos e convencido da sua missão. (A Revolução de Setembro, 6 de Dezembro de 1870)

Um dos motivos porque temos fé que desta vez a República em França não terá, como conclusão fatal, uma ditadura tirânica, é porque vemos que o Governo e a Assembleia trabalham com afinco e sinceridade em ampliar o movimento descentralizador. A Primeira República introduziu em França uma centralização mil vezes mais poderosa do que a da velha Monarquia, e aplanou por conseguinte o terreno para nele se sentar em bases tão firmes, que só a coligação estrangeira o derrubou, o Trono dos Bonapartes. Não foi mais sensata a Segunda República, e o despotismo de Napoleão III puniu (...) essa falta de previdência. Parece seguir um rumo completamente oposto a Terceira República, e por isso esperamos que, seja qual for a forma definitiva do Governo francês, encontrem as liberdades públicas num país descentralizado, e cônscio dos seus direitos políticos, um inabalável baluarte. (Revolução de Setembro, 19 de Outubro de 1871)

Também a proclamação da República Espanhola durante o Seiscénio Revolucionário não provocou grande perturbação a António Rodrigues Sampaio, ainda que a agitação no país vizinho provocasse sobressaltos em Portugal. O jornalista, profundamente nacionalista, acreditava, sobretudo, na capacidade de os povos ibéricos viverem em paz, no respeito pelas respectivas independências e pelas formas de regime político que cada qual escolhesse:

Os acontecimentos de Espanha têm produzido em Lisboa um justo sobressalto sem que por isso deixem de ter todos confiança no futuro do nosso País, que só poderá adquirir um carácter de gravidade, no caso de haver imprudentes que aproveitem o ensejo para agitarem os ânimos e tornarem difícil a situação. A Espanha, ou pelo menos o Congresso, adoptou a forma republicana, em presença da renúncia do Rei Amadeu. Era decerto a solução única na crise que atravessa. Tanto assim o julgaram todos que os próprios radicais, monárquicos do Rei Amadeu, se agruparam sem hesitação em torno da bandeira republicana. O que era uma necessidade para a Espanha no momento actual, não o é para países, que não tiveram de atravessar as longas provações, que atormentaram o país vizinho. Hoje as formas de governo mais diferentes coexistem na Europa ao lado umas das outras, sem que a proximidade da França republicana incomode as suas vizinhas monárquicas, nem lhes suscite os mais leves embaraços, sem que a vizinha da Espanha republicana nos deva incomodar a nós. (Revolução de Setembro, 13 de Fevereiro de 1873)

Anos mais tarde, durante o tempo em que Rodrigues Sampaio exercia o cargo de primeiro-ministro, A Revolução de Setembro publicou um artigo que poderá ter saído da sua pena. No texto lastima-se o crescimento do número de republicanos, embora, na sua essência, seja um ataque contra o Partido Progressista:

Crescem em número os republicanos, na proporção em que desaparecem os progressistas.

A explicação do fenómeno é óbvia.

Acontece coisa análoga com os comparsas, nos teatros, quando é mister reforçar um grupo, sem acrescentar o número de figurantes, trocando, à pressa, no entreacto, os trajes dos de uma parcialidade, que vão aparecer enfileirados entre aqueles de que simultaneamente eram inimigos no acto antecedente.

Os progressistas representaram, mas mal, o papel de monárquicos, na eleição de 21 de Agosto e não duvidaram em grande parte ir representar de republicanos logo na eleição de 11 de Setembro!

Do seu amor à Monarquia deram provas, como partido, aconselhando a abstenção, em nome da disciplina partidária, quando a luta se travava entre aqueles que denominaram de partido do Rei e os que são abertamente adversos às instituições vigentes.

Do seu amor à Monarquia deram prova, aconselhando nos seus jornais a cada correligionário que votasse como quisesse, que desprezasse a intimação da disciplina partidária, ao mesmo passo que os ditos jornais, desmentindo declarações espontâneas, suas e dos seus chefes, renovavam as antigas e caluniosas agressões a El-Rei!

Os que assim procederam… por amor à Monarquia, querem agora salvá-la, reformando a Carta!

Se eles reformassem os seus costumes políticos, se reformassem as suas incoerências, se pudessem reformar o seu passado, mostrar-se-iam seguramente muito mais leais servidores da Monarquia do que pedindo a reforma do Pacto Fundamental, que não souberam propor, sob sua responsabilidade, quando por vinte dois meses estiveram à testa da gerência dos negócios e da política do País.

O que há de novo na sua atitude de hoje? A desfaçatez da repetição, depois do que praticaram no poder, quando do mesmo golpe e com a mesma sanha queriam aniquilar os regeneradores, por serem seus adversários, e os republicanos, por serem inimigos do paço em que eles tinham querido pôr escritos!

(…)

O que há aqui de novo? A novidade do impudor com que mudam de opinião, ao sabor dos seus interesses? Dessa já haviam dado mostras sobejas em época anterior: não vêm agora causar surpresa!

Dispensaram facilmente a realeza, por dispendiosa e inútil. Dispensam-na agora outra vez. Mas, depois de a dispensarem, imploraram-lhe um lugar honrado junto do Trono; e obtido esse lugar, que só não pôde ter o pretendido qualificativo, afogaram-se na ambição de quererem ter a Coroa ao serviço exclusivo dos seus interesses partidários.

A soberania popular, que a esse tempo desprezaram e para que hoje tornam a apelar, precipitou-os do poder e condenou-os, de tal modo que nem sequer a candidatura do seu venerado chefe puderam fazer vingar, vindo lamuriar-se, porque os adversários o não haviam eleito. Nisto, ao menos, eram coerentes. Quem confessara haver vivido vida indecorosa à mercê dos contrários, não admira que à mercê dos contrários quisesse dever a vitória de uma candidatura, que não seria certamente muito decorosa assim.

(…)

Não felicitamos a república por esta vantagem que, devida a tal auxílio, é um revés.

A podridão e a desorganização, a inveja e as ambições não são elementos de força. A sua acção dissolvente é maior do que o aparente crescimento numérico que o escrutínio lhe deu. Não se acrescenta a riqueza com moeda falsa; e, na política, o partido, que o Povo repele energicamente da urna, é moeda que não tem os quilates da lei.

O Partido Republicano, que nunca esteve forte, está hoje mais fraco do que nunca, porque teve a fragilidade de deixar que votassem com ele os progressistas; e se o preço, porque consentiu naquela junção dos votos dos falsos monárquicos aos dos seus correligionários, foi a promessa de que eles advogariam com ardor a necessidade de reformar a Lei Fundamental do Estado, errou na veniaga, porque basta ser assunto que o desbaratado Partido Progressista escolhe para arma de oposição, para que tenha contra si levantada a opinião do País. (A Revolução de Setembro, 15 de Setembro de 1881)

Em suma, com base nos exemplos atrás referidos, parece efectivamente poder dizer-se que António Rodrigues Sampaio, ao longo do tempo, após experimentar os reinados de D. Pedro V e de D. Luís, se reconverteu em apoiante da Monarquia, abandonando os seus primitivos ideais republicanos, embora isso não tenha significado uma rejeição em absoluto da forma republicana de regime, desde que fosse essa a melhor forma de preservar as liberdades cívicas no contexto de uma democracia liberal.

6.5 A economia

As questões económicas e financeiras são recorrentemente tratadas por Rodrigues Sampaio. Os impostos, por exemplo, são um tema repetitivo – e não poderia ser de outra maneira, não só porque efectivamente os impostos pesavam cada vez mais por causa do ambicioso programa de obras públicas que estava em curso, mas também porque os jornais políticos se direccionavam, predominantemente, para a burguesia interessada nos negócios do Estado. Mas nessa matéria, as palavras de Sampaio, tendo em conta o seu destinatário presumido, buscam menos emocionar do que debater questões económicas com racionalidade. Eis, a título exemplificativo, um excerto de um artigo publicado no Revolução de Setembro de 28 de Junho de 1851, no qual aproveita para atacar a política fiscal do cabralismo e defender a de Saldanha:

O Governo reduziu as sisas da propriedade territorial a 5 por cento e extinguiu a das cavalgaduras. Estas medidas satisfizeram uma reclamação pública tão (...) repetida como (...) desprezada por esses finados estadistas, cuja ciência financeira consistia em desbaratar todos os impostos (...).

A sisa das cavalgaduras era uma das perrarias governativas da nossa terra. Havia um agravo particular neste imposto, em que a absurdidade se manifestava em todo o seu esplendor (...).

Sobre isto, a siza é uma escola de dolos e sonegações. (...) A diminuição do imposto é, decerto, um bem (...).

E antes de discutir sobre a maneira de lançar os impostos, é mister determinar aproximadamente a riqueza tributável. Ora, a riqueza tributável, entre nós, é (...) anulada pela carestia dos capitais. (...) A reforma preliminar para a reforma dos tributos deve ser a redução do juro (...).

Conhecemos unicamente três hipóteses (...). Ou reduzir o juro para ter impostos e com eles os bens materiais e morais da civilização. Ou diminuir os impostos para deixar continuar a subida da taxa dos juros. Ou tributar sem atenção ao preço dos capitais e impossibilitar todo o progresso da riqueza, esmagando o trabalho sob a pressão combinada do fisco e da usura. Deixar acumular as riquezas nas mãos dos capitalistas para auferir deles o grosso da receita pública é empresa árdua em relação à política e operação dificílima em relação à economia. (Revolução de Setembro, 28 de Junho de 1851)

A partir de meados do século XIX, a actividade bancária intensificou-se em Portugal. O recurso ao crédito aumentou, tal como ocorreu em Portugal no final do século passado e princípios deste. Nesse contexto, ganham especial relevância as palavras avisadas de António Rodrigues Sampaio:

Todos conhecemos a importância do crédito. Todos confiamos na sua eficácia. Todos desejamos os seus benefícios. Nesta questão não há escolhas nem parcialidades.

(…)

Não querem que constranjam o crédito. Pois seja assim, mas tomem primeiro a lição que têm a bondade de nos dar.

(…)

O crédito é bom, é excelente, prodigioso. Quem o duvida? Mas há-de ser o crédito de lei, o crédito fomentador, o crédito que nos renda, o crédito que nos deixe mais ricos, o crédito que nos acrescente em bens, o crédito que remunere quem o emprega sem empobrecer a quem o emprestou. (Revolução de Setembro, 7 de Março de 1853)

O crescimento da economia durante o século XIX acentuou as pressões inflacionistas, o que teve por consequência a carestia de vida, não apenas em Portugal, mas por toda a Europa. Contidamente, uma vez que no poder estavam os seus correligionários, Sampaio reporta a situação – ontem como hoje fazendo a comparação com o que se passava noutros países europeus:

Não encarecem só os cereais, encarece tudo. Encarece a carne, encarece o vinho, encarece a batata, encarece o arroz, encarece o bacalhau, encarece o açúcar, encarece o combustível e encarece o aluguer das casas.

É este o facto em que todos assentam, que ninguém nega, sobre cuja existência ninguém disputa. Mas é igualmente assentado que é um facto geral e que o que acontece aqui, acontece ao mesmo tempo em toda a Europa. (Revolução de Setembro, 1 de Dezembro de 1855)

Do exemplo acima emerge, efectivamente, um Sampaio engajado nas lutas pelo poder e envolvido profundamente nas discussões em torno da coisa pública, mas também conhecedor da situação real do País, com a qual contactava diariamente e que não hesita em reportar. A sua ascensão gradual ao poder não o afastou da realidade, o que em parte se deveu, certamente, à sua actividade jornalística e ao cultivo dos valores jornalísticos, entre os quais a intenção de verdade.

De qualquer modo, a política regeneradora, embora tenha dotado o País de infra-estruturas de que este carecia, provocou, efectivamente, várias crises financeiras – apesar dos apelos à calma lançados no Revolução de Setembro, jornal totalmente alinhado pelos regeneradores:

São bem favoráveis já as notícias da crise comercial e os receios desvanecem-se ante o apoio franco e decidido que o Governo não hesitou em conceder para evitar perigos e conjurar catástrofes que se anteviam iminentes. Não louvamos certamente imprevidências de qualquer ordem, que possam ser o motivo principal da crise aludida, mas também, à falta de exame cuidadoso, [não vamos] condenar sem defesa o procedimento daqueles que, na melhor boa-fé, se entregavam às operações de crédito triviais dos estabelecimentos bancários. (Revolução de Setembro, 12 de Maio de 1876)

Há em todos os acontecimentos graves uma coisa ainda pior do que o próprio perigo, é o medo dele, que não faz senão agravar-lhe os efeitos desastrosos: a perda de serenidade de ânimo centuplica sempre os resultados de uma calamidade, se é que muitas vezes não é ela mesmo a causa única do desastre. Foi o que aconteceu hoje na praça de Lisboa. Sem motivo suficiente, nem razão bastante justificada, começaram logo de manhã a afluir aos bancos os depositantes, os portadores de cheques e de notas, a levantar tumultuosamente dos estabelecimentos de crédito o numerário, com tanta persistência que os principais destes tiveram de declarar que suspendiam as suas transacções, depois de haverem feito importantíssimas restituições. (Revolução de Setembro, 19 de Agosto de 1876)

A dinâmica económica, contudo, não podia deixar ninguém indiferente. As exposições agrícolas e industriais que se sucediam no País e no estrangeiro alimentaram, com frequência, a pena de Sampaio:

EXPOSIÇÃO DE INDÚSTRIA AGRÍCOLA

Abriu-se ontem a exposição da indústria agrícola. Não houve quem não admirasse o adiantamento da nossa agricultura e os variados produtos que ela encerra. Deve-se ao senhor Aires de Sá Nogueira e às pessoas que o coadjuvaram muito louvor pelo zelo que tem desenvolvido neste assunto.

A caridade anda sempre ao lado do trabalho e bom é que onde se apresenta o produto dele, a caridade estabelece o seu assento. Foi por isso que duas nobres senhoras tiveram a feliz lembrança de procurar, nesta ocasião em que se tentou ostentar a riqueza da terra, haver alguns socorros para o estabelecimento das Irmãs da Caridade. (A Revolução de Setembro, 3 de Janeiro de 1852)

6.6 O ensino

O ensino foi outra das preocupações constantes de Sampaio, que já vinha desde os tempos de juventude em que ensinava os jovens da sua terra. A 29 de Março de 1853, por exemplo, o jornalista advoga a generalização da instrução primária como meio de emancipação do homem – nomeadamente dos que só através da educação poderiam almejar a uma progressão social ascendente. Porém, Sampaio também não deixa de colocar o acento tónico em problemas como a má qualidade dos professores:

A regeneração social só pode vir da instrução e assentar a sua base na instrução primária.

(…)

São precisos outros mestres e outro método de ensino. É verdade. A instrução primária está abandonada na máxima parte à ignorância e à incúria. O magistério não é honrado e o professorado perde em dignidade e consideração.

(…)

Aprender a ler como geralmente se aprende, não vale nada. Ensinar como se ensina é fazer embrutecer o discípulo. E o sistema constitucional sem o saber é inteligente. O cidadão não é um autónomo, é um ente inteligente. O homem-máquina, ou instrumento, não pode exercer nunca convenientemente os direitos do cidadão.

E não se pense que estamos mais atrasados do que estávamos no tempo dos frades. É engano. O professor inepto e rotineiro é desse tempo. A liberdade pode não ter sido bem compreendida, mas os seus frutos não são amargos.

Fala-se na pequena remuneração. É até certo ponto justa a censura, mas não o é no todo. À máxima parte dos professores podiam dar grandes ordenados, mas o que não podiam era dar-lhes com ele a ciência. Foram mal educados quando havia frades e não podem hoje aprender depois de velhos.

Há cadeiras que andam a concurso anos e anos sem haver quem as queira ir reger. Daqui nasce que o Conselho de Instrução Pública se vê obrigado muitas vezes a prover nelas temporariamente qualquer opositor que aparece. É um cego que lá vai conduzir outros cegos.

Multiplicar a instrução primária é necessário; mas multiplicá-la sem professores aptos é perder dinheiro e corromper os espíritos. Retribuição condigna é necessária para haver quem se dedique ao magistério. Haja os necessários mas todos bons. E na alternativa de ter poucos e bons, ou muitos e maus, preferimos a primeira.

É preciso tornar a instrução gratuita mas obrigatória. O homem tem interesse na instrução mas a sociedade também o tem; e se ele pode prescindir do direito que lhe é individual, a sociedade deve exigir o que é indispensável para o bom regime dela. Assim, como todo o cidadão é obrigado a concorrer para as despesas públicas, assim como é obrigado a pagar a sua contribuição de sangue, do mesmo modo o deve ser pagar-lhe o contingente das suas luzes, habilitando-se para desempenhar com inteligência as funções que é obrigado a cumprir sobre a terra.

Instrução primária, instrução profissional, eis os elementos da prosperidade futura. (Revolução de Setembro, 29 de Março de 1853)

Nos anos seguintes, o jornalista martelará incansavelmente no Revolução de Setembro a necessidade da generalização da instrução primária, quer como meio de emancipação social (pela educação, como ele próprio diz, o operário poderia converter-se em cidadão) quer também como meio de providenciar mão-de-obra tecnicamente capaz ao processo de industrialização do País. Interessante também na concepção sampaína de escola é a de que esta deveria ter um currículo que abarcasse as questões da moral e da religião, aspectos centrais do ideário de António Rodrigues Sampaio:

Em uma palavra, reformar a instrução primária não é proclamar bons princípios, nem fazer imitações ineptas, nem truncar sistemas, nem ser indulgente com pretensões inconvenientes: é fundar escolas onde se cultivem os espíritos infantes, imbuindo-lhes as sãs doutrinas da moral e da religião. Esta questão também é de fomento e sem ele dizer o que pode despender nesta obra, é imprudente empreendê-la. Não cuidem que tudo está nos mestres. São precisos caminhos, jardins, utensílios e pensões. Há para isto? Se há, metamos mãos à empresa. Se não há, não enganemos o público. (Revolução de Setembro, 15 de Abril de 1854)

O operário começa a ser hoje cidadão. O Estado encarrega-se da sua educação e instrução.

Acabamos de ler o regulamento provisório para o ensino prático nas oficinas e laboratório químico do Instituto Industrial. Encheu-se-nos a alma de prazer. (Revolução de Setembro, 22 de Setembro de 1854)

A instrução pública é um dos primeiros deveres morais da administração. Sem ela não há liberdade social, não há moralidade doméstica, não há salvaguarda da igualdade e da liberdade, nem verdadeira garantia política.

A propagação da instrução deve ser um apostolado de todos; apostolado fácil quando a administração o protege e concorre para ele com os recursos de que pode dispor. (Revolução de Setembro, 24 de Julho de 1866)

A atenção de Rodrigues Sampaio à educação e ensino estendia-se, de resto, ao ensino técnico, que ele via, igualmente, como garante da prosperidade do País e do operariado. Por isso, enalteceu a abertura das aulas no Instituto Industrial:

Abriram-se as aulas do Instituto industrial. A concorrência dos operários foi numerosíssima. As casas são pequenas para tamanho número de alunos. O digno director daquele (...) estabelecimento faz todos os esforços para remediar este inconveniente.

Nalgumas aulas já não se podem matricular mais discípulos.

Rogamos ao Ministério das Obras Públicas que não poupe esforços para animar este progresso. Esperava-se que o número seria ordinário e apareceu um número extraordinário. É porque este País está sequioso de instrução, mas tem conhecimento da necessidade e proficuidade dela. Há matéria-prima para muita coisa boa; o caso é sabê-la aproveitar.

Este conhecimento honra a classe operária da capital. Nós tínhamos conhecimento pessoal da sua dedicação, mas agora aparece um documento público. Os que mofavam da criação do Instituto, deviam reconhecer agora as vantagens dele.

O dinheiro que se gasta com a instrução é sempre uma soma produtiva. Instrução e comunicações são o elemento capital do espírito e do corpo. Pensavam aqui que só cuidávamos de interesses materiais, porque avaliaram o Instituto somente em relação aos professores. Somavam real a real os ordenados dos mestres e esqueciam o sustento espiritual do povo. Esse vai conhecer-se agora e por esse resultado felicitamos o País. (A Revolução de Setembro, 31 de Março de 1854)

É devido à sua crença na educação que Rodrigues Sampaio se regozija com o facto de Espanha aceitar os diplomas emitidos pelas autoridades portuguesas:

O Governo espanhol decretou uma providência que o honra e que nos honra. Essa providência é a que estatui que os diplomas passados nos estabelecimentos públicos de ensino em Portugal serão válidos em Espanha. (Revolução de Setembro, 16 de Fevereiro de 1869)

A 29 de Janeiro de 1856, Sampaio exige ao Governo, no Revolução, “o ensino de aplicação” – “Aprendam a ler, e aprendam a aplicar.” Aqui se revela, mais uma vez, a concepção pragmática do ensino que alimentava Sampaio. Ensinar sim, mas para aplicação do conhecimento à realidade.

Já a 16 de Março do mesmo ano de 1856, Rodrigues Sampaio escreve no Revolução de Setembro, a propósito da discussão parlamentar sobre liberdade de ensino, que “O que deseja garantir a liberdade é suspeito de querer permitir o abuso; o que vai atacar o abuso, aplica um remédio que ou vai comprometer a liberdade, ou vai limitar muito a área do ensino”. Regista que o assunto baixará a uma comissão parlamentar, podendo, ontem como hoje, “duvidar-se se chegará a algum resultado”. Para ele, de qualquer modo, o importante seria “atender às necessidades do ensino sem ofender os interesses legítimos dos professores”, isto é, a sua liberdade. No mesmo tom, saúda, a 6 de Novembro de 1857, a acção educativa da Associação Popular, que “com as suas escolas, não guerreia ninguém, amima, ilustra, esclarece”, dando corpo aos “esforços das classes laboriosas para criarem meios de educarem seus filhos” e “adquirirem instrução”.

6.7 A extinção dos vínculos de morgadio

Num texto publicado no Revolução de 5 de Março de 1856, Rodrigues Sampaio, solidário com os mais indefesos da sociedade, defende a extinção dos vínculos de morgadio. O texto é curioso porque começa por identificar, ontem como hoje, “a questão do adiamento” constante das medidas como sendo uma das mais bem conhecidas debilidades da Nação, agudizada pelo sistema democrático:

Veio a indispensável questão do adiamento, este expediente todo português, todo da nossa terra, todo popular e aristocrático, porque acompanha a sociedade em todas as suas classes. Adiar para estudar! Adiar uma ideia que disseram que estava na cabeça de todos (...) a fim de que a desobriga nos deixe mais livre e desassombrada a consciência (...). (Revolução de Setembro, 5 de Março de 1856)

No entanto, nesse texto, a verdadeira questão é, conforme se disse, a pugna pela extinção dos vínculos de morgadio, que ele associa – e aqui emerge o seu talento de economista fisiocrata autoformado – ao próprio progresso do País, numa linha eminentemente liberal, de defesa da pequena iniciativa privada, produtiva, contra os laços de subordinação que a tolhiam e impediam o dinamismo da própria economia agrícola:

a vinculação significa, em regra, a ruína das famílias, o desprezo da propriedade, a incúria da cultura, e a liberdade significa a produção aumentada, as culturas multiplicadas, a população crescente, os pântanos desecados e os brejos desbravados. O morgado representa o pardieiro, a lagartixa, a silva ocupando o lugar da videira (...).

Não nos falem em grande cultura, porque o morgado não a simboliza. O morgado simboliza a ausência da cultura. A grande cultura é independente dos morgados (...) e prospera até melhor sem eles.

Com o morgado, não há crédito, não há hipoteca, não há segurança, não há nada. O morgado é sempre menor, porque é administrador e não senhor. Ninguém contacta com ele senão a risco. Parece um fidalgo, e as mais das vezes é um verdadeiro pária.

Tal instituição não convém aos nobres nem ao povo. (Revolução de Setembro, 5 de Março de 1856)

De qualquer modo, a extinção dos vínculos de morgadio, na perspectiva de Sampaio, era essencialmente uma questão de justiça social. Era portanto, mais uma vez, um Sampaio justiceiro que se destacava nas páginas do Revolução de Setembro.

6.8 Justiça e Direito

A Justiça, ontem como hoje, era alvo de críticas. Por exemplo, a 15 de Janeiro de 1858, num artigo publicado, mais uma vez, no “seu” Revolução de Setembro, António Rodrigues Sampaio pugna pela moralização do sistema judiciário, ao mesmo tempo que critica o Governo, na linguagem figurativa e metafórica, compassada e repetitiva das ideias fortes, e também virulenta, a que habituara o leitor:

Dissiparam-se as trevas, acabou-se a ilusão. A moralidade que se quis levantar, a moralidade que foi apregoada (...), a moralidade que requeria o andamento à sindicância feita à Relação do Porto, a reforma da Justiça, o acabamento dos empregados corruptos e devassos, desapareceu, (...) os princípios eternos da justiça perderam a sua rigidez e carácter (...).

Do que se trata? De nada mais e de nada menos do que de condenar a administração da Justiça (...) e (...) o último despacho judicial (...) que (...) lançou no quadro da magistratura juízes ineptos e corruptos (...).

Não puniu os maus juízes que havia e acrescentou o seu número (...) e não ouvimos alegar a seu favor senão que eram antigos!

Antigos? Não sabíamos que a antiguidade da inépcia e da improbidade tinha direitos tão sagrados. Não sabíamos que o vício inveterado era tão digno de louvor e recompensa. Não sabíamos que a acumulação dos males produzia um despacho honesto e decente. (Revolução de Setembro, 15 de Janeiro de 1858)

Rodrigues Sampaio, que ensinou crianças na sua juventude, nunca perdeu a veia de pedagogo. Por isso, na sua actividade jornalística, com frequência tendeu a exercer uma acção pedagógica, procurando explicar o que se passava. Eis, nomeadamente, o que escreveu a propósito da introdução do registo civil, texto no qual mais uma vez vinca a igualdade entre os seres humanos:

Quem pede o estabelecimento do registo civil, pede uma coisa boa. Quem diz que o estado actual é mau, que muitos assentos de baptismo estão viciados, que outros talvez não estejam feitos, diz uma triste verdade confirmada por uma deplorável experiência.

(…)

Que é o registo civil? É o assento do baptismo, do casamento e do óbito. É a prova documental das três grandes épocas da vida que nos recordam que nascemos, que nos reproduzimos e que morremos todos segundo as mesmas leis. (Revolução de Setembro, 16 de Setembro de 1859)

Outras questões mais prosaicas, em matéria de Justiça e do Estado de Direito, também mereceram a atenção de Sampaio. Uma delas foi a insegurança, um tema recorrentemente em foco, no século XIX ou no presente, na comunicação social portuguesa, reflectindo simultaneamente a realidade e o sentimento dos cidadãos:

A estatística criminal publicada diariamente nos jornais apresenta a nossa sociedade num estado deplorável. Dá-se conta todos os dias de horrorosos atentados e de crimes gravíssimos. O público parece que se vai familiarizando com a narração destes desgraçados acontecimentos, notando contudo a sua frequência e multiplicação. (Revolução de Setembro, 5 de Agosto de 1863)

A aprovação de um novo Código Civil, há muito uma das preocupações de Rodrigues Sampaio, foi noticiada com regozijo pelo jornalista:

Votou-se hoje na câmara electiva o código civil e foi aprovado na sua generalidade por unanimidade. Foi um acto de grande tino. (Revolução de Setembro, 23 de Junho de 1867)

A pena de morte, que Portugal aboliu, pioneiramente, para os crimes civis, gerou forte discussão no País e Sampaio não ficou à margem dela. Foi um dos que apoiou o seu fim, apesar de considerar o princípio da inviolabilidade da vida humana “um palavrão sem sentido”. Mas isso não significava, para ele, deixar isentos os criminosos de castigos exemplares, em Portugal e nas suas colónias, independentemente da cor da pele:

A Câmara dos Pares votou hoje todo o acto adicional; e ainda durante a sessão foi recebido na Câmara Electiva. A única alteração que traz é na questão da pena de morte, que vem anunciada por estes termos: A pena de morte fica abolida nos crimes que a lei declarar políticos.

Foi remetido à comissão do acto adicional para dar sobre ele o seu parecer. (A Revolução de Setembro, 2 de Julho de 1852)

A civilização levanta-se contra a pena de morte e protesta contra a sua utilidade; mas os governos dos estados não têm podido ainda converter em lei os princípios filosóficos e longe de os aplicarem às colónias, regem-mas por leis de excepção.

Simpatizamos com a abolição da pena de morte, mas não simpatizamos nada, antes detestamos, os assassínios de que nossos irmãos são vítimas. Achamos justas todas as simpatias pelos pretos, que são como nós, filhos de Deus, mas não simpatizamos menos com os brancos que eles assassinaram. Achamos bárbara a pena de morte, mas achamos mais bárbaro o assassínio. (Revolução de Setembro, 16 de Fevereiro de 1861)

Querem saber como pensa o País sobre a questão da abolição da pena de morte?

Pensa que o Governo apresentou uma proposta a esse respeito depois de a ter anunciado no discurso da Coroa, que deixou passar toda a sessão, que houve umas poucas de prorrogações, que houve algazarra por causa de projectos insignificantes mas que não houve insistência para a discussão daquele, que não foi dado para ordem do dia e que ou o ministro não quis que se votasse ou a maioria se opôs à vontade do ministro. (Revolução de Setembro, 23 de Junho de 1864)

A Câmara, que tem escrito páginas tão brilhantes na história da civilização deste País, não pode deixar de aprovar a reforma das prisões.

Como se acham organizadas entre nós as prisões, longe de servirem para a regeneração moral do criminoso, servem para a sua depravação, longe de satisfazerem, contrariam o fim da pena. Cuidemos dos melhoramentos materiais do País, mas não descuremos os melhoramentos imperiosamente reclamados pela moral pública.

A legitimidade da pena de morte pode ser impugnada com boas razões em teoria. Mas os agrupamentos dos que a defendem não militam com aplicação ao nosso País. Para demonstrar que uma certa e determinada sociedade tem o direito de a aplicar, é necessário demonstrar que ela é necessária. Ora, uma longa experiência demonstrou que a nossa sociedade não precisa dela, para se defender.

A abolição da pena de morte, que os países mais cultos da Europa conservam ainda nos seus códigos, será sem dúvida um dos factos mais memoráveis da história da civilização de Portugal. Mas conservá-la e não ter necessidade de aplicar durante tantos anos, era já uma prova irrecusável da doçura dos nossos costumes e da civilização do nosso País. (Revolução de Setembro, 19 de Junho de 1867)

A Câmara Electiva votou hoje a abolição da pena de morte nos crimes civis. Nos políticos já ela se achava abolida pelo acto adicional.

Honra sem dúvida a Nação Portuguesa um tal acto e nós associamo-nos a essa honra. Mas não é também pequena a responsabilidade que os poderes públicos contraem por esta resolução.

Não nos seduzem os argumentos do sentimentalismo. As desgraças que aconteceram na família dos criminosos justiçados podem comover o coração de um homem sensível, mas a salvação da sociedade não se determina por esses motivos. O martírio dos que foram vítimas da honra que sobe ao cadafalso não é menos lastimoso e quem tirar do peito queixas tão amargas contra o castigo não deve ser tão seco para os gemidos dos inocentes que morreram ou ficaram desgraçados pela ferocidade dos criminosos.

Deixem-se de nos falar na inviolabilidade da vida humana que é um palavrão sem sentido. O primeiro que não reconheceu esse princípio foi o assassino e o que quer privar da vida o seu vizinho sujeita-se a que este, para se defender, não respeite a sua.

Quem reconhece o direito da guerra, reconhece a legitimidade da pena de morte e não seremos nós os que tenhamos de acusar a consciência de todos os legisladores e de todos os povos, por terem sido assassinos, condenando à morte os que o foram. E quando Deus disse no decálogo – não matarás – não formulou o preceito para a sociedade não punir os criminosos, mas prescreveu uma regra para os povos por cuja infracção seriam punidos.

Já se vê que a nossa opinião é pela legitimidade da pena de morte. Confessamo-lo bem alto.

Pode porém a sociedade prescindir dela? É ela indispensável? A sua existência faz com que o jurado julgue não provado o crime para não aplicar a pena extrema? Nesse caso, a questão é de conveniência, é de justiça, é da melhor aplicação das leis.

Se, abolida a pena de morte, o júri condenar a trabalhos perpétuos os que até agora absolvia para não os ver subir ao cadafalso, a extinção de tal pena foi excelente e os seus resultados deviam ser benéficos. Veremos castigados crimes que ficavam até aqui impunes e isso melhorará a sociedade.

Por estes motivos, aplaudimos a abolição. (Revolução de Setembro, 22 de Junho de 1867)

6.9 O investimento público

Sendo um dos aspectos do programa da Regeneração o progresso material do País, a construção de vias de comunicação constituía um dos interesses de António Rodrigues Sampaio. A ferrovia, nesse contexto, assumia particular importância – e Rodrigues Sampaio bem o adivinhou.

A questão do caminho-de-ferro que, atravessando a Espanha nos deve ligar com a Europa, parece felizmente aproximar-se de uma solução. O Governo, depois de ouvir o parecer de uma comissão especial, (…), publicou, no Diário nº 113 de 1852, um programa de concurso para a construção daquela linha a vapor. Temos bem fundadas esperanças de que se hão-de apresentar empresas idóneas e que o Governo poderá enfim realizar este pensamento altamente económico e civilizador. (Revolução de Setembro, 14 de Junho de 1852)

Diga-se que a construção de ferrovias, no início, foi tudo menos pacífica – ontem como hoje, o investimento público é polémico quando se faz à custa do endividamento do Estado. António Rodrigues Sampaio, nessas circunstâncias, não regateou esforços à política desenvolvimentista:

O caminho-de-ferro, mesmo antes de se inaugurarem os trabalhos, mesmo antes de se aplanar o primeiro metro de terreno, antes de se lançar à terra o primeiro coxim e de assentar o primeiro rail, tem sido batido em brecha pelos campeadores mais ou menos hábeis da imprensa retrógrada de todas as cores. Têm-no olhado por todos os lados, têm inventado contra ele todas as objecções odiosas, têm esgotado contra ele todos os recursos da dialéctica e todos os brados da eloquência declamatória. Antes de servir à viação, o caminho-de-ferro tem servido de tema à sofística dos ascetas da cidade, tem servido de mote às glosas dos improvisadores terroristas, tem servido de sudário às exclamações patéticas dos flageladores dos interesses materiais. Os Catões censores da nossa idade têm-lhe feito sentir todo o peso da sua beata indignação e têm-no condenado à face dos seus inexoráveis éditos sumptuários. (Revolução de Setembro, 2 de Maio de 1853)

De qualquer modo, a 9 de Maio de 1853, Sampaio encontrava razões para louvar o empreendimento: “Celebrou-se ontem a festa da inauguração dos trabalhos do caminho-de-ferro. Foi um dia de regozijo nacional.” A abertura de ferrovias e de estradas, elemento importante da política regeneradora, era, de facto, verdadeiramente apoiada por Rodrigues Sampaio:

Parece que nos dão licença para termos caminhos-de-ferro. Agora é lícito acreditar.

(…)

O caminho-de-ferro é um instrumento económico, não é o fim da sociedade. É uma coisa boa, mas não basta. Esse melhoramento não dispensa outros, exige-os e facilita-os. A viação deve ser completa. (Revolução de Setembro, 7 de Julho de 1853)

É devido à sua crença na política de desenvolvimento de infra-estruturas de comunicação e de industrialização do país que a 24 de Março de 1858, estando os seus adversários do Partido Histórico, do Duque de Loulé, no Governo, o jornalista se insurge, com algum ironia na comparação com a obra do Governo de Saldanha, contra o atraso na edificação das vias e comunicação de que o País carecia:

Esta administração (...) anunciou que ia regenerar o País por preço cómodo. As obras ficaram no mesmo estado. O caminho-de-ferro (...) ficou no mesmo sítio. A estrada de Coimbra ao Porto, que devia estar acabada e perfeita, mandou-se remendar (...). Chamaram um desperdício o fazer-se a do Carregado a Coimbra em nove meses, e por isso empregam o maior vagar e prudência na do Porto.” (Revolução de Setembro, 24 de Março de 1858)

E nesse mesmo texto, explorando a intertextualidade com o célebre folheto da Patuleia O Estado da Questão, lança – “Eis aí o estado da viação!”.

O investimento em infra-estruturas de comunicação e na educação – temas fortes da política regeneradora e do fontismo – era efectivamente caro a Sampaio:

Dai ao povo estradas e dar-lhe-eis trabalho; dai-lhe ensino e dar-lhe-eis comodidade e riqueza, força e moralidade; facilitai-lhe o exercício de todos os direitos e desenvolvereis e liberdade. (Revolução de Setembro, 1 de Setembro de 1853)

Nesse contexto, a inauguração (experimental) do caminho-de-ferro não passou despercebida ao jornalista:

Estreou-se ontem o caminho-de-ferro. Estiveram nesta estreia umas cem pessoas, entre elas algumas senhoras. Só conhecemos madame Duff.

O comboio partiu das proximidades de Sacavém – um pouco além da ponte. A via-férrea corre paralela à estrada ordinária; vai entre ela e o rio.

Fizeram-se três carreiras. O espaço percorrido era de perto de três milhas. Não se podia empregar a máxima velocidade.

(…)

Não se experimentou só o caminho-de-ferro: visitaram-se os trabalhos. (Revolução de Setembro, 10 de Julho de 1854)

A introdução da ferrovia tinha, na verdade, um carácter emblemático no âmbito da política regeneradora. No entanto, a questão do caminho-de-ferro foi uma autêntica novela política, por vezes escandalosa, muito parecida com a questão de hoje do comboio de alta velocidade. O seu cariz de “acontecimento em desenvolvimento”, do qual se quer saber o fim, levou os jornais a acompanharem-no. De um lado, ontem como hoje, estavam os que defendiam o investimento público em infra-estruturas como forma de garantir o progresso do País, mesmo à custa do agravamento do endividamento externo e do défice, linha seguida pelo próprio Sampaio; do outro estavam os que aconselhavam contenção no investimento público por causa dos constrangimentos orçamentais. Pelo que Sampaio vai escrevendo no Revolução de Setembro, entre lamentos e regozijos, é efectivamente possível acompanhar a saga – e a polémica – da introdução do caminho-de-ferro em Portugal:

A questão dos caminhos-de-ferro fica adiada por mais um ano.

(…)

Ora, adiar os caminhos-de-ferro é adiar tudo nesta terra, tudo, tudo – até a moralidade, tão exaltada e preconizada por uma certa gente que a tomou por arrematação e que apenas cede algum bocadinho dela aos seus escolhidos. (Revolução de Setembro, 13 de Julho de 1856)

Não é necessário que a Regeneração fale, basta que falem as suas obras. Estes discursos são mais eloquentes, estas vozes mais persuasivas, estes argumentos mais convincentes.

Vai abrir-se o caminho-de-ferro de Lisboa ao Carregado. O princípio foi mais forte que todas as contrariedades, a constância venceu a indolência, o progresso condenou a rotina e a ideia nova vai florescer à vista, por não dizermos apesar de todos os seus contraditores. (Revolução de Setembro, 276 de Outubro de 1856)

Inaugurou-se hoje [28 de Outubro] solenemente o caminho-de-ferro de Leste. Sua Eminência, o Cardeal Patriarca, lançou as bênçãos às locomotivas e às carruagens e o céu interveio na obra dos homens. Assistiram Suas Majestades o Senhor D. Pedro e o Senhor D. Fernando, os senhores Infantes D. Luís e o Senhor D. João, as senhoras Infantas irmãs d’El-Rei, as senhoras infantas D. Isabel Maria e D. Ana de Jesus e muitas outras pessoas de todas as ordens da sociedade. (Revolução de Setembro, 29 de Outubro de 1856)

Acabaram-se as ilusões a respeito do caminho-de-ferro. Não está nada feito. Voltámos ao princípio.

O homem do grande crédito, o capitalista construtor, empreiteiro ou o que quer que era, que em 1857 fazia parar os paquetes na carreira, o predestinado que, estipulando quatro anos para a conclusão do caminho-de-ferro, prometia dá-lo pronto antes do fim dos três, o concessionário prestigioso que principiava os trabalhos antes de formar a companhia, desapareceu!

Não só não concluiu a obra, mas nem sequer a começou. (Revolução de Setembro, 1 de Março de 1859)

Começou hoje na Câmara Electiva a discussão sobre a compra do caminho-de-ferro do Barreiro às Vendas Novas por 340 mil réis, mais do que dava por ele a companhia inglesa concessionária do das Vendas Novas a Évora e Beja. (Revolução de Setembro, 13 de Agosto de 1861)

Aprovou-se na Câmara Electiva o contrato da compra do caminho-de-ferro do Barreiro às Vendas Novas, contrato indecente na forma e prejudicial na essência. Consumou-se um grande escândalo que o público sente, que a opinião indigita e que a maioria reprova nos corredores e apoia na Câmara. Escândalo de que os ministros se andam a justificar pelos cantos, declarando-se coactos, por que depois de passada uma quadra em que os partidos declaravam coacto o Rei, devia vir outra em que os ministros tivessem a imbecilidade de se declararem vítimas, quando os princípios exigem a sua liberdade de acção ou o sacrifício das pastas quando não as podem sustentar com honra. (Revolução de Setembro, 14 de Agosto de 1861)

Bom é que se vão acostumando a apreciar com justiça as empresas úteis. Andaram tanto tempo a clamar contra os caminhos-de-ferro, procuraram opor-lhes tantos embaraços, que admira como agora lhes reconhecem as vantagens.

Sentimos alegria em ver alegres os contrários, proclamando o que já quiseram exterminar. Ainda nos lembra o tempo em que os patriotas esclarecidos que hoje estão da parte do Governo clamavam contra estes desperdícios dos caminhos-de-ferro e para mostrarem a sua competência diziam que por aquele meio de viação só se podiam transportar passageiros e objectos de pouco peso e volume!

Foram agora a Évora, o povo aplaudiu a chegada da locomotiva e os pascácios julgaram que aqueles aplausos eram a eles! Era o caso da mosca que julgava ser ela quem puxava o carro, quando só ia pousada no timão.

Esse movimento que vedes, esse entusiasmo que presenciais, é o triunfar da ideia da Regeneração que vós combatestes, é a exaltação dos homens que vós desejais deprimir, é a sua canonização. (Revolução de Setembro, 16 de Setembro de 1863)

Abre-se amanhã o caminho-de-ferro entre Lisboa e o Porto. É uma festa da oposição, é uma gala para o País. Podem bem sofrer-se injúrias e motejos quando os resultados são tão brilhantes e quando os mesmos que intentaram impedi-los se querem depois dar como seus colaboradores. (Revolução de Setembro, 7 de Julho de 1864)

É geral o clamor contra o serviço do caminho-de-ferro de Lisboa ao Porto. A demora no trajecto é grande e parece indesculpável.

Pelo actual horário, a demora no comboio do correio para fazer todo o trajecto é de 10 horas e meia. Diz-se que a distância é de 333 quilómetros. E a demora nos comboios mistos é de 14 horas.

De Paris a Bruxelas, há 344 quilómetros de distância, isto é, mais 11 quilómetros do que de Lisboa ao Porto. Pois o comboio do correio faz ali o trajecto em 8 horas e o comboio misto fá-lo em 12 e meia. (Revolução de Setembro, 15 de Julho de 1864)

Ali, naquela ponte [D. Maria Pia], no complemento daquela 5ª secção do caminho-de-ferro do Norte, ou o Sr. Barros e Cunha ou ninguém. Pois não combateu ele tanto outrora o acordo feito entre o Governo regenerador e a companhia, acordo de que resultou essa maravilha artística, esse poderosíssimo veio de progresso que o Porto saúda? (…) As saudações, as alegrias, os votos de animação e de esperança dos portuenses, os parabéns do País inteiro, poderiam ser recebidos, sem constrangimento ou disfarce, se os regeneradores lá não estivessem. Mas estavam. Ironias do destino. (…) Rodeado dos homens, que quisera imolar à (...) sua pompa ministerial, e que ali iam não como partido, sim como portugueses, saudar e honrar o progresso nacional (...), a grande transformação (...) de que aquela ponte [D. Maria Pia] pode ser alteroso monumento (...) a (...) ligar o Porto a Lisboa e as margens do Douro com aquele arco assombroso (…). (Revolução de Setembro, 6 de Novembro de 1877)

Correlatamente às questões relacionadas com o investimento público nas infra-estruturas de que o País carecia, Sampaio não esquece as possessões portuguesas no mundo. Orientando-se para uma economia ligada ao ultramar, exige “a reforma da marinha”, fulcral “Numa nação que só tem importância (...) pela vastidão do seu território colonial” (Revolução de Setembro, 18 de Janeiro de 1851), pedindo, portanto, para ela, investimento e a reorganização do quadro da Armada, mercê do recrutamento e instrução de “pessoal inteligente e activo” (Revolução de Setembro, 25 de Julho de 1851).

6.10 A libertação dos escravos, o caso Charles et Georges e a política colonial

Em 1856, Sampaio aborda um tema socialmente bastante mais relevante: a libertação dos escravos. Os sentimentos cristãos de António Rodrigues Sampaio e o seu constante condoimento pelos mais fracos e humildes vêm, aí, à tona. O que é interessante é que nessa questão, em que toma a sua voz pela da Nação e interpela directamente a Santa Sé, se nota o fel que nutre pela Igreja Católica, que considerava ter-se afastado dos preceitos cristãos[15], ao mesmo tempo que introduz, sabiamente, a defesa da opção governamental de não ir tão longe quanto se poderia:

O Governo decretou a maneira como os escravos nas nossas províncias ultramarinas podem obter a sua liberdade. Foi um grande progresso moral e uma grande lição (...). E ao mesmo tempo que obedecemos ao princípio religioso e cristão, atendemos aos interesses criados à sombra do abuso (...) legal que fomos forçados a reconhecer. Indemnizamos o senhor e restituímos a liberdade ao homem.

Roma, não queremos mais o teu presente, e renunciamos à faculdade que nos deste na Bula de Leão X, expedida em 1514 (...), em que nos permitis subjugar e reduzir à escravidão perpétua as pessoas dos domínios que tenhamos conquistado e conquistássemos, convertendo tudo em nosso uso e utilidade. Essas pessoas, queremos convertê-las, mas para Cristo, e considerá-las como nossos irmãos, assim como ele as considerou. Se tu, Roma, nos dás o direito de escravizar, de que a religião poderia prescindir, e de que Cristo prescindiu, o Parlamento português, o seu Governo, ou antes, toda a Nação, só quer (...) sem que ninguém lho dê, o direito de libertar. Não queremos o homem como um escravo, queremo-lo como filho de Deus e connosco irmão.

E não fomos ainda tão adiante quando desejaríamos ir. Vamos pouco a pouco por via desse monstruoso direito que assentava na escravidão e porque se devemos atender à liberdade do homem, também devemos atender à ordem pública, e muito principalmente à tutela e defesa dos mesmos até hoje escravos, que seria perigoso lançar no mundo sem protecção (...).

É por esta razão que a lei vai tímida e não audaz (...).

Em Outubro de 1858, um grave incidente motivou uma crise diplomática com a França. Tudo foi detonado pelo apresamento, pelas autoridades coloniais portuguesas, do navio francês Charles et Georges, em Moçambique, precisamente por suspeita de tráfico de escravos. A França exigiu uma indemnização. Nesse contexto, o orgulho nacionalista de Sampaio veio ao de cima – o jornalista preconizava o diálogo directo com os franceses:

Nem precisamos de esbravejar contra a França nem de nos ir esconder detrás das naus inglesas. Basta-nos Deus e o nosso direito. Discutamos e, se a França tiver razão, dar-lha-emos; se nós tivermos, ser-nos-á feita justiça.

(…)

Será verdade que em Junho o senhor visconde de Sá dirigiu uma nota ao senhor marquês de Loulé, que se fosse enviada logo ao ministro da França teria terminado a questão do Charles et Georges? (Revolução de Setembro, 19 de Outubro de 1858)

A 26 de Outubro de 1858, um outro artigo dá conta do orgulho nacionalista com que António Rodrigues Sampaio encara a honra de Portugal. No texto, Portugal surge vitimizado. O enquadramento é de que se trata de um País pequeno, mas justo, vítima da arbitrariedade de uma potência poderosa:

Se temos a justiça do nosso lado, a violência não nos humilha, porque a pequenez não degrada ninguém. Deus não nos ordenou que fôssemos grandes e poderosos, ordenou-nos que fôssemos justos. A injustiça (...) não desonra a vítima, desonra o opressor (...). Somos pobres, mas não é necessário regatear alguns contos de réis com quem não quer reconhecer, a nosso respeito, menos ainda o nosso do que o direito público europeu (...), estabelecido por iniciativa da França. (Revolução de Setembro, 26 de Outubro de 1858)

O curioso é que, no mesmo artigo, para obter ganhos políticos, Sampaio culpa o Governo por não ter dado uma resposta eficiente à questão, o que implicaria recorrer à intermediação britânica. Para isso, usa uma série de interrogações retóricas que intensificam o dramatismo da prosa:

Mas agora que o facto passou, não poderemos inquirir se um Governo vivo teria obstado a este resultado? Não poderemos queixar-nos da injustiça do governo francês e da imbecilidade do nosso? Não poderemos arguir a nossa própria imprudência e achar em alguns actos a causa do azedume com que a França nos tratou, sendo a reclamação da entrega da barca talvez mais pretexto do que um motivo? (...) Sendo esta reclamação sobre (...) escravatura em que a Inglaterra podia (...) intervir, foi esta reclamação comunicada a tempo ao gabinete inglês e ficou o nosso bem seguro da parte que o governo britânico tomaria neste negócio? Fez-se isto ou soube o governo inglês desta questão apenas pela vinda das naus francesas? (Revolução de Setembro, 26 de Outubro de 1858)

No mesmo texto de 26 de Outubro de 1858, Sampaio critica, ainda, as provocações à França feitas pela imprensa pró-governamental, insinuando que a liberdade de imprensa tem de ser regida pelo princípio maior da responsabilidade:

A imprensa ministerial (...) começou a tratar o governo francês de um modo inconveniente, louvou o nosso (...) e arguiu ora a sua virtude e a sua honra, ora apodou o governo francês de querer exercer uma propaganda absoluta, e pretendeu dar à França lições de liberdade.

Era justo que déssemos às grandes nações exemplos de cordura, mas era arriscado que lhes fôssemos dar lições. Governamo-nos tão mal, somos tão pequenos, que nos tornamos ridículos quando nos começamos a ensoberbecer. (...) Para que havemos de provocar as nações fortes (...)?

A imprensa é livre, o Ministério não a devia nem a podia reprimir, mas podia e devia aconselhar os seus amigos (...). Que a imprensa da oposição desacate as potências estrangeiras, aí está a lei que a pune (...), mas para a imprensa ministerial não é assim. (...) Não acolheriam os jornalistas esta indicação do bom senso? (Revolução de Setembro, 26 de Outubro de 1858)

Portanto, pode dizer-se, a partir do texto anterior, que Sampaio cria na liberdade de imprensa não como valor absoluto, mas sim como um direito a ser exercido com responsabilidade, o que talvez explique as suas acções limitadoras dessa liberdade quando exerceu, ele próprio, cargos governativos.

De qualquer modo, nesse mesmo dia de 26 de Outubro de 1856, é noticiado o fim do caso:

Terminou a questão das reclamações francesas. Eis aqui as conclusões da nota do Governo português enviada ao ministro de França, como se lêem no Jornal do Comércio, confirmadas pelo Opinião:

1.ª O Governo português, não podendo resistir à violência que lhe impõe a França, entrega a barca;

2.ª Tendo o governo francês rejeitado o arbitramento de uma terceira potência no ponto de direito, o Governo português rejeita também o arbitramento com respeito à indemnização;

3.ª Apresente o governo francês a conta da indemnização que será logo paga.

O acontecimento não surpreende ninguém. O governo francês podia ser justo e não o foi; podia e devia ser generoso e não o quis ser.

(…)

Mas o que pedimos sobretudo é que aprendam no revés. Não pensem que a entrega do Charles et Georges converteu o ressentimento em amizade. A nós não nos envergonha a injustiça, mas deve-nos envergonhar o provocá-la por falta de sisudez, por bravatas desconchavadas ou por não saberem usar do nosso direito. Temos muito que corrigir entre nós para dispensarmos conselhos a estranhos e para os incitarmos, tendo depois de nos entregarmos à discrição. (Revolução de Setembro, 26 de Outubro de 1858)

Todavia, as repercussões do incidente do Charles et Georges continuaram a agitar por muito tempo a política portuguesa, conforme se pode ver pelo seguinte artigo de Sampaio já quase no final no mês de Dezembro de 1858:

Quanto mais se discute a questão do Charles et Georges, mais convencido se fica da incapacidade do Governo. Quem hoje ilustrou mais a questão foi o senhor visconde de Sá da Bandeira.

Toda a gente perguntava o que faria a Inglaterra. Solidária connosco na abolição do tráfico da escravatura, denunciando os que se empregavam nele, obrigada pelas suas próprias promessas a não consentir que Portugal sofresse injúria de ninguém pelos esforços que fizesse para a execução do tratado, era de esperar que tomasse parte na responsabilidade que lhe cabe nesta obra humanitária. Num dos documentos lia-se que o governo inglês não tinha dado instruções ao seu agente por não ter sido informado, mas acreditava-se que seria só desculpa ou antes descuido do nosso Governo, mas foi mais alguma coisa.

Com aquele carácter de franqueza que transluz em todos os actos do nobre visconde, Sua Excelência declarou que o Governo português não recorrera à intervenção inglesa, porque estando a Grã-Bretanha em boa harmonia com a França e tendo grande parte do seu exército na Índia, não era de esperar que quisesse suspender as suas relações com o Império Francês, podendo provir daí uma conflagração europeia e que não se deve pedir aquilo que não há esperança de se obter.

Esta resposta decidiu a questão. O senhor visconde respondeu pela Inglaterra, a qual, decerto, não agradecerá a resposta, porque revela a sua fraqueza, mas agradece, decerto, o não se ter apelado para ela, porque a dispensaram de dar qualquer resposta.

No apelo para Inglaterra não íamos pedir favor, íamos pedir a um sócio numa empresa humanitária o contingente a que se havia obrigado. Não recorrer a ela, reconhecendo o direito de o fazer, é confessar o desmazelo; mas dar desculpas que só a ela competia dar, é zelar mais o crédito de Inglaterra do que o nosso próprio. (Revolução de Setembro, 21 de Dezembro de 1858)

O caso do Charles et Georges constituiu, assim, mais uma ocasião aproveitada por Sampaio para criticar o Governo, mas também a desumanidade do esclavagismo, o que o leva a concluir o ano de 1858 com a seguinte interrogação: “Terminou a questão [do Charles et Georges] ou começa agora? A da barca prezada terminou, a do tráfico ou colonização começa.” (Revolução de Setembro, 31 de Dezembro de 1858)

Diga-se, no entanto, que Sampaio não via com maus olhos o colonialismo, muito pelo contrário. Por isso, a repressão da revolta dos Dembos, em Angola, pelas autoridades portuguesas foi vista por ele como uma necessidade:

Não foi novidade a revolta dos Dembos conhecida há muito em Lisboa, e acerca da qual dera o Sr. ministro da Marinha, na Câmara, as mais satisfatórias explicações. Os incidentes, de que se teve agora conhecimento, são dos que infelizmente se devem prever quando se empreende uma campanha mais ou menos importante. Apesar do sucedido, vê-se contudo que o digno governador daquela importante província ultramarina [de Angola] dispõe de meios suficientes para comprimir a insurreição, e as últimas notícias atestam que está chegando ao seu termo esse desagradável conflito. (…) Quando há incidentes desagradáveis é que se pensa de súbito nas colónias, e quase sempre para se lamentar a incúria da administração, e o desleixo dos governantes. (Revolução de Setembro, 12 de Maio de 1872)

Das palavras do jornalista infere-se, ainda, que efectivamente o que se passava no ultramar era pouco conhecido em Portugal. As colónias eram notícia unicamente quando algum acontecimento impactante aí tinha lugar.

6.11 A emigração

A 21 de Julho de 1851, Sampaio reprova duramente a emigração para o Brasil, relembrando o sofrimento dos portugueses por ela tentados. Ao mesmo tempo, explicita, argutamente, os aspectos que teriam de ser corrigidos no País, a braços com as suas assimetrias regionais, para evitar a emigração:

Os emigrados para o Brasil começam a sofrer desde que põem pé nos navios (...). Nas viagens, alimentos mesquinhos e insalubres; no Brasil, locações de serviços que equivalem à venda do corpo. (...) Os emigrados não são mais do que fardos de fazenda (...).

A nossa emigração não é um benefício, é um dano (...), [pois] entre nós o que mais falta é gente. Falta para multiplicar, variar, activar e embaratecer o trabalho. Falta para avolumar o rol dos contribuintes e engrossar o tesouro. Falta para revezar em mais longos prazos o serviço militar (...). Falta para estender e condensar as populações, para tornar a comunicação uma necessidade, para encurtar os ermos, para diminuir as facilidades do crime (...).

Se apresentardes aos minhotos provisões e cavalgaduras para virem para o Alentejo ou um navio mal armado e mal abastecido para navegarem para o Brasil, vê-los-eis saltar imediatamente para o convés (...). Se depois os fordes visitar às roças, achá-los-eis extenuados de trabalho, mas sempre com a esperança de voltarem (...) abarrotados de dinheiro.

(...)

E por que não vêm eles para as margens do Tejo e para além do rio? Porque estão lá os morgados (...) e usurários (...). Porque a terra se acha na sua brutal natureza. Porque faltam capitães para o seu granjeio preparatório (...). Porque não há comunicações (...). Porque, enfim, umas das nossas províncias pertencem a este século, e outras a idades remotíssimas.

Capitais baratos, comunicações fáceis, liberdade de terra, eis aqui a estrada da regeneração material. (Revolução de Setembro, 21 de Julho de 1851)

6.12 As Irmãs da Caridade

O lado cavalheiresco de António Rodrigues Sampaio, e a sua enorme apetência para defender aqueles que via como injustiçados, revela-se, também, no vigor com que se arvora em paladino de três Irmãs da Caridade, francesas, contra as quais alguma imprensa investira por irem ocupar o convento das religiosas Trinas de Mocambo:

Estão aí algumas Irmãs da Caridade no Asilo da Ajuda. Essas Irmãs da Caridade são francesas e cremos que vieram do seu país porque de Portugal as mandaram vir.

Em 24 de Maio último, as religiosas Trinas de Mocambo foram intimadas (...) para despejarem o seu convento, a fim de serem recolhidas nele as Irmãs da Caridade.

(...)

Por esta ocasião, parte da imprensa levantou clamores contra as Irmãs da Caridade.

(...)

Ajustámos lá fora quem dance, quem cante, quem faça foguetes (...), quem construa caminhos-de-ferro, quem venha montar as máquinas (...) e só umas pobres mulheres, porque se chamam Irmãs da Caridade, são recebidas com injúrias e calúnias.

Protestamos contra esta selvajaria.

Essas pobres mulheres não cometeram nenhuma usurpação (...), (...) respeitem o pudor público, respeitem a honra dessas mulheres (...). As damas estrangeiras não devem encontrar hoje em Portugal um só jornalistas que as ofenda (...).

Apelamos para a imprensa esclarecida e honesta a fim de desaprovar este desvio que a desonra. Podemos divergir uns dos outros sem ofender a sociedade.

(...)

Confiai na força da liberdade, e se as nossas coisas não vão bem, interpelai o Governo, acusai-o, condenai-o, mas respeitai essas pobres mulheres, que por isso mesmo que são fracas, devem merecer a nossa consideração e respeito. (Revolução de Setembro, 22 de Junho de 1858)

No texto acima pode relevar-se a ideia que se tinha das mulheres no Portugal oitocentista: “fracas”. Noutra perspectiva, ao nível do estilo sampaíno, o excerto escolhido também mostra que, em certas ocasiões, Sampaio abria os seus artigos dando o mote para os mesmos. A partir do mote, então, construía o seu argumentário.

6.13 A saúde pública

Folheando as páginas do Revolução de Setembro observa-se que António Rodrigues Sampaio se pronunciava sobre uma miríade de temas. A saúde, obviamente, foi um deles, num País onde a insalubridade grassava e a falta de higiene cobrava vítimas, em particular entre os mais pobres e débeis (decerto mal alimentados). O que é interessante é que a propósito do assunto, o remédio preconizado, dentro da estratégia desenvolvimentista regeneradora, é o do investimento em obras públicas:

A cólera invadiu este ano Portugal e tem feito estragos em algumas povoações. Noutras, apesar de invadidas, a mortalidade é pouca e quase que não excede a ordinária.

A observação tem mostrado que os doentes tratados apenas acometidos pela moléstia se curam facilmente e que o mal é mais perigoso nas pessoas necessitadas.

(…)

Um dos grandes remédios contra a cólera é o maior desenvolvimento nas obras públicas. (Revolução de Setembro, 1 de Setembro de 1855)

Em 1857, a febre-amarela substituiu a cólera na lista das doenças preocupantes. A febre-amarela, porém, atingia por igual os ricos e os pobres, mais do que sucedia com a cólera, que afectava, sobretudo, os que viviam em condições insalubres. António Rodrigues Sampaio não deixou de atentar, ironicamente, no facto de os ricos pouco se terem preocupado com a cólera, pois afectava principalmente os pobres, que “nunca fazem falta”, mas que, numa espécie de justiça poética, tinham de se preocupar com a febre-amarela, uma doença mais igualitária nas vítimas que reclamava:

O ano passado, a cólera matava mais do dobro da gente que este ano morre de febre. Eram os pobres que morriam e os pobres nunca fazem falta! A febre teve menos contemplação com as classes menos necessitadas e até com os que viviam na abundância e tem levado gente que se conta por unidades, enquanto os pobres se contam por dezenas ou por centenas. (Revolução de Setembro, 17 de Outubro de 1857)

Assim, Rodrigues Sampaio elogiou, ainda a propósito da epidemia de febre-amarela, a solidariedade revelada pelos mais pobres, num texto sintomaticamente publicado no jornal operário Federação. No texto, revelam-se, mais uma vez, as profundas convicções católicas do jornalista:

Caem ainda muitos dos nossos irmãos, a morte ceifa ainda vidas aos centos, mas a caridade já lhe está sobranceira, domina as suas posições (...).

A morte aparece e não poupa ninguém. Nivelam-se as condições.

(...)

Quando todo o individualismo se sumiu, quando o oiro não salvou o rico, quando a miséria não prejudicou o pobre, é que a humanidade se levantou (...). Não se sabe o que se deve admirar mais – se a grandeza do mal, se a grandeza da dedicação e do sacrifício voluntário.

(...)

Os que sofriam eram homens, e os homens não se esqueciam dos seus semelhantes. Eram cristãos, e os cristãos não se esquecem dos preceitos do Mestre. Eram operários associados muitos deles, e a sua classe honrou o símbolo fraternal e sagrado que os unia. (...) Deus multiplicou os haveres dos pobres para acudir a seus irmãos aflitos. (Federação, 28 de Novembro de 1857)

A 16 de Janeiro de 1858, no Revolução, o mote volta a ser a febre-amarela, mas o verdadeiro tema é a crítica ao Governo e ao funcionalismo público que ele protegia. O texto é profundamente irónico, cómico até, ao fazer o paralelo entre os tempos antigos e a actualidade da época, para o que Sampaio se socorre da sua erudição clássica:

Cipião, arguido da sua má gerência, respondeu: – “Tal dia tomei Cartago, vamos dar graças aos deuses.” Gonçalo de Córdova, incriminado pela falta das suas contas, escreveu: – “Pás e enxadões, trinta milhões.” O sr. Ávila não é menos que Cipião e que Gonçalo da Córdova. S. Ex.ª diz: – “Escapámos da febre-amarela, não arguais os nossos actos nem a desmoralização do País.”

É o sublime e o ridículo. Se os ministros se salvaram da febre neste país onde as pastas dão vida aos mortos, e fazem andar os paralíticos, que heroísmo há em estar embrulhado naquela cataplasma que livra das mais perigosas enfermidades? Que galardão reserva o Gabinete para esses pobres cabos de polícia, para esses homens das macas, para os gatos-pingados (...) que faziam serviço mais arriscado e muito mais barato? Houve alguma amnistia para esses heróis, como o Ministério a pretende para os seus despachos (...)?

(...)

O funcionalismo corrupto e devasso em lugar de ser exonerado, foi aumentado e engrandecido, e a razão do seu mérito é a sua conservação por longo tempo, é a honra de ter servido!

A 13 de Março de 1858, António Rodrigues Sampaio escreve, no Revolução de Setembro, sobre a salubridade em Lisboa, mas sempre num tom político de elogio aos correligionários e reprovação dos adversários:

Aproxima-se a estação do calor, a ansiedade pública a respeito da higiene da cidade é grande, a febre-amarela chegou ao Lazareto num vapor que trouxe 40 doentes, tendo tido dez mortos na viagem do Brasil, e a questão sanitária ainda não passou de discutir se o Conselho de Saúde há-de ser consultivo ou deliberativo.

Se na limpeza da cidade se faz alguma coisa, deve-se isso a essa Câmara Municipal menosprezada e caluniada, que tem feito algum serviço enquanto o Governo não tem feito nada (...). (Revolução de Setembro, 13 de Março de 1858)

A morte de D. Pedro V e da maioria dos seus irmãos é pretexto para, mais uma vez, Sampaio abordar o tema da saúde pública, que classifica de “primeira condição para a prosperidade de um País”.

A saúde pública é a primeira condição para a prosperidade de um país. Não há riquezas, não há instituições, não há liberdades que valham mais do que ela, nem tanto como ela. De que nos servirá a liberdade, de que nos servirá a riqueza se não pudermos usar delas?

Quo mihi fortunam si non conceditis uti?

Mas nunca pode haver riqueza quando não houver saúde. A riqueza depende do trabalho, depende da população; e o trabalho e a população definham e morrem por falta de saúde. (Revolução de Setembro, 25 de Novembro de 1861)

Hábil no redireccionamento dos mais diversos assuntos para o terreno do político e da discussão moral, António Rodrigues Sampaio também o fez quando apresentou e discutiu as questões da saúde pública.

6.14 A revolta da Janeirinha

Conforme já observado anteriormente, os acontecimentos em desenvolvimento, uma vez vendo iniciada a sua cobertura jornalística, tendem a ser cobertos até um desenlace ou até à saturação. A revolta da Janeirinha, eclodida no Porto, a 1 de Janeiro de 1868[16], foi um desses acontecimentos.

A Janeirinha constituiu, principalmente, uma resposta burguesa e popular contra a introdução de um novo imposto de consumo. De facto, a política desenvolvimentista e de forte investimento em obras públicas conduzida pelos regeneradores, unidos em torno de Fontes Pereira de Melo, não foi acompanhada por um crescimento paralelo da economia portuguesa nem por reformas fiscais gradativas que, ao longo do tempo, permitissem ao Estado ir equilibrando as suas contas, mesmo que à custa dos contribuintes. Apelidada de política do “semear para colher”, o fontismo acabou por gerar o endividamento externo galopante do País e um aumento exponencial do défice orçamental do Estado. Assim, chegado a 1868, o Governo regenerador viu na introdução de um novo imposto de consumo a solução mais fácil para os problemas financeiros do Estado. Mas foi surpreendido pela revolta portuense, que rapidamente alastrou a Lisboa e a Braga e que se foi espalhando pelo País, profundamente insatisfeito não apenas com o agravamento da carga fiscal mas também com um processo de reordenamento do território que ameaçava acabar com vários concelhos, o que contrariava profundamente a tradição municipalista portuguesa.

Assim, a 4 de Janeiro de 1868 o Governo regenerador caiu, sendo substituído por um Governo liderado pelo duque de Ávila e Bolama, que capitaneava os cépticos do fontismo e era favorável a uma política de profunda contenção nos investimentos públicos e nos gastos do Estado a fim de se equilibrarem as contas públicas sem recurso ao crédito e sem aumento da carga fiscal. O Governo do duque de Ávila e Bolama logo se apressou, assim, a revogar os diplomas que estivavam no centro da polémica e, com isso, o “partido avilista” granjeou simpatia suficiente para vencer as eleições de Março desse ano.

Ao impulsionar o desenvolvimento do Partido Reformista[17], a revolta da Janeirinha contribuiu para redesenhar o arranjo das forças políticas em Portugal e, simultaneamente, promoveu um novo período de instabilidade governativa, já que colocou em causa o rotativismo no Governo entre o Partido Regenerador[18] e o Partido Histórico[19] que subsistia, com poucas interrupções, desde 1851. Os reformistas, fundidos com os históricos, em 1876, num novo partido – o Reformista – vieram a alternar-se no poder com os regeneradores até ao final da Monarquia.

A revolta da Janeirinha afectava profundamente os interesses de Sampaio e dos seus correligionários regeneradores. Por isso, o jornalista zurziu na revolta e nos seus líderes. Manifestou-se, em particular contra o duque de Ávila e Bolama, principal beneficiado político dos acontecimentos que sucederam no País. Longe dos seus tempos de revolucionário, condenou veementemente a desordem, a anarquia e a instabilidade governativa que a Janeirinha tinha trazido a Portugal, em textos que, lidos no seu conjunto, evocam, mais uma vez, a ideia de novela – uma novela real, mas uma novela, uma história, de que se quer descortinar o (um) fim. Por vezes, pelo meio dos relatos sobre a marcha dos acontecimentos, o jornalista relembra, igualmente, o papel da imprensa na divulgação e reverberação do que se passava, no território nacional e no estrangeiro.

Abriram-se hoje as Cortes por comissão. O Rei não assistiu. Sua Excelência, o senhor Joaquim António de Aguiar, presidente do Conselho, leu o decreto que o autorizava a satisfazer ao preceito constitucional e declarou aberta a sessão.

Não houve discurso da Coroa. A razão foi o ter o Ministério pedido a sua demissão e não haver Governo responsável pelas proposições que ali Sua Majestade enunciasse acerca das providências futuras.

Dizia-se que o senhor duque de Loulé fora chamado ao paço para ser encarregado da formação do futuro Gabinete.

Parece que a razão que motivara o pedido da demissão fora a gravidade dos acontecimentos do Porto com relação ao imposto de consumo. A Associação Comercial [do Porto] representou que não despacharia géneros de consumo e os lojistas foram obrigados a fechar as lojas por sugestões partidárias. É um mal, mas é um facto que convém reconhecer.

Não sabemos se a estes motivos acresceram outros. A entrudada que se representou ontem em Lisboa era ridícula, não havia receio de conflito; mas o caso do Porto era grave pelos caracteres que nele figuravam. A paixão ali é animosa e o corpo não se recusa ao suplício. Aqui os patriotas são prudentes e nos momentos de aflição estendem mãos suplicantes para o Porto, donde esperam a salvação. É pouco glorioso mas é verdade.

Mas a gravidade do caso não desaparece com a demissão do Ministério. O Porto vale muito mas a lei e o País valem mais do que ele. Quando todo o mundo se sujeita à lei, nenhuma cidade se pode exceptuar desse dever.

(…)

Ceder diante da repugnância do Porto é tirar a Coroa da cabeça do Senhor D. Luís e passá-la para a dos que, por algum dinheiro, organizam uma resistência passiva. (Revolução de Setembro, 3 de Janeiro de 1868)

Abriu-se hoje a sessão da Câmara dos Deputados sob a presidência do senhor Francisco Manuel da Costa, decano.

Não compareceu o senhor Joaquim António de Aguiar; mas o senhor Fontes declarou por parte do Governo que o Ministério tinha pedido a sua demissão, que Sua Majestade lha aceitaria, que encarregara da organização do Gabinete o senhor duque de Loulé, que este cavalheiro declinara aquela honra, que fora depois incumbida aquela tarefa ao senhor marquês da Sá [da Bandeira] e que o nobre general declinara também aquela comissão, a qual tinha sido por último conferida ao senhor conde de Ávila. (Revolução de Setembro, 4 de Janeiro de 1868)

A desordem considera-se triunfante mas não está satisfeita com o seu primeiro triunfo. Julgando que o Rei cedera a ela e não ao princípio constitucional, declarando que a Coroa se determinara pelas solicitações dela e não pelo conselho dos seus ministros, entende que deve caminhar avante, impor condições à realeza, indicar os ministros e exercer ela a soberania que reputa na sua mão. (Revolução de Setembro, 5 de Janeiro de 1868)

O fogo sagrado do descontentamento deve decerto continuar a lavrar no País. De 120 municípios mortos, não houve 20 que não reclamassem, mas desde que a queixa tem tão boa fortuna, é de presumir que todos aleguem os seus direitos ofendidos, a sua autonomia perdida e as suas tradições ultrajadas. (Revolução de Setembro, 12 de Janeiro de 1868)

Remoinha o pó nas ruas agitado pelo vento das ruins paixões. Já não é o País que fala, são os videntes que se dirigem ao País. (Revolução de Setembro, 31 de Janeiro de 1868)

A desordem no País não é resultado da situação passada, porque o Povo estava tranquilo; essa desordem apareceu logo que o senhor conde de Ávila tomou conta do poder. (Revolução de Setembro, 1 de Fevereiro de 1868)

Já não se pode dizer que a situação é estéril. Foram mortos quatro populares. O senhor conde d’Ávila, elevado à presidência do Conselho, quis cimentar a sua popularidade no sangue dos miseráveis. Não serviu de nada a abolição da pena de morte. O Ministério estreou-se com quatro execuções e muitos ferimentos! E para maior glória governativa, a luta foi tão pouco tenaz que os fuziladores não sofreram nada. (Revolução de Setembro, 6 de Fevereiro de 1868)

As boas doutrinas acham prosélitos. Os patriotas do Porto mandaram emissários para as províncias a fim de aconselhar o Povo a que não pagasse impostos. Dizia-o a sua imprensa e proclamou-o como um serviço patriótico.

A doutrina subversiva não lançou raízes durante o Ministério passado, onde o império da lei era mais forte que o império da anarquia; mas apenas foi elevado ao poder o senhor conde de Ávila, apenas o Gabinete disse que a rua tinha razão, que os poderes públicos não representavam o País, que as leis eram opressas, essa doutrina germinou, cresceu e fortificou.

E não admira. Desde que o poder, que devia fazer respeitar a lei, diz: – “ a lei é iníqua, a autoridade intrusa e a razão está na rua” – o critério está na força da praça pública, a majestade das leis acha-se desconsiderada, a desordem autorizada e favorecida. (Revolução de Setembro, 11 de Fevereiro de 1868)

Nunca se viu uma situação tão cinicamente imoral.

Caiu um Ministério depois de ter feito reformas importantes e de ter pedido ao País grandes sacrifícios pecuniários. Foi substituído por homens que revogaram tudo o que parecia impopular, dissolveram as Cortes, assumiram a ditadura e mandaram proceder a eleições. (Revolução de Setembro, 23 de Fevereiro de 1868)

O mundo está perdido. Cada semana chega a notícia de uma desordem, de uns poucos de fuzilamentos, de roubos, de assassinatos e a imprensa, esta instituição diabólica, relata os factos e os crimes, comenta-os, busca indagar as verdadeiras causas e a Europa e a América, também a América, falam de nós com dó e compaixão.

A Europa e a América bem podiam ficar silenciosas. Que lhes importa a elas que as tropas do senhor conde d’Ávila fuzilem os cidadãos na estrada ou na urna? Também nós abolimos a pena de morte e se o sangue corre em virtude da sábia administração do nosso conde, não se derrama pela sentença dos tribunais. É uma compensação. As sangrias não deixam de ser úteis, quando a seiva vital superabunda. (Revolução de Setembro, 7 de Março de 1868)

O telégrafo anuncia a vitória geral e completa do Governo. A crónica diz que a violência, a corrupção e a calúnia produziram este resultado. (Revolução de Setembro, 24 de Março de 1868)

Depois de repetidas conferências do senhor duque de Loulé com alguns dos seus amigos, sua excelência declinou o encargo da formação do Gabinete. Não sabemos que dificuldades surgiram, ou que obstáculos não se puderam remover. Não o sabemos, porque os nossos amigos foram estranhos a todas as combinações, esperando que o nobre duque formasse uma administração que tencionávamos apoiar, porque não pouparíamos esforços para que uma administração decente tirasse o poder do abatimento em que se acha.

(…)

Não há dúvida que a gloriosa de Janeiro, revolução triunfante desde que os ministros dela a incitaram, dificultou a formação de qualquer Governo sério. (Revolução de Setembro, 17 de Julho de 1868)

A folha oficial ainda não traz os nomes dos ministros, mas a organização do Gabinete parece estar concluída, depreendendo-se da lista apresentada hoje pelo Jornal do Comércio, que o senhor Latino Coelho aceita a pasta da Marinha, posto que preferisse a das Obras Públicas e desejasse a dos Estrangeiros para a qual diz que tem uma decidida vocação.

(…)

O Ministério não tem partido e não tem doutrinas. O senhor bispo de Viseu é o verdadeiro presidente do Conselho, o senhor marquês de Sá é-o apenas putativo, porque recusando aceitar de Sua Majestade a missão de formar o Gabinete, foi recebendo a presidência das mãos do senhor bispo de Viseu, presidência que só cabe constitucionalmente àquele que exprime o pensamento ministerial, e esse pensamento reside no organizador. (Revolução de Setembro, 23 de Julho de 1868)

A revolta da Janeirinha iniciou, de facto, um decénio de instabilidade política e de agitação social no País, minado pela crise orçamental e pelo endividamento, que obrigavam o Estado a lançar novos e desagradáveis impostos. Prova disso são as repetitivas referências à situação nos textos de Sampaio, como nestes, de meados de 1872:

A Revolução de Setembro não fala claramente das greves, mas faz referência a tumultos pelos País contra os tributos a pagar, no entanto, classifica-os como “boatos” lançados pelos jornais da oposição. (Revolução de Setembro, 9 de Junho de 1872)

Pedem-nos provas de que está o Reino tranquilo. Nós é que podíamos exigir que nos provassem que o não está. Dêem-nos o boletim dos combates, façam a lista dos mortos e dos feridos, digam-nos o nome do campo de batalha, e contem-nos as suas histórias de desacatos à autoridade. O quê? Pois vêm anunciar que houve resistência aos tributos, que houve tumultos, que parte do Reino se insurgiu, e quando nós dizemos que tudo está sossegadíssimo, que tudo caminha com regularidade e pacificamente, dizem-nos: Provem que existe esse sossego! (Revolução de Setembro, Junho de 1872)

De facto, apesar dos desejos e até dos comentários irónicos de António Rodrigues Sampaio, certo é que a década de setenta do século XIX, em que ele teve nas mãos, quase sempre, a pasta do Reino, foi uma década agitada, até que, finalmente, nos últimos anos do decénio, a situação política e social gozou de uma significativa acalmia.

6.15 Uma polémica com Alexandre Herculano

Entre as muitas polémicas que Sampaio travou com alguns dos seus contemporâneos, uma ter-lhe-á, possivelmente, causado amargos de boca – a que manteve com o grande político, historiador, escritor e homem de letras Alexandre Herculano, reserva moral da Nação e seu antigo correligionário, então já retirado da vida pública. Foi a propósito da questão do proteccionismo no comércio agrícola.

É assim que, a 23 de Março de 1856, o Revolução de Setembro publica integralmente uma carta irónica de Herculano, na qual este contesta um artigo de Sampaio publicado a 18 desse mesmo mês. Escreve corrosivamente Herculano, num dos ataques mais fulminantes que Sampaio enfrentou ao longo da sua carreira jornalística e política:

Creio que provei (...) que muitos produtos agrícolas estavam já sem protecção; que outros, como o azeite, apenas eram protegidos pela escala móvel, que impede o lavrador de vender caro quando com as mesmas despesas de fabrico colheu a metade, o terço ou o oitavo do que esperava colher. Concordei (...) em que a proibição (...) da entrada dos cereais era ineficaz e inútil em relação aos de Espanha (...). O Sr. Sampaio (...) nos seus artigos sobre este assunto tem visto na proibição uma protecção ainda mais alta do que a das indústrias fabris (...).

Dos factos (...) deduzi que o interesse da agricultura se ligava (...) com a liberdade de comércio, mas que para se realizar essa vantagem, cumpria que a liberdade fosse um sistema geral aplicável a todas as indústrias.

(...)

O Sr. Sampaio (...) refutou-me (...) porque eu nestas matérias sou apenas um curioso, e ele sendo um antigo jornalista político (...) é um hábil economista. Não atingindo sempre a altura das suas reflexões, distraía-me, às vezes, de o escutar.

(...)

A esta declaração, correspondeu o Sr. Sampaio (...) lendo vários artigos de pauta [aduaneira], alterados todos em 1841. Acusou-me por não ter votado contra eles, por não ter estado presente quando se votaram (...). Afinal, estabeleceu uma singular teoria de responsabilidade moral para os ausentes.

(...)

O Sr. Sampaio, que na reunião agrícola não pediu a palavra para me replicar, veio replicar-me na imprensa. É um sistema como qualquer outro. Entretanto, é evidente que ele está irritado e que a cólera o faz esquecer do habitual talento e ardileza com que sabe singrar nestes parcéis da imprensa periódica.

(...)

Devia, talvez, parar aqui, porque o mais que o Sr. Sampaio me diz não são senão injúrias, fruto do seu ardor ministerial. Este ardor é grande, não devo estranhá-las. Ainda há pouco, aceso naquele ardor, o Sr. Sampaio provou até onde os seus brios podem chegar. Irritado com um digno par que agredira o Ministério, o Sr. Sampaio soube falar claramente ao público de coisas que não têm nome. Nesse dia, a Revolução transpunha traiçoeiramente a porta dos seus assinantes, e ia ao seio de famílias honestas levar ideias e suscitar explicações que os prostíbulos rejeitariam com asco. Nunca o ministerialismo subiu tão alto; nunca (...) a imprensa desceu tão fundo. Depois disto, a injúria que vem da mesma pena não injuria. É um murmúrio vão que passa.

(...)

O Sr. Sampaio não admite que um cidadão qualquer que sabe pegar numa pena ou discutir numa assembleia trate de uma questão pública (...). Para isso, é necessário obter licença do Sr. Sampaio, e ele não a dá senão a quem tiver tratado na imprensa ou nas assembleias todas as questões públicas. Ele entende assim a liberdade de manifestarmos as nossas opiniões. A liberdade é, no seu dicionário, sinónimo de obrigação e dever. Qual é a razão? É o seu exemplo. Ele está sempre na brecha. Paga de contínuo tributo à Pátria em torrentes de luz. Pudera não! O Sr. Sampaio é jornalista: é essa a sua profissão, vive disso. (...) Mas nós os que tecemos a lã, batemos o ferro, charruamos a terra ou fazemos livros sobre aquilo que entendemos, não temos tempo para estar em contínuo à cabeceira da Pátria. Pagamos-lhe tributos em dinheiro e trabalho para que ela nos dê o que nem sempre nos dá: a justiça, a segurança e as nossas liberdades, entre as quais se conta a de falarmos ou estarmos calados. A nossa obrigação acaba ali. Aqui começa o nosso direito, de que usamos como nos apraz.

Perante este doloroso ataque, certeiro, Sampaio também é corrosivo, mas não ataca Herculano no tom agressivo com que, possivelmente, atacaria outro adversário. A sua postura discursiva é defensiva e coloca-se no papel de vítima “ignorante” da “calúnia” do gigantesco personagem que era reserva moral da Nação, embora ao mesmo tempo tente catalogar Alexandre Herculano (que paradoxalmente se definia como lavrador) como um teórico auto-contemplativo, apaixonado por si mesmo, pouco conhecedor das realidades do mundo:

Tenho em muito as opiniões do Sr. Herculano, respeito o seu voto na esfera da ciência pura, mas nem por isso abdico da minha razão; e quando S. S.ª desce a este mundo real e terreno, a este grande laboratório dos factos, não posso negar a evidência dos sentidos nem julgar falsos todos os testemunhos dos homens.

(...)

Mas desse mesmo desdém pela minha pessoa e opiniões, provieram os erros de facto em que o Sr. Herculano caiu. A contemplação de si mesmo, se o fez indiferente às minhas asserções, não o livrou de me imputar (...) actos que eu não tinha cometido ou omissões de que não fora culpado.

(...)

A verdade é que eu fui condenado pelo Sr. Herculano por não pertencer a nenhuma das três escolas: proteccionista, proibicionista e livre-cambista, e fui-o ao mesmo tempo por ser proteccionista. Eu, na minha ignorância, podia não saber o que era, mas o meu juiz devia com douto suplemento remediar a minha falta. (...) Eu queria seguir os mestres, mas não os apanhava. Procurava o proteccionista, e achava-o transformado em livre-cambista. Procurava o partidário da liberdade de comércio, e achava-o a proclamar a protecção. Via arguir o Governo por se inclinar para a liberdade e por concluir pela protecção (...).

E na minha ignorância, dizia – Como será possível que o Governo cometa um grande atentado contra o senso comum, contra a razão e contra a lógica, declarando que a liberdade é o princípio e a protecção a excepção (...)?

(...)

Fiquei assim humilhado e confundido, (...) cego pelos raios da luz despedidos daqueles grandes luminares.

(...)

Acabo aqui (...). Respeito o direito que todos têm de falar ou de estarem calados (...). Aceito sempre com prazer as correcções do Sr. Herculano, mas ao mesmo tempo que ele fere, peço-lhe que ouça. Prefiro esta liberdade de dizer despropósitos à tirania de me sujeitar à autoridade que não se peja da calúnia.

Outra observação que se pode fazer sobre o texto acima é que Rodrigues Sampaio, protestando a sua crença na liberdade de expressão, transfere, retórica e simbolicamente, para a esfera da luta política o facto político criado pela crítica pessoal de Herculano. Para o efeito, insinua, habilmente, que não é somente ele o visado pela crítica, mas sim ele e o partido, ele e o Governo.

Passe a polémica mantida entre esses dois grandes vultos do Portugal de oitocentos, Sampaio e Herculano, fica, apesar de tudo, o gesto de abertura do primeiro, que não hesitou em publicar a carta do segundo no jornal que dirigia, pois liberdade de imprensa também significa dar aos adversários a possibilidade de serem escutados.

6.16 O caso das Conferências do Casino

A justificação da proibição das Conferências Democráticas do Casino Lisbonense é feita num artigo publicado no Revolução de Setembro de 28 de Junho de 1871, datado do dia anterior.

Todos sabem que havia ali no Casino Lisbonense umas conferências democráticas, que eram aplaudidas por uns, censuradas por outros, e sem importância para muitos. Cada prelector expunha o que sabia, julgava como entendia, e parece-nos que os ouvintes não tiraram mais proveito das suas lições do que muitos discípulos das dos professores que ali se condenaram. O encarecimento do novo método não foi justificado pelo resultado. Não sabemos se se abriram novos mananciais de ciência, ou se se repetiu o que já é velho noutras terras. As modas quando nos chegam têm às vezes desaparecido da terra donde nos vêm. (…) Quando os pareceres se dividiam aparece uma portaria do Governo que proíbe as conferências. (Revolução de Setembro, 28 de Junho de 1871)

António Rodrigues Sampaio diz ainda no artigo, comparando, forçadamente, as conferências às ideias que tinham propiciado a Comuna de Paris, que tinha “pouco receio dos progressos da comuna” porque embora “as doutrinas dela” pudessem “iludir alguém”, que não as “pessoas honestas”, os seus actos não teriam “justificação perante o senso comum”. Essas ideias, de qualquer modo, segundo acusa, seriam “velhas pela maior parte que se reproduzem e aparecem de tempos a tempos”. E justifica a proibição das conferências pelo facto de infringirem as leis, sendo que o Governo teria de “manter o respeito que se lhes deve e velar pela sua observância”; e ainda pelo facto de poderem originar distúrbios, sendo que “evitar distúrbios é o dever do Governo”. Equipara, também, as conferências a uma modalidade de ensino “não (...) justificado pelo resultado”, pelo que conclui o seguinte: “Se para o ensino não há liberdade e há regulamentos; e se as conferências são ensino, é necessário que os prelectores comecem pelo respeito às leis e à religião do Estado”.

É de dizer que o que mais parece incomodar Sampaio nas conferências do Casino Lisbonense é até a liberdade com que nelas se pretendia discutir a religião. Cita, nomeadamente, uma carta ao redactor de Salomão Saragga, que queria, nessas conferências, abordar a historiografia crítica de Jesus, para explicar que “a divindade não perderia nada com os estudos do filósofo, mas as consciências dos fiéis poderiam ofender-se”.

No artigo, retoma as suas observações irónicas sobre a sociedade da época, nomeadamente sobre as contradições dos “democratas” que apregoavam a “transformação social” mas que, avidamente, buscavam o título nobiliárquico:

Ide aos registos (...) e achareis mais pretendentes a distinções nobiliárias do que proletários a pedir talher no banquete social, palavrinha estafada de todos os especuladores disfarçados em democratas, e que ou são comendadores e viscondes, ou os arranjam e manipulam. Até o amesquinhado barão é já rejeitado como pequeno prémio para tamanha prosápia.

Choca, no referido texto de Sampaio, a naturalidade com que o anti-semitismo estava insidiosamente inculcado na mentalidade da época, no contexto das questões religiosas. Na carta de Salomão Saragga citada pelo jornalista, o primeiro escreve que julga “tão inimigos das ideias Cristãs os judeus como os cristãos fanáticos”, enquanto o redactor principal do Revolução de Setembro se interroga, como que surpreendido: “estranham (...) que (...) negue o beneplácito ao judeu para atacar a Cristo?”.

6.17 Um naufrágio...

A falta de sorte das pessoas condoía efectivamente António Rodrigues Sampaio. O naufrágio do vapor Porto na barra do Rio Douro, no Porto, a 29 de Março de 1852, com a perda de 51 vidas, foi uma tragédia que enlutou o País:

É hoje dia de luto em Lisboa, como o foi há dias no Porto, como o é já em muitas terras do Reino, como o será brevemente em todas. Cristãos! Oremos por nossos irmãos defuntos, socorramos as famílias desamparadas e esforcemo-nos depois todos para que se procurem evitar semelhantes catástrofes para o futuro. (A Revolução de Setembro, 3 de Abril de 1852)

O naufrágio do vapor Porto é, e será ainda por algum tempo, o objecto de todas as conversações. A Cidade Invicta cobriu-se de luto, as portas das lojas de comércio fecharam-se, as das igrejas abriram-se, os sinos tocaram os dobres dos finados e procurava dar-se honrada sepultura aos cadáveres lançados à praia. Não se perderam somente as vidas dos náufragos, lá estão em risco os pais, as esposas e as mães dos que foram engolidos pelas ondas.

A cidade desolada solta gritos de desesperação. As acusações são tremendas. A dor envolve, talvez nas suas queixas, inocentes e culpados. Argúi-se a direcção da companhia dos vapores, argúem-se os pilotos, argúi-se a intendência da marinha, argúem-se os pobres que não quiseram afrontar os perigos para salvar seus irmãos.

Toda a queixa ali, mesmo a injusta, é desculpável. Mas os que estamos mais longe devemos ser mais imparciais, por que se se nos afiguram os gritos das vítimas, de seus pais, mães e irmãos, não vemos contudo correr as suas lágrimas, nem os seus lamentos nos estrugem os ouvidos.

Ali há culpa em entregar ao mar bravo um barco arruinado e em não haver aprestes para estes riscos. Essa deve examinar-se e punir-se. Daí em diante são tudo desgraças que devemos lamentar, mas pelas quais pouca gente deve ser responsável.

Nós vemos que à borda do mar, naquele sorvedouro de vidas, havia quem oferecesse 12 contos de réis por um homem, 6 por outro e 1 conto de réis por cada pessoa salva. E ninguém quis enriquecer! Ninguém, é verdade! Ninguém podia aceitar aquele preço. Os catraeiros que lá estavam deviam ser homens do Povo, a sua alma era de certo sensível como a do nobre e se eles pudessem seguramente se arriscavam sem essa recompensa. A indiferença depois da promessa prova que o perigo era maior do que almas generosas o supunham e o coração que não fosse movido pela grandeza do infortúnio não o era, decerto, sendo cristão e portuense, pela cobiça do dinheiro. Cremos, pois, que não houve sacrifício por não poder aproveitar, por se reportar inútil e não porque não houvessem almas que se votassem a ele. Suponhamos antes que a Providência quis castigar o nosso desleixo. Aquele sorvedouro engoliu no dia seguinte mais algumas vidas.

É porém necessário castigar aqueles que lançam ao mar xavecos podres e dar um exemplo a esses usurários que especulam com a vida do Povo.

A Associação Comercial reuniu-se e representou ao Governo. É necessário aproveitar o ensejo que, perdido ele, nem o Governo cuida disso, nem os portuenses se incomodam. Naquela cidade o comércio está fazendo uma bolsa sumptuosa e não tem barra nem alfândega, servindo uns casebres velhos para recolher as fazendas.

O Governo também tomou providências e nós declaramos francamente que as achamos boas. A barra do Porto, ainda que despendam com ela todos os rendimentos da sua alfândega e os do País, há-de ser sempre um precipício. O remédio é o porto artificial, a cujos trabalhos o Governo hoje manda proceder por uma comissão. Se aquela obra se fizer, confiamos nos melhoramentos, se continuarem somente com os trabalhos da barra, não esperamos nada.

Vamos a todos esses trabalhos. Convém fiscalização sobre essas companhias que servem o público e que o podem prejudicar. Para isso é que há Governo. Depois cuidemos dessas obras de verdadeiro interesse, porque para o passado não há remédio. (Revolução de Setembro, 6 de Abril de 1852)

Na prosa de Sampaio, o que ele diz (as acusações que faz ao desleixo das autoridades e do armador são graves) tem por reverso a irrelevância do que ele cala. E o que Sampaio calou, neste caso, foi o facto de que a estação de socorro da barra do rio Douro, a cem metros do local onde o navio naufragou, ter sido desactivada por causa de... desavenças políticas. É possível que o facto não tenha sido referido por Sampaio por puro desconhecimento pessoal da situação, mas era assunto de debate na Cidade Invicta.

Diga-se, ainda, que a comoção provocada no País pelo naufrágio do Porto foi intensa, pois graças aos jornais as notícias chegaram a todo o lado. A tragédia detonou a reactivação e reordenamento dos serviços de socorros portugueses e um intenso movimento de criação de corporações de bombeiros voluntários.

6.18 Análise quantitativa da produção jornalística de António Rodrigues Sampaio no Revolução de Setembro (1851-1881)

De uma forma mais sistemática, sobre o que escreveu, ao longo do tempo, António Rodrigues Sampaio, no Revolução de Setembro? Que fontes usou? Que géneros jornalísticos empregou? Pode responder-se a estas questões recorrendo-se a análise quantitativa do discurso – ou análise de conteúdo, método que já se explicou em capítulo anterior deste trabalho, já que também foi usado para análise estrutural do Eco de Santarém e do Espectro.

A análise incidiu sobre uma amostra estruturada, ou probabilística, do jornal A Revolução de Setembro, entre 1851 e 1881, sobre os textos assinados por António Rodrigues Sampaio ou sobre aqueles dos quais ele foi autor provável (pelo estilo e pela secção que ocupavam)[20]. Foram seleccionados 24 jornais (dois por mês) de cada um dos seguintes anos: 1851, 1855, 1861, 1865, 1871, 1875 e 1881. Os jornais foram repartidos por “semanas construídas”, conforme o conceito desenvolvido por Sousa (2004). Ou seja, foi seleccionado para análise o jornal da primeira segunda-feira do ano, da terceira terça-feira, da quinta quarta-feira e assim sucessivamente. Saliente-se, a propósito, que, em 1851, o jornal saía de segunda-feira a sábado, mas a partir de 1855 até 1881 passou a sair de terça-feira a domingo, tendo-se tido necessidade de ajustar, portanto, a construção da amostra às datas de publicação. Quando se verificava que um jornal não trazia qualquer texto assinado por Sampaio, ou ao qual lhe pudesse ser atribuída a autoria, passava-se para o jornal do dia seguinte e assim sucessivamente até se encontrar o jornal de data mais próxima com um texto de Sampaio, que passava a integrar a amostra por substituição do jornal da data inicialmente prevista. De qualquer modo, esta situação ocorreu pontualmente, até 1861, e não afecta o carácter estruturado e probabilístico da amostra, pois não se avaliou estatisticamente, por anos, o volume da produção jornalística de António Rodrigues Sampaio. Tornou-se evidente, contudo, que a sua acção jornalística terá abrandado significativamente a partir do início da década de 1860 e que se tornou residual depois de 1870, momento em que assumiu responsabilidades governativas.

Segregaram-se e classificaram-se autonomamente, no que respeita ao tema, os textos de Sampaio sobre o estrangeiro e sobre as colónias portuguesas. Alguns dos textos levantaram dúvidas no momento da classificação, quando abordavam temas do estrangeiro ou das colónias mas também reflectiam sobre as repercussões em Portugal. A opção foi sempre, nesses casos, a de classificar em função do pretexto para a matéria, ou seja, se o pretexto para a matéria fosse uma problemática ou acontecimento estrangeiro ou colonial, o texto classificava-se como pertencendo às categorias do estrangeiro ou das colónias.

Deve advertir-se que, como acontece sempre que se trabalha com amostras, que os resultados indiciam apenas a tendência geral da produção de António Rodrigues Sampaio. Isto é, não se pode, pela amostra, dizer que ele escreveu apenas sobre os temas em que se registaram ocorrências. Apenas se pode dizer que o caso geral, confiando na representatividade da amostra, é aquele que esta documenta.

Para o apuramento da estrutura temática dos artigos escritos por Sampaio para o Revolução de Setembro, definiram-se, então, as seguintes categorias:

Textos sobre Portugal Continental

Actualidade política e princípios políticos e cívicos – Todas as matérias assinadas por Sampaio, ou da sua autoria presumida, cujo conteúdo aborda a actividade política no país e/ou os princípios cívicos e políticos que defendia. São os casos de matérias relacionadas com a luta partidária, relatos das Câmaras dos Deputados, campanhas eleitorais, resultados eleitorais, etc. Englobaram-se também nesta categoria as reflexões sobre a Monarquia, as descrições das intervenções dos Monarcas no Parlamento, as nomeações e exonerações de governos, os ataques políticos a indivíduos e jornais adversários, os escândalos políticos, as acusações políticas de corrupção e compadrio, os crimes cometidos por políticos cuja narração é usada na luta partidária, as reflexões sobre a boa e má administração e o bom ou mau governo, bem como as notícias e comentários sobre a legislação que ia sendo promulgada.

Exemplos

A Câmara Electiva continua a discutir as disposições penais da Lei do Recrutamento. Discute pausadamente. É um mal para o muito que tem que fazer; mas é um bem para o assunto que se debate.

Leis desta importância nunca se discutiram senão pausadamente. Não se agitem por isso os amigos do progresso. Seja boa a lei, e todo o tempo será bem gasto. É a primeira lei de garantias para o País.

Também nós quisemos mais velocidade, mas para isso era necessário renunciar à discussão, era necessário não ouvir todas as opiniões, era necessário não ponderar todos os inconvenientes, era necessário, enfim, jurar nas palavras do Governo ou da comissão, e votar. (Revolução de Setembro, 22 de Fevereiro de 1855).

Abriram-se e adiaram-se hoje as Cortes. A segunda cerimónia dispensava a primeira. A observância do preceito material da Carta foi satisfeita, mas a sua intenção moral e política não cremos que fosse bem compreendida pelo Governo.

O caso do adiamento não é novo, mas a sua realização coincide com épocas de pouca fortuna. O que porém é novo, novíssimo, e sem precedentes é uma sessão de abertura, chamada real, sem um discurso do Rei proferido por ele, ou em seu nome, com o qual se celebra a festa inaugural do novo ano representativo.

(…)

Esta falta denuncia um estado mórbido no Gabinete que não lhe promete longa vida. Se os ministros não falam é ou porque não sabem o que haviam de dizer, ou não concordam no modo, ou não têm para dizer coisas que lhes façam honra e carecem simpatias. (Revolução de Setembro, 3 de Janeiro de 1871)

Economia – Matérias da autoria (presumida ou confirmada) de António Rodrigues Sampaio relacionadas com a actividade económica e financeira. Assim, classificaram-se nesta categoria as matérias referentes à actividade bancária, às indústrias, a taxas, impostos e outras contribuições, às transacções comerciais, a empréstimos pessoais, a actuações dos funcionários das instituições bancárias, etc.

Exemplos

Um meeting. Para quê? Também nós lá íamos, se houvesse que requerer, e não se pudesse requerer de outro modo.

O preço das subsistências tem subido. Não é só das subsistências, é o de tudo. Isto indica que há causas gerais desta alta; gerais em dois sentidos, porque em toda a Europa é igual o fenómeno, e porque abrange todos os artigos de consumo.

Mas deixemos a Europa por agora. Fiquemos no nosso cantinho. Que se passa por cá? Por cá está tudo caro. Será um bem ou será um mal? Seria um mal, se não houvesse com que chegar ao subido preço que as coisas custam. Mas se todos têm com que comprar as coisas de que precisam e pelas somas que lhes pedem por elas, é claro que compradores e vendedores, se não estiverem melhor do que estavam, estão pelo menos na mesma condição em que se achavam.

(…)

Chegou já esta crise? Não. Os géneros alimentícios não subiram a tal preço que a renda dos consumidores, aumentada como tem sido ultimamente, não chegue para os comprar. (Revolução de Setembro, 14 de Dezembro de 1855)

Parece que fomos menos exactos dizendo que a divida flutuante só crescera 4000:000$000 no mês de Dezembro, que a receita das três primeiras alfândegas só diminuíra 60:000$000 no primeiro semestre do ano económico corrente, cabendo só 24:000$000 réis à alfândega municipal, o que denuncia diminuição de consumo, esperança lisonjeira de reformistas ignaros. (Revolução de Setembro, 17 de Janeiro de 1871)

Obras públicas, transportes e comunicações – Matérias da autoria confirmada ou presumida de Rodrigues Sampaio relacionadas com o lançamento e concretização de obras de cariz público, como sejam a construção de estradas, caminhos-de-ferro, escolas, hospitais, infra-estruturas de comunicações e similares lançadas pelo Estado.

Exemplos

Inaugurou-se ontem o caminho de ferro de Sintra, colocando-se próximo à linha, por que ele deve passar, uma lâmina de ferro onde, numa inscrição latina, se aponta a era em que se deu o começo a esta grande obra, aquela em que foi decretada, e os nomes dos ministros, que então formavam a administração, que são os mesmos de agora. (Revolução de Setembro, 30 de Outubro de 1855)

Aprovou-se definitivamente na Câmara Electiva o acordo com a Companhia de Caminho-de-Ferro do Norte e Leste, acordo cuja necessidade a oposição reconheceu.

Com esse acordo fez-se incontestavelmente um grande benefício ao País. Concluída a 5ª secção do caminho-de-ferro, e construída a ponte sobre o Douro, a via-férrea, entrando no Porto, irá entroncar-se com o caminho-de-ferro do Minho, desaparecendo assim essa solução de continuidade, que tantos transtornos faz ao comércio no transporte de mercadorias, e tanto incomoda os viajantes. (Revolução de Setembro, 4 de Fevereiro de 1875)

Justiça – Peças da autoria confirmada ou presumida de Sampaio cujo conteúdo aborda questões jurídicas, narração de crimes e ilícitos (excepto quando relacionados com a luta política), descrição de condenações por crimes cometidos, vida nos tribunais, etc. Incluíram-se nesta categoria os textos sobre a pena de morte, mas não a intervenção de Sampaio em matéria de liberdade de imprensa.

Exemplo

O poder judicial, assim mesmo opresso como está, esbulhou-o o conde de Tomar das suas atribuições. Os presídios de Angola e os ilhéus da Madeira lá recolheram nossos irmãos sem processo e sem sentença. E para que a antítese seja mais perfeita, enquanto assim procedia contra nós, expedia portarias para tirar concessionários e assassinos do poder da justiça.

(…)

A justiça está sem força porque os juízes estão sem segurança. Em Portel são assassinados os inocentes, e os assassinos ficam impunes. Em Foz Côa, o Marçal comanda os destacamentos, prende quem quer, e a justiça fica assim às ordens dos celerados.

A administração e a polícia estão nas mãos dos malfeitores, como acabámos de ver. (Revolução de Setembro, 22 de Março de 1851)

Jornalismo – Peças da autoria presumida ou confirmada de Sampaio sobre jornalismo, liberdade de imprensa, estatuto, papel e funções da imprensa, surgimento de novos jornais (excepto quando o texto é usado para a luta política), etc. Não se englobaram nesta categoria os ataques a jornais adversários, que foram classificados na categoria “Actualidade Política”.

Exemplos

A Liberdade de Imprensa e os Corruptos

Queremos a liberdade de imprensa, e queremo-la por causa das suas vantagens apesar dos seus inconvenientes. Não tememos o abuso, porque esse tem na consciência pública, além das penas estabelecidas na lei, o seu correctivo, e a sua mais eficaz punição.

Os corruptos bradam sempre contra a liberdade, e declaram que não podem suportar os abusos dela. Podemos nós e achamos mais vantagens na continuação da liberdade com os abusos que lhe possam ser inerentes do que na supressão dela. Vejam que liberais e que filósofos, que compreendem a liberdade sem abuso! Era a liberdade sem liberdade.

D. Miguel, assim como todos os déspotas, não queria também a liberdade por causa dos abusos. Era a sua razão, mas era falsa. (…) A lei e a Carta foram mais tolerantes, pequeninos Torquemadas. Supuseram o abuso. Achai-vos injuriados, e não procurais a desafronta? Se assim é, mereceis todos os epítetos. Mas é porque não há afronta, mas verdade; é porque censuramos desvergonhas, sim, mas verdadeiras; é porque estais amarrados ao cepo da publicidade, que é o maior castigo para os que não a podem encarar pelos seus escândalos, enquanto o inocente se compraz com a sentença da opinião pública. (Revolução de Setembro, 18 de Dezembro de 1851)

Aceitamos a história como ela é. Não a podemos apagar, nem o faríamos ainda que pudéssemos. (…) Arguia a pouca energia da Junta que deixou tirar a liberdade ao povo ficando os crimes impunes, e o patíbulo levantado contra os cidadãos fiéis.

E é daqui donde nos querem combater? É daqui que querem concluir contra a liberdade de imprensa? É da liberdade dos cidadãos que concluem contra a tirania e opressão dos governos?

O que porém não nos mostram nessas publicações é a licença do Governo, nem a impressão régia. Enquanto o Chicória não governou (autorizaram a expressão citando com aprovação o seu autor), nunca a censura autorizou o desaforo, nem o poder pregara a safra das decapitações.

(…)

Lemos há pouco na folha miguelista que um católico de Torres Vedras nos queria fuzilar e beber o sangue; soubemos que numa reunião um jurisconsulto realista aconselhava o povo a deitar os ministros pela janela fora. Eram as tradições do partido, mas não era o seu governo. O homem podia errar por paixão, mas essa paixão não era uma ordem, não era sequer consentimento. Provava contra as inclinações individuais, mas não depunha contra o sistema de governação. Mas as incitações por licença, as doutrinas publicadas pela censura, passam de opiniões, erros ou crimes individuais e procedem a alta administração do Estado.

(…)

Não lamentamos a liberdade de imprensa, não levamos a mal as injúrias que por ela se nos dirigem, é pelo contrário essa a nossa maior glória, é o fruto dos nossos trabalhos. (Revolução de Setembro, 22 de Setembro de 1855)

Educação – Nesta categoria, classificaram-se os textos da autoria presumida ou confirmada de António Rodrigues Sampaio relacionados com a educação, ainda que tivessem também conteúdo político. São exemplo disso os textos sobre instrução primária, abertura de novos estabelecimentos de ensino, notícias sobre a equivalência de diplomas entre Portugal e países estrangeiros (no caso concreto, a Espanha) e similares.

Exemplo

A Lei e o Conservador votam contra as escolas, e votam contra a criação de algumas delas em Lisboa porque não desejam ofender a universidade!

Esta delicadeza das folhas cabralistas é de agradecer. A verdade é que o que se cria em Lisboa não existe em Coimbra; mas, enfim, agora convinha lançar fogo à própria biblioteca só para fazer o gosto aos novos Omar. (Revolução de Setembro, 13 de Outubro de 1851)

Questões sociais e saúde (pública) – Matérias da autoria presumida ou confirmada de Sampaio sobre pobreza, esclavagismo, vínculos de morgadio e outras formas de dominação social, chagas sociais, reflexões sobre injustiças e desigualdades sociais e temas semelhantes. Peças relacionadas com a saúde pública e as doenças, incluindo as notícias sobre as doenças na Família Real. Não se englobaram, no entanto, nesta categoria as matérias sobre a construção de hospitais (incluídas na categoria “Obras Públicas”).

Exemplos

Abaixo transcrevemos a representação de uma campanha de pescadores da costa de Ílhavo, que ultimamente foi dirigida às Cortes e que lá teve o destino competente.

Esta representação é um brado de justiça, uma invocação da caridade, que eleva aos poderes do Estado a mais desgraçada e oprimida classe de quantas há na nossa terra.

Decretaram os nossos políticos que em Portugal não há fome nem miséria. Transbordam os rios, assoberbam-se os mares, e ficam todos os terrenos alagadiços cobertos de água. Durante meses, todo o trabalho do campo é impossível, ninguém nas povoações rurais pode pôr o pé fora de casa sem se arriscar a ficar atolado até ao pescoço, e sem sentir cair em cima uma catadupa. Pescadores, marmoteiros, barqueiros, trabalhadores de todas as classes, cujo mister lhes não permite o resguardo doméstico, a todos ficam vedados os meios de ganhar pão, e contudo não têm fome! Apanham o maná, que lhes encomendaram os providentes economistas desta boa terra. A fome é lá para a Irlanda, também aparece de vez em quando em França, e visita a Galiza.

(…)

Pois os pescadores, principalmente, têm fome, e muita fome. A sua subsistência em casos ordinários não é mais abundante nem de melhor qualidade do que a que têm essas classes desvalidas, que na Europa cristã e civilizada merecem a solicitude e a caridade dos governos e das classes mais elevadas. (Revolução de Setembro, 9 de Março de 1855)

O Conselho de Saúde Pública dá hoje uma grande consolação à cidade – propôs oportunamente medidas tendentes a extinguir a epidemia [de febre-amarela], muitas das quais estão em acção, outras, não menos proveitosas, vão ser postas em rápida execução, e de tudo espera a terminação pronta de tal calamidade.

Não esperamos que o Conselho de Saúde espante a epidemia, que se ri dele, nem entendemos que é por culpa dele que a epidemia apareceu, mas o que exigimos dos poderes públicos é mais acção e menos pataratice, porque a coisa pior do mundo é o charlatanismo oficial.

Não podemos condenar o Conselho de Saúde Pública porque não sabemos o que ele tem proposto, mas sabemos que a entidade Governo tem feito pouco ou nada, e as providências higiénicas foram tardias ou nenhumas.

O Conselho convida os moradores da Sé e Madalena a abandonarem as suas casas. Excelente remédio! Vale bem a pena o ter, para isso, um Conselho de Saúde que nos manda fugir à moléstia. Participamos àquele corpo que nos outros bairros existe o mal, e pedimos-lhe que nos diga para onde essa população deve fugir. Procure os altos, diz o Conselho, vá o Povo para o Aventino!

Mas que providências dão para que nos lugares altos haja casas, e para que os pobres as possam pagar? Oh meu Deus, que conselho deu o Conselho, e que Governo que assim provê!

As nossas medidas sanitárias são de ordinário piores que a moléstia. Esta não é boa nem nós vimos ainda moléstia que nos agradasse, mas o terror é pior que ela, e morre mais gente de susto que da febre. Os casos são bem pouco numerosos para uma epidemia como a que se capitula, e numa cidade populosa como Lisboa.

Não há, portanto, motivo para medo, mas há motivo para cautela. Ninguém foge à morte; e as moléstias são um flagelo tão natural que só admira ser estranhado. É escusado acusar ninguém. Acusem também os homens pela moléstia das vinhas, das batatas, dos castanheiros. Inquiram quem seria o introdutor. Não lhe ensinará a religião que a natureza é sujeita a estes ataques, e que ninguém escapa à morte?

Mas se querem que os cidadãos se mudem, habilitem os pobres a achar casas, e a pagá-las. Que fazem para isso? Nada!

A. R. Sampaio

(A Revolução de Setembro, 2 de Outubro de 1857)

Vida Social – Foram contabilizadas nesta categoria as matérias da autoria presumida ou confirmada de António Rodrigues Sampaio que relatam ou comentam actividades como inaugurações de exposições, teatro, festas, iniciativas culturais, etc. Englobaram-se nesta categoria as matérias sobre os acontecimentos não políticos que envolviam a Família Real, como os funerais e os casamentos reais.

Exemplo

No dia 16 do corrente celebrou a direcção do Colégio Artístico-Comercial, no Palácio do Sarmento à Estrela, o aniversário da instalação daquele estabelecimento, distribuindo os prémios e medalhas aos alunos que as obtiveram. (…) A sala destinada para o acto estava armada com decência. Assistiram muitas damas e cavalheiros à leitura do relatório sobre o estado do colégio, e à distribuição dos prémios, que se seguiu aquela leitura. (Revolução de Setembro, 20 de Fevereiro de 1855)

Religião e eventos religiosos – Matérias da autoria presumida ou confirmada de Rodrigues Sampaio relacionadas com a fé, as religiões, a doutrina católica, a vida da Igreja Católica em Portugal e as cerimónias e actividades religiosas em geral.

Exemplo

A parte necessariamente é maior que o todo, e como a Igreja aprovou a doutrina de Leão é evidente que Leão é mais que a Igreja. Como o Concílio de Calcedónia resolveu a questão entre o papa e o conciliábulo de Éfeso, é evidente que o Concílio, que foi juiz, era menos que os dois contendores. (Revolução de Setembro, 16 de Outubro de 1855)

Celebraram-se hoje na capela de Santo António da Sé as exéquias solenes pela alma de Cavour. O ministro assistiu a este acto.

Folgamos que assim acontecesse. Portugal livre respeita a independência de outros povos (…).

Orou quem quis orar. Não se violentou nenhuma consciência, respeitaram-se todos os escrúpulos. A liberdade é assim. O patriarca absteve-se, os párocos recusaram. (Revolução de Setembro, 22 de Outubro de 1861)

Greves, tumultos, revoltas e suas consequências imediatas – Matérias da autoria presumida ou confirmada de Rodrigues Sampaio sobre golpes de estado, revoltas, surtos grevistas e tumultos ocorridos em território nacional e as implicações imediatas desses factos na via política, cívica e social.

Exemplo

A agitação referve em todo o País, lavra em todas as povoações, contagia-se a todos os espíritos; só a prudência e a convicção da própria força lhe têm mão, para a conterem nos limites da ordem, que são o terreno mais sólido para a afirmação da justiça!

Pois das manifestações imponentes e espontâneas de todo o País pretende a obsessão do Governo tirar argumentos do seu prestígio, chamando arruaceiros aos que protestam contra a desassisada gerência ministerial, alcunhando de assalariados servos da Câmara de Lisboa os cidadãos que aderem às manifestações pacíficas, mas enérgicas, contra a actual gerência. (Revolução de Setembro, 11 de Março de 1881)

Calamidades e desastres – Matérias da autoria presumida ou confirmada de Sampaio cujo conteúdo aborda acontecimentos relacionados com catástrofes e acidentes com consequências humanas, sociais e económicas.

Exemplo

Constou ontem ao Governo que a cheia alagará os campos de Santarém e Valada, e posto que não se dissesse que seriam necessários socorros, o mesmo Governo deu ordem, pelo Ministério do Reino, para que estes se preparassem, e fossem hoje para cima. (…) Quando hoje os avisos telegráficos anunciaram o pedido de socorros já os primeiros escaleres navegavam pelo Tejo acima. (Revolução de Setembro, 20 de Fevereiro de 1855)

É de salientar que foram criadas outras categorias além das descritas para classificar os textos de Sampaio sobre Portugal Continental (como “Assuntos Insólitos”), mas não se detectaram, na amostra recolhida, textos de Sampaio que pudessem ser classificados nas mesmas, razão pela qual se suprimiram da lista.

Da mesma forma, foram criadas a priori várias categorias para a classificação dos textos de Rodrigues Sampaio sobre as Províncias Ultramarinas, a Madeira e os Açores e sobre o Estrangeiro, mas como a presença dessas matérias é residual (7% do total) e todas as matérias registadas diziam respeito à actualidade política, optou-se por reformular as categorias de análise e descrever, apenas, duas grandes categorias:

Textos sobre as províncias ultramarinas, Açores e Madeira

Matérias da autoria presumida ou confirmada de Rodrigues Sampaio sobre revoltas nativas e campanhas militares portuguesas nas províncias ultramarinas; relatos e comentários sobre incidentes no âmbito dessas revoltas; peças sobre o governo das colónias, a administração colonial, as formas de melhorar e intensificar as relações entre as colónias e a metrópole, escravatura e maneiras de lhe colocar fim, etc. Peças sobre ocorrências nos Açores e na Madeira.

Exemplos

A Imprensa e Lei censura o Governo por haver nomeado, sob proposta do Conselho Ultramarino, o juiz de direito de Moçambique, para juiz da relação de Luanda, não tendo tido ainda lugar a sindicância daquele magistrado como governador geral que foi da província de Moçambique. Os fundamentos da censura são declarar o artigo 18º do decreto de 27 de Dezembro de 1852 que “nenhuma das pessoas (empregadas no ultramar) a que se refere aquele decreto, depois que deixar de exercer o respectivo cargo, e antes de ter tido lugar a competente sindicância, e ficar nela absolvido, poderá ser despachada para o Conselho Ultramarino, nem exercer qualquer comissão de serviço público administrativo militar, eclesiástico, ou municipal no ultramar, nem ser agraciada com qualquer mercê honorifica.”

Se a Imprensa e Lei acha infracção neste caso, o Conselho Ultramarino não o entendeu assim. O juiz de direito de Moçambique nem foi despachado para o Conselho Ultramarino, nem para qualquer comissão do serviço público administrativo, nem militar, nem eclesiástico ou municipal, no ultramar. (Revolução de Setembro, 13 de Junho de 1855)

Devemos confessar que nos causa uma sincera estranheza o sistema seguido pelos jornais oposicionistas, para atacarem as reformas realizadas na Índia pelo Governo. Ontem, o Diário Popular ria-se a bandeiras despregadas por o Governo pensar no melhoramento das condições agrícolas, industriais e comerciais da Índia, hoje alega o Jornal do Comércio que a Índia não é uma colónia, é um troféu, que não pode viver senão de armas, que não podem ali florescer senão a corrupção e a preguiça. As teorias são realmente desanimadoras, e nunca se aconselhou mais positivamente a um Governo que cruzasse os braços, e deixasse encaminhar-se fatalmente para a ruína completa o nosso império colonial. (Revolução de Setembro, 17 de Dezembro de 1871)

Textos sobre o estrangeiro

Matérias de autoria presumida ou confirmada de Rodrigues Sampaio relacionadas, predominantemente, com a actualidade política estrangeira, tipologicamente similares àquelas que foram incluídas na mesma categoria nos procedimentos de classificação de textos sobre Portugal Continental. Matérias sobre revoltas, tumultos, revoluções, golpes de Estado e guerras no estrangeiro, etc. Englobaram-se também nesta categoria as peças sobre questões sociais estrangeiras, tipologicamente semelhantes àquelas que foram incluídas na mesma categoria nos procedimentos de classificação de textos sobre Portugal Continental, bem como peças relacionadas com a vida na Santa Sé, as actividades religiosas da Igreja Católica, do Papa e da Cúria Romana e as cerimónias e actividades religiosas em geral ocorridas no estrangeiro.

Exemplos

A Nação desafrontou hoje dignamente os Estados Romanos. Depois daquele golpe de mestre, cumpre-nos calar. Eis aqui as palavras do Moniteur sobre as quais a Nação jura, e com que nos confunde. São as seguintes:

“O Santo Padre, desde a sua restauração, tem-se aplicado com o zelo mais perseverante e meritório a pôr em execução a maior parte das medidas recomendadas ao seu predecessor em 1831. O sistema municipal foi completamente refundido e reorganizado. Foi estabelecida uma consulta de finanças que funciona livremente. Realizou-se a introdução do elemento leigo na administração, e em tão larga escala que nas secretarias, nos tribunais e nos governos provinciais de todo o Estado apenas se conta uma cinquentena de eclesiásticos e entre estes muitos sem o carácter sacerdotal. O Tribunal Supremo da Rota, por exemplo, não conta entre os seus doze membros, senão quatro prelados que sejam padres. (Parece que há prelados sem ser padres.)

Quanto a salteadores, as medidas enérgicas adoptadas pelas autoridades tiveram felizes efeitos. Há dois meses, que não há notícia de assaltos contra viajantes.”

Este quadro é edificante, e confunde-nos; mas ainda nos confunde mais a consequência que dele queriam tirar.

O Santo Padre vai pondo em execução as medidas aconselhadas em 1831 (há 24 anos) com zelo espantoso. Aquele Governo mostra zelo quando, no fim de 24 anos, faz uma coisa que lhe aconselham. (Revolução de Setembro, 7 de Setembro de 1855)

Abrindo-se de novo, tranquilamente, a Câmara Portuguesa, em 1875, encontra uma nova revolução triunfante em Espanha, e o trono de Afonso XII erguido sobre as ruínas das instituições republicanas, se é que a república em Espanha chegou a ter instituições. E assim, depois de seis anos de revolução, depois de seis anos de democracia… em programas, a Espanha volta ao que era antes de 1868! Mereceu a pena despenhar-se, para andar mais depressa, pelas fragas e alcantis da república!

Deus fade bem o trono de Afonso XII, e, apagando na mente do jovem príncipe as deploráveis tradições da sua família, lhe ensine a ser Rei constitucional. Queira a fortuna de Espanha que ele se lembre mais de que é sucessor de Amadeu do que filho de Isabel II. (Revolução de Setembro, 5 de Janeiro de 1875)

A tabela 7 e o gráfico 2 fornecem indicações sistemáticas relevantes sobre a estrutura temática dos textos de Sampaio publicados no Revolução de Setembro entre 1851 e 1882.

Tabela 7

Temas das matérias redigidas por António Rodrigues Sampaio entre 1851 e 1881 e publicadas no jornal A Revolução de Setembro (em percentagem)

Apesar de muitas das peças do Revolução de Setembro não serem assinadas, prática que se intensificou a partir de meados dos anos 1860[21], pode afirmar-se, tendo em consideração os dados da amostra[22], que Rodrigues Sampaio escreveu esmagadoramente (62% do total da amostra), e em todos os momentos (gráfico 2)[23], sobre a actualidade política nacional – a Monarquia, a trica política, os ataques aos adversários e à sua imprensa, o incentivo aos correligionários, a governação, as campanhas eleitorais, os grandes princípios morais e cívicos que deveriam presidir ao jogo político. Fazia-o, por vezes, conforme se vislumbrou anteriormente, num tom que oscilava entre o moralista e o panfletário, mais direccionado à emoção do que à razão. Mas noutras vezes, tal como se demonstrou, ilustrava com bastantes dados factuais, e até numéricos, a sua argumentação, pois já se recorria abundantemente à retórica dos números no combate político-jornalístico de oitocentos.

De qualquer modo, deve relevar-se que a produção jornalística de António Rodrigues Sampaio foi maior até ele se envolver mais decididamente na política, a partir de 1860, tendo decrescido significativamente quando passou a tomar quase continuamente parte do Governo. Efectivamente, a partir de 1870, a sua colaboração com A Revolução de Setembro, já então rara,ter-se-á tornado meramente pontual. A tabela e o gráfico não dão conta desse facto, pois referem-se apenas às percentagens da produção jornalística de Rodrigues Sampaio por temas, mas esse fenómeno é visível ao folhear-se A Revolução de Setembro.

Eminentemente imbricada com a política, não admira que a economia seja o segundo tema mais abordado por Sampaio (14,5% do total da amostra), ao longo de todo o período analisado (e com especial destaque para 1855, conforme se nota no gráfico 2) – os negócios político-económicos, a actividade bancária, os impostos, o orçamento do Estado, o défice, o endividamento, os montantes necessários ao investimento público, são temas recorrentes na prosa sampaína. Além do mais, ele era um burguês liberal manifestamente interessado na coisa pública e que cultivava, naturalmente, os valores burgueses da prosperidade, do respeito pela iniciativa privada, da liberdade e da moderação nos impostos (excepto quando teve de defender a introdução de novos impostos pelos seus correligionários para compensar o aumento exponencial do défice orçamental e da dívida pública, como aconteceu durante a Janeirinha).

A segunda metade de oitocentos foi economicamente tumultuosa, o que também contribui para explicar o relevo dado continuamente por António Rodrigues Sampaio à economia. Por vezes, conforme documenta o gráfico 2, a discussão económica parece até tomar de assalto a discussão eminentemente política, pois quando aumenta a intensidade da cobertura dos temas económicos diminui a intensidade da cobertura dos temas (mais) políticos, embora ambas as categorias registem sempre mais ocorrências de casos do que as restantes.

Para além da sua mundividência, há variadíssimos motivos económicos para explicar as razões que levaram Sampaio a discutir a actualidade económica da sua época com tanta persistência e veemência. A necessidade de investimento público e privado na modernização e industrialização do país e na criação de infra-estruturas de transportes e comunicações tinha como reverso a inflação, o aquecimento da economia, o aumento do défice orçamental e o crescimento constante da dívida pública. As ocasiões de pânico financeiro sucediam-se, até porque a actividade bancária era incipiente e, por vezes, os bancos faliam. A introdução vertiginosa de dispositivos de financiamento das empresas e de investimento que para os portugueses em geral eram relativamente novos, como o crédito bancário, as acções, as obrigações e os futuros, terá, certamente, contribuído para aumentar a sensação de insegurança e de instabilidade. Por outro lado, ontem como hoje, para equilibrar as contas os governos tiveram de ir aos bolsos dos contribuintes, o que originou protestos, como a revolta da Janeirinha. Todos estes acontecimentos não poderiam passar despercebidos a um jornalista e político como António Rodrigues Sampaio, homem profundamente embrenhado nos negócios públicos e observador atento da realidade da época – em especial dos fenómenos que lhe eram mais próximos e familiares ou que exigiam tradução interpretativa (ou seja, imposição de enquadramentos).

De que outros temas tratou Sampaio? Mais uma vez, confiando na amostragem, verifica-se que abordou, com valores pouco significativos ao longo de todo o período em análise (gráfico 2), questões relacionadas com o momento político:

a) O investimento em obras públicas, transportes e comunicações (tema motivado, especialmente, pela construção de vias-férreas, sendo foco de 5% das peças);

b) A educação (3,5% das matérias recolhidas, incidindo, sobretudo, na defesa da instrução primária);

c) A vida social (1% das matérias da amostra), a que ele, como político e homem público, não podia fugir;

d) As greves, tumultos e revoltas (3,5% de textos do total da amostra são sobre esta temática, o que indicia a instabilidade da segunda metade de oitocentos);

e) A justiça (3% dos textos, por causa, nomeadamente, dos debates sobre a introdução de novos códigos civis e administrativo ou sobre o fim da pena de morte, mas também sobre os castigos a aplicar aos perpetradores de determinados crimes).

As questões sociais e saúde (pública) (2,5% dos textos) foram abordadas por António Rodrigues Sampaio a propósito, principalmente, das epidemias que ciclicamente afligiam um País onde a falta de higiene e saneamento básico era gritante e onde a maioria da população andaria subnutrida ou mal-alimentada. Por vezes, a saúde era aproveitada para fazer trica política, conforme também já se disse. A saúde foi notícia, igualmente, porque personalidades importantes da sociedade da época – incluindo a Família Real e o próprio Rei D. Pedro V – morreram na sequência de epidemias. A selecção noticiosa obedecia, neste como noutros temas, aos critérios de noticiabilidade: Sampaio destacou o que tinha impacto (pelo número de afectados) ou o que acontecia com as personalidades de elite.

A avaliar pela amostra recolhida, ao contrário do que aconteceu na obra de filósofos como Marx, as questões sociais – nomeadamente as desigualdades sociais – embora por vezes detectáveis na prosa de António Rodrigues Sampaio, conforme se documentou na análise qualitativa do seu discurso a que se procedeu anteriormente, nunca foram uma das suas preocupações dominantes. Poucos dos seus textos amostrados reflectem sobre temáticas sociais. Quando o jornalista reflecte sobre temas sociais, normalmente fá-lo a propósito de assuntos discutidos no Parlamento, como a extinção dos vínculos de morgadio. Ou seja, embora podendo condoê-lo, a sorte dos mais humildes não foi uma das preocupações centrais de Sampaio. Ele, político burguês, escrevia, predominantemente, para um público burguês com quem se identificava e sobre os temas que eram discutidos no âmbito do jogo político. O que ficava à margem desse horizonte de preocupações imediatas do jornalista e dos políticos e o que se afastava das expectativas do (seu) público, também ele interessado ou engajado no jogo político, acabava por ser algo ostracizado. Mais uma vez se pode afirmar, a propósito, a verdade palisseana de que quando se fala de algo, cala-se inevitavelmente muito, porque o discurso é selectivo, ainda que possa indiciar parcelas da realidade e ser verdadeiro e factual quando aquilo de que se fala tem correspondência com as parcelas da realidade que constituem o referente do discurso.

Apesar de ser jornalista, os dados da amostra documentam que Sampaio não escreveu muito sobre jornalismo (somente 1% dos textos do total da amostra incidiram sobre o jornalismo). O jornalismo estava em transformação, e haveria, certamente, muitas questões jornalísticas sobre as quais poderia ter reflectido de forma mais sistemática e consistente. No entanto, percebe-se que, embora sendo jornalista, no sentido em que, pelo menos até meados da década de 1860, vivia tanto ou mais do jornalismo do que do exercício de cargos políticos, Sampaio olharia, predominantemente, para si mesmo como um interveniente no jogo político, pelo que escrevia, dominantemente, sobre os temas políticos que o preocupavam em cada momento. Além do mais, certamente os seus leitores e correligionários não esperariam dele muitos textos sobre jornalismo, mas sim muitos textos sobre política. E Sampaio tinha de corresponder às expectativas do seu público.

Residualmente, António Rodrigues Sampaio escreveu, ainda, sobre questões e eventos religiosos (0,5% dos textos da amostra), certamente não só porque era crente católico mas também porque a religião constituía uma dimensão importante da vida na sociedade portuguesa da época; e sobre as calamidades e desastres (0,5% dos textos), como o naufrágio do vapor Porto na barra da foz do Douro, na cidade do Porto, pois são acontecimentos com extraordinário valor noticioso, já que confrontam o homem com a consciência da sua própria mortalidade e com a sua incapacidade de defesa face à enorme força da natureza ou do “destino”.

Emerge, assim, do discurso de Sampaio a ideia de que foi um jornalista centrado nas grandes questões nacionais do seu tempo, um homem político cujo discurso não ecoava uma realidade artificial, ainda que fosse pautado pelo debate da actualidade política, em que ele estava sobejamente embrenhado, muito mais do que o comum dos cidadãos. De facto, as palavras de António Rodrigues Sampaio indiciam fortemente a realidade nacional da época, as questões que afligiam os portugueses de então (e, porventura, os de hoje). Ele não se debruçou muito sobre a actualidade internacional (apenas 2% dos textos que integraram a amostra ecoavam a realidade estrangeira)[24] nem sequer sobre os assuntos coloniais, da Madeira e dos Açores (1% dos textos da amostra), talvez porque a realidade nacional continental bastava e sobejava para lhe dar pretextos para a intervenção política através do jornalismo e corresponder, assim, ao interesse dos seus leitores e correligionários – clientes e compradores do Revolução de Setembro.

Quando Rodrigues Sampaio abordou as realidades estrangeiras, fê-lo, principalmente, para comentar a actualidade política e, ocasionalmente, acontecimentos disruptivos e traumáticos com impacto ao nível de toda a Europa – as guerras, as revoluções, os golpes de Estado.

Quando o jornalista escreveu sobre os assuntos coloniais, fê-lo, na maioria das matérias, abordando a política da administração colonial, mas, pontualmente, também narrou os combates que os portugueses tiveram de travar para assegurar a posse dos territórios que colonizaram.

Teria sido estranho que um jornalista político, parlamentar e governante engajado na coisa pública, como o foi António Rodrigues Sampaio, não comentasse a actualidade política estrangeira e a administração colonial. Todavia, a atenção que lhes deu foi manifestamente residual. Num aparte, nota-se, nesta matéria, que ele não discute nem muito menos coloca em causa o conceito de colónia. Ao tempo, o colonialismo pareceria aos europeus uma coisa normal, legítima e justificada.

A tabela 8, sobre as localizações geográficas referidas nos textos de Sampaio[25], ajudam a reforçar a ideia anterior, pois demonstra que ele escreveu, principalmente, sobre temas relacionados com “Portugal em geral” (61,5% das referências a localizações geográficas são a Portugal). De facto, a grande maioria dos temas políticos sobre os quais Sampaio se deteve – como a vida partidária ou a governação – tinham, efectivamente, alcance e implicações nacionais, diziam respeito ao todo nacional.

Tabela 8

Lugares referidos nas matérias redigidas por António Rodrigues Sampaio entre 1851 e 1881 e publicadas no jornal A Revolução de Setembro, em percentagem relativa ao número de referências a cada local

Os dados da amostra expressos na tabela 8 documentam, também, que quando se deteve sobre realidades locais, Rodrigues Sampaio falou, principalmente, de Lisboa (17% das referências), onde ele vivia e que era, tal como é hoje, o principal palco da política nacional, e depois do Porto, segunda maior cidade do País e palco secundário do jogo político. As restantes regiões e localidades do país, de acordo com os dados da amostra, foram algo ignoradas por Rodrigues Sampaio, apesar dos 4% das referências a locais do Norte (nomeadamente Braga) e dos 2,5% de referências ao Alentejo e ao Algarve. Longe do Continente, a Madeira e os Açores só ocasionalmente entraram na prosa sampaína.

As províncias ultramarinas (3% das referências) e o estrangeiro também raramente foram palco para a prosa de Rodrigues Sampaio. Nos exemplos da amostra, os países que mais assomam são Espanha, pela proximidade, o Brasil (destino de emigração portuguesa), a França e a Inglaterra (por causa da sua presença constante na política do Velho Continente e por causa da sua influência na política e na diplomacia portuguesa) e a Santa Sé (devido não só ao facto de Portugal ser um país católico, fé partilhada por Sampaio, mas também por causa da instabilidade italiana, decorrente do processo que conduziria à unificação de Itália). Isso não quer dizer que Rodrigues Sampaio não possa ter escrito mais abundantemente sobre realidades de outros países em secções do Revolução de Setembro, como a de “Política Estrangeira” (aliás, 0,5% das referências a lugares na prosa sampaína são referências a outros países). Pelo contrário, significa somente que, tendo em conta o carácter sistemático da amostra, destinada a fazer perceber o caso geral, não se detectaram nem contabilizaram na mesma mais ocorrências.

Por outro lado, quais as fontes usadas por António Rodrigues Sampaio nas matérias que redigiu? Isto é, desprezando os casos em que Sampaio foi a fonte (por observação directa ou conhecimento dos factos narrados), maioritários, quais as fontes de que ele se serviu, em número de referências, para elaborar as suas matérias?

Para apuramento de dados passíveis de dar resposta a essa questão, definiram-se, para contabilização de referências, os títulos de várias publicações, nacionais e estrangeiras, e ainda as seguintes categorias de análise de conteúdo:

Indivíduas em geral (portugueses) – Particulares de nacionalidade portuguesa sem actividade jornalística, sejam figuras públicas ou pessoas comuns, citadas, normalmente, por observação directa daquilo que diziam.

Exemplos

A autópsia feita no cadáver do Sr. Infante D. Fernando indica a origem da moléstia. E antes de a vermos, o nosso colaborador de Estremoz, num artigo que hoje publicamos, explicava do mesmo a causa do infortúnio público. (Revolução de Setembro, 13 de Novembro de 1861)

Mas a situação financeira é próspera. Não o afirmamos nós que poderíamos ser suspeitos: assegura-o quem pela sua tenaz, embora recente oposição, se tem tornado notável.

São suas as seguintes palavras:

“Parece-nos que todos deveremos ficar satisfeitos pela convicção que a operação da Junta de Crédito Público deve levar aos espíritos mais timoratos e hesitantes de que a situação financeira é boa. (…)” (Revolução de Setembro, 4 de Dezembro de 1875)

Indivíduos em geral (estrangeiros) – Particulares de nacionalidade estrangeira sem actividade jornalística, sejam figuras públicas ou pessoas comuns, citadas, normalmente, por observação directa daquilo que diziam.

Exemplo

[Não foram registadas ocorrências.]

Correspondência (de Portugal) – Informações enviadas por correspondência nacional por indivíduos de diversas zonas do País.

Exemplos

O Sr. governador civil de Bragança pede ao público que suspenda o juízo a respeito de S. Ex.ª até chegar a Bragança. (…) Eis aí a correspondência, que é pior que a anterior: “Sr. redactor da Revolução de Setembro (…).” (Revolução de Setembro, 9 de Janeiro de 1855)

Um dos protestantes da Nação pede-nos a publicação da cópia da seguinte carta que, cremos, foi dirigida à mesma Nação ou à comissão canónica. Eis a carta: “(...).” (Revolução de Setembro, 30 de Dezembro de 1855)

Correspondência (do Estrangeiro) – Informações enviadas por correspondência de países estrangeiros por indivíduos residentes no exterior.

Exemplo

[Não foram registadas ocorrências.]

Telégrafo – Informações recebidas por telégrafo.

Exemplo

Quando hoje os avisos telegráficos anunciaram o pedido de socorros já os primeiros escaleres navegavam pelo Tejo acima.

Segundo o seguinte aviso telegráfico nenhuma desgraça havia acontecido. Eis o aviso:

N.º 6 – Boletim do telégrafo central, 19 de Fevereiro de 1855.

Serviço da linha telegráfica do Norte – do telégrafo de Santarém às 4 horas e 45 minuto. – Do governador civil de Santarém.

O meu anúncio telegráfico de hoje satisfaz à pergunta que V. Ex.ª me dirigiu telegraficamente (...). (Revolução de Setembro, 20 de Fevereiro de 1855)

Outras publicações nacionais – Informações retiradas de publicações nacionais que não os jornais portugueses especificados em categoria própria (Diário do Governo).

Exemplos

No Braz Tizana lê-se: “Por mais que se grite contra os abusos, devassidões e delapidações dos empregados, nenhum resultado se obtém.” (Revolução de Setembro, 25 de Novembro de 1851)

Eis aqui o que se lê no Pedro Quinto, jornal do Porto, sobre a questão das subsistências. E note-se que este jornal é dedicado a essas classes, e não é desses que as tem injuriado bradando contra as associações. Diz ele o seguinte: (Revolução de Setembro, 22 de Dezembro de 1855)

A folha oficial diz: “Estamos autorizados a declarar que a lei de desamortização, publicada no Diário de Lisboa de 26 de Abril último, está inteiramente conforme com o autógrafo respectivo que da Câmara dos Srs. Deputados subiu à sanção real.” (Revolução de Setembro, 7 de Maio de 1861)

A Imprensa e Lei publica hoje um artigo sobre subsistências, no qual se lêem os seguintes períodos:

“A convicção da escassez produziu antes do decreto da liberdade da importação a subida dos preços (…).” (Revolução de Setembro, 14 de Novembro de 1855)

O Nacional traz hoje mais o seguinte escândalo:

A CHAVE DO ENIGMA

“Prepara-se o País para assistir a uma torpeza mais.

Viram há pouco vir em defesa do Sr. Ávila o próprio advogado da sua acusadora, ministrando-lhe a prova da sua inocência, no conceito e convicção em que o tinha por puro e imaculado (…).” (Revolução de Setembro, 17 de Janeiro de 1871)

Outras publicações estrangeiras – Informações retiradas de publicações estrangeiras.

Exemplo

Eis as palavras do Moniteur sobre as quais a Nação jura, e com que nos confunde. São as seguintes: (...). (Revolução de Setembro, 7 de Setembro de 1855)

Documentos oficiais – Documentos do Parlamento, do Governo e da administração pública em geral. Documentos normativos. Comunicados oficiais.

Exemplos

Diz o relatório que precede o decreto de 18 de Dezembro de 1852:

“A Nação pode e deve pagar mais do que actualmente paga, porém o excedente da receita que daí provier, convém que seja exclusivamente aplicado às vias de comunicação; à instrução pública, ao restabelecimento da nossa marinha (…).” (Revolução de Setembro, 29 de Novembro de 1855)

As acusações eram tão fortes, os crimes tão graves, as provas tão claras, que a maioria da situação (honra lhe seja) obrigou, diz-se, o Sr. Lobo d’Ávila a ausentar-se da Câmara, enviando-lhe o seguinte ofício: “Ilustríssimo e excelentíssimo Sr. – Posto achar-me já legalmente proclamado deputado da Nação na presente legislatura (…)”. (Revolução de Setembro, 17 de Janeiro de 1865)

Comunicados – Participações, informativas ou não, enviadas por várias entidades ou grupos.

Exemplos

Eis aqui a representação do Banco Comercial do Porto a que nos referimos: “(...).” (Revolução de Setembro, 26 de Dezembro de 1851)

Abaixo transcrevemos a representação de uma companhia de pescadores da costa de Ílhavo, que ultimamente foi dirigida às Cortes e que teve o destino competente.

(…)

A representação é a seguinte:

“Senhores deputados – os abaixo assinados, pescadores das companhias da costa de Ílhavo distrito de Aveiro, vêm, fundados na justiça que lhes assiste, pedir aos representantes da Nação Portuguesa a extinção do imposto do pescado, estabelecido pela carta de lei de 10 de Julho de 1843. (…)” (Revolução de Setembro, 9 de Março de 1855)

Os dados respeitantes às referências às fontes de informação encontram-se expressos na tabela 9. É de realçar que não se contabilizaram as aparições, directas ou perceptíveis, do próprio António Rodrigues Sampaio como fonte de informação, porque essa é a situação que se verifica na generalidade das matérias. Interessou, apenas, determinar as fontes que o autor identifica.

Tabela 9

Fontes citadas nas matérias redigidas por António Rodrigues Sampaio entre 1851 e 1881 e publicadas no jornal A Revolução de Setembro

O que desde logo a tabela 9 documenta é a enorme dependência que António Rodrigues Sampaio denotava dos outros jornais – em especial dos jornais nacionais, como o oficial Diário do Governo – para dar informações e tecer opiniões. Na verdade, 67% de todas as referências a fontes na prosa do jornalista dizem respeito a publicações periódicas, usadas quer como simples fontes de informação (em especial, as estrangeiras), quer como alvos de discussão, quer ainda para confirmar ou refutar argumentos. Haveria, aliás, conforme se confirma por estes dados extraídos da prosa de Sampaio, uma certa circularidade nas informações e opiniões ofertadas pelos jornais políticos oitocentistas. Os periódicos políticos referiam-se uns aos outros, atacavam-se ou apoiavam-se mutuamente, retro-alimentavam-se uns aos outros com notícias e opiniões. Daí, também, a enorme receptividade pública que teve a imprensa industrial, de cariz eminentemente informativo e noticioso, quando surgiu. Haveria, de facto, um segmento de público que não se revia no jornalismo político que lhe era oferecido ou que estaria simplesmente cansado dessa circularidade info-opinativa que lhe era proposta pelos jornais políticos como A Revolução de Setembro.

Por outro lado, a enorme dependência da imprensa como fonte – mesmo nos artigos de opinião – evidencia que os circuitos de informação nacionais e internacionais da imprensa oitocentista portuguesa eram estruturalmente similares àqueles que foram usados pelas publicações que inauguraram o periodismo português, no século XVII: a Gazeta e o Mercúrio (cf. SOUSA, 2009b).

Indivíduos portugueses são fontes citadas por Sampaio em 19% das referências. Normalmente, são citados porque Sampaio presencia, como observador, os acontecimentos em que eles intervieram. São, amiúde, os casos dos debates parlamentares, que Sampaio relata escrevendo que determinados indivíduos disseram determinada coisa. As intervenções do Rei ou de políticos como Fontes Pereira de Melo no Parlamento, por exemplo, são, normalmente, citadas por Sampaio.

Nota-se que não há referências a indivíduos estrangeiros como fontes na amostra analisada. Isto não significa que não possam ter sido referidos como fonte indivíduos estrangeiros noutras ocasiões não amostradas. Significa apenas que regra geral isso não acontecia nos textos produzidos por Sampaio.

A correspondência foi pouco usada – ou, pelo menos, foi pouco referida – por Sampaio. O jornal Revolução de Setembro tinha, certamente, colaboradores voluntários espalhados pelo País, mas a sua colaboração, certamente voluntária, seria, possivelmente, esporádica, ou poderia não satisfazer suficientemente os critérios de interesse e relevância informativa ou opinativa de Sampaio.

Documentos oficiais (7%) e comunicados (2%) constituíram, com alguma frequência, fontes de informação para Rodrigues Sampaio. Normalmente, eram citados pelo jornalista não somente para providenciar informações aos leitores, mas também – e principalmente – para sobre eles opinar, enquadrando-os à luz da sua mundividência e da perspectiva do Partido Regenerador.

O telégrafo, recurso caro, tinha, ainda, uma utilização marginal (1%).

Outra questão que poderá ser colocada é a seguinte: Que géneros jornalísticos empregou Sampaio na sua colaboração com A Revolução de Setembro? Será que escreveu apenas artigos ou também empregou outros géneros jornalísticos, como as notícias? Para dar resposta a estas questões, enveredou-se por uma análise de conteúdo, tendo-se, a priori, definido as seguintes categorias:

Notícia breve comentada – Enunciado no qual Rodrigues Sampaio, para além de narrar factos, comenta, interpreta e/ou analisa esses mesmos factos. Incluíram-se na categoria matérias com oito ou menos linhas.

Exemplo:

Lisboa esteve com imensa gente nos três dias de festejos, e nunca se gozou de maior sossego, nem de maior segurança. Não houve uma palavra mais alta, não houve um bofetão, não houve roubos. Isto é uma prova da nossa civilização. (Revolução de Setembro, 22 de Setembro de 1855)

Notícia breve não comentada – Enunciado em que António Rodrigues Sampaio descreve factos com ambição de verdade e objectividade, sem fazer comentários e/ou análises aos mesmos. Incluíram-se na categoria “notícia breve não comentada” as matérias com oito ou menos linhas.

Exemplo:

Encerraram-se hoje as Cortes. Sua Majestade El-Rei regente não foi assistir àquele acto no qual se fez substituir por todos os seus ministros.

Curto é o intervalo que vai daqui até 2 de Janeiro, dia em que recomeçarão os trabalhos parlamentares que ficam nomeadamente interrompidos. (Revolução de Setembro, 27 de Dezembro de 1865)

Notícia desenvolvida comentada – Enunciado no qual Sampaio, para além de narrar factos (que constituem o pretexto para a matéria e o seu centro), comenta, interpreta, enquadra e/ou analisa esses mesmos factos. Contabilizaram-se na categoria de “notícia desenvolvida comentada” todos os textos com nove ou mais linhas.

Exemplo

Votou-se hoje na Câmara dos Pares o projecto que lhe fora enviado dos deputados sobre a isenção de direitos das máquinas importadas do estrangeiro pelos Srs. Colares para o restabelecimento da sua fábrica, até à quantia de 4500 réis.

Tinha havido uma discussão extravagante, e propostas singulares. Apareceram até umas representações, apresentando-se de emboscada, parecendo pretender introduzir-se na lei sem a conveniente proposta.

Foi a primeira vez que se viu aparecerem fabricantes a contestarem a protecção que se dava a seus vizinhos, e que se daria a eles estando nas mesmas circunstâncias, e requerendo-o do mesmo modo.

Foi um bom exemplo que deram os que gritam constantemente pela protecção, e que bradaram contra ela quando por um acidente se julgou conveniente conceder-lha em maior escala, ainda que com razoável limite.

Não o esperávamos; mas aprender até morrer. (Revolução de Setembro, 24 de Março de 1855)

Notícia desenvolvida não comentada – Enunciado em que Rodrigues Sampaio descreve factos com ambição de verdade e objectividade, sem comentar ou analisar os mesmos. Incluíram-se na categoria de “notícia desenvolvida não comentada” todas as notícias com nove ou mais linhas, frequentemente construídas com base em sucessivas paráfrases.

Exemplo

O Sr. Fontes apresentou-se hoje na Câmara Electiva para responder à interpelação anunciada pelo Sr. Correia Caldeira a respeito dos boatos que corriam no público da demora futura no pagamento dos juros por parte da Junta do Crédito Público.

O Sr. Fontes respondeu que não havia nada de fundado em semelhantes boatos, que a receita pública entrava na junta em conformidade da lei, que não havia nenhuma emissão de inscrições ilegal, e que os documentos que em breve apresentaria à Câmara haviam de mostrar o estado da divida flutuante e as inscrições que se achavam empenhadas.

Quanto à emissão de inscrições para pagamento de certa dívida proveniente de fornecimentos ao exército em 1847, sobre que fora também interpelado, respondeu ser verdade ter o Governo mandado emitir inscrições, mas que reconhecendo a ilegalidade do acto, anulara o despacho, e mandara suspender a emissão, a qual não tivera lugar. (Revolução de Setembro, 7 de Fevereiro de 1855)

Artigo de opinião com matéria informativa relevante – Enunciado onde Rodrigues Sampaio expõe o seu posicionamento perante um determinado tema ou assunto do domínio público e de interesse geral, descrevendo e interpretando factos e as implicações ou consequências dos mesmos. Contabilizaram-se nesta categoria os artigos em que o autor não apenas se posiciona sobre os factos, mas também os narra extensamente.

Exemplo 1

Entendamo-nos! – exclama hoje o órgão do Partido Histórico, falando à sua gente. Entendamo-nos, quer dizer: não nos temos entendido até aqui, entendamo-nos é uma confissão ingénua e sincera do estado em que se encontra aquele Partido, que pede aos seus correligionários que se entendam por favor, por condescendência, para ver se chegam a algum acordo enfim.

Entendamo-nos, dizem eles uns aos outros; entendamo-nos, senão cai por terra, não a igrejinha… mas o teatrinho.

E na primeira coisa em que os históricos precisam entender-se é na questão da eleição municipal. Ninguém os entendeu, coitadinhos, nem eles se entenderam nem se entendem ainda uns aos outros.

Eles não queriam comer o Partido Reformista nas maquinações que tramavam junto dele; o que queriam apenas era por maneiras insidiosas preparar-lhe a surpresa de o fazerem partilhar a glória da incubação de uma Câmara… histórica. Sublime abnegação que os reformistas não entenderam.

Mas os do Alecrim falam bem claro. Nesta questão, agora, não fazem senão lavar as mãos, o que continua a denotar tendência de asseio, mas que não quer dizer que o Partido Histórico seja pouco limpo de mãos, apesar do seu órgão já declarar que a honestidade não era característica comum a todo partido.

Os do Alecrim agora lavam as mãos, por desfastio, assim como dantes demonstravam axiomas. Não lavam as mãos das nódoas com que os arremessos de lodo que quotidianamente manejam as tenham manchado; não lavam as mãos do labeu de especuladores de que ainda se não limparam, não lavam as mãos para se purificarem da mácula de caluniadores, que lhes ficará indelével, para isso precisariam maior lavagem, careceriam de lavar a consciência, e eles lavam apenas as mãos, que queriam meter na urna da eleição municipal de Lisboa.

Apesar de se apresentarem de mãos lavadas, não se descuidam de arremessar algumas pedradas a várias das três listas que, segundo eles afirmam, são todas governamentais. Três listas governamentais, em oposição umas às outras, era descoberta que estava guardada para imortalizar a gente que já havia produzido a demonstração dos axiomas e a ressurreição antes da morte!

Entendamo-nos – diz imperiosamente a voz do Partido às suas falanges dispersas – os soldados estão licenciados… porque não se puderam entender, mas apesar de se não entenderem, vejam se nos entendem e votem em quem quiserem, à vontade, sem cerimónia, com tanto que seja em quem o partido lhes indicar. Entendem?

Estas exortações do evangelho histórico fazem lembrar as de um espertalhão de uma cena cómica muito conhecida que dizia: “Eu caso com quem meu pai quiser logo que seja com a Maria.” Os históricos também estão na mesma – votem à vontade logo que seja em fulanos e fulanos.

Ah! Ingratos reformistas, ingratos reformistas, que não quisestes o papel que tão generosamente vos davam os históricos nos seus planos de gloriosa campanha municipal. Aí tendes o resultado. Fostes vós que os obrigastes a… irem lavar as mãos. (Revolução de Setembro, 28 de Setembro de 1875)

Exemplo 2

E a Revolução se pudesse ser imparcial, esperaria pela notícia da reunião daquele ajuntamento para aprovar ou condenar o voto da classe comercial do Porto, ou, para melhor dizer, da cidade do Porto, e limitar-se-ia a repelir contra os sete signatários a ilação que tirou do malfadado anúncio. Mas a sua leviandade habitual não lhe consentiu esperar pelos factos consumados, preferiu criar um fantasma para ter o gosto de o derrubar com aquela loquacidade caseira que lhe é conhecida. Havemos de publicar em devido tempo a representação da Associação Comercial do Porto, para que se veja que toda a oposição ao seu pedido tão razoável na exigência como moderado na forma, bem pode classificar-se de acintosa e parcial.

(O Comércio do Porto)

A Revolução esperou mais do que devia esperar pela representação da Associação Comercial do Porto. Podia havê-la à mão, podia antecipar-se a publicá-la. Não o fez. Levou-a ao extremo a sua delicadeza e cortesia. Supôs que tal representação não existia enquanto a Câmara dos Deputados não a mandou dar à luz. Hoje tomamo-la do Diário do Governo. É a edição oficial. Não se diga que deturpamos o códice. Interessamo-nos em que ele se conserve em toda a sua pureza. Se estivéssemos mais próximos do Comércio, mandávamos-lhe a prova da nossa folha, e sem ele no-la enviar certificado, não reputávamos por autêntica a nossa cópia.

Queremos combater lealmente. Queremos apurar verdades e não satisfazer revindicações. Queremos destruir preconceitos e não jogar invectivas. Queremos aproveitar os dinheiros públicos e não cantar vitórias. Queremos conversar com a Associação Comercial, não desconsiderá-la. Queremos expor as nossas razões e não impor a nossa vontade. O nosso campanário é o nosso País, e não o achamos demasiadamente grande. Se fosse maior, não estávamos nós gastando tanto tempo em questão tão pequena – pequena pelas somas a que se refere, pelas obras de que trata, mas grande, imensa pelos absurdos que tem trazido a lume, pelos sofismas que tem tecido, pelas ignorâncias que tem manifestado, pelas obcecações que tem descoberto, pelas esperanças que tem suscitado, pelas intrigas que tem urdido, pelas ambições que tem animado.

Quem diria que o amaldiçoado caminho-de-ferro nos serviria para utilíssimas viagens ainda antes de feito e mesmo de projectado! Tão grande é a sua propriedade e tendência para a viação! A ideia, por si, é uma espécie de locomotiva.

Por ela só fomos de S. Bento em Lisboa à Associação Comercial no Porto, da Associação Comercial à rua dos Caetanos, onde reúne a maioria da Câmara, da rua dos Caetanos ao escritório de todos os jornais do Norte, do escritório dos jornais, aos gabinetes dos nossos mais consumados estadistas. Praticamos com vária gente, ouvimos várias línguas, observámos vários usos. Estamos ricos de notícia, abarrotados de saber.

Não há mais pueril questão do que a que nos entretém. Diga-se a verdade para honra daqueles mesmos que a levantaram. Aqui não há que questionar. A tese controvertida ninguém a nega. Não há ousadia para tanto. Todos preferem o caminho-de-ferro à estrada. A disputa sustenta-se, pois, por motivos alheios a ela. São indisposições pessoais, são competências de localidade, são supremacias comerciais, são especulações políticas.

Nem todos os que andam nesta cruzada estão animados do mesmo espírito. Uns passaram a palavra com malícia, outros repetem-na com inocência. Uns iludem outros são iludidos. Uns levantaram a armadilha, outros caíram nela. Os sessenta e três deputados não pertencem nem a uma nem a outra classe. Salvo os agitadores dissimulados, cuja manha saloia os fez meter os pés pelas mãos, os restantes emitiram um voto, que é o voto de toda a gente. Disseram – que se não pudesse fazer caminho-de-ferro entre o Porto e Coimbra, se fizesse uma estrada ordinária, e que se fizesse o mais depressa possível. Há arbítrio mais sensato, mais lógico? Tentemos o melhor, e resignemo-nos ao bom. É o parecer de todos os homens em tudo que os pode interessar e está na esfera dos seus esforços.

Já nos ia esquecendo a representação da Associação Comercial do Porto. Por aqui começaremos a nossa tarefa argumentativa. Distinguimos estes adversários dessa tropa colectiva que se cobriu com aquela bandeira e que vem pelejar pela ilustração, pela generosidade, pelo patriotismo do comércio do Porto, não tendo outro intuito senão lisonjear a sua prosápia, convertê-lo em instrumento das suas más vontades, e deixá-lo carregar com a responsabilidade de procedimentos e doutrinas contra que se revoltam o bom senso, a experiência, as luzes do tempo, e os próprios rudimentos comerciais.

A representação da Associação Comercial é a seguinte:

– “Senhores deputados da Nação portuguesa! A Associação Comercial do Porto, numa numerosa assembleia-geral de seus membros, resolveu unanimemente que a sua direcção viesse perante vós, senhores, expor-vos o seu instante desejo de que na votação do orçamento do Ministério das Obras Públicas para o futuro ano económico, vos digneis de aplicar a soma necessária para a construção da estrada de Coimbra a esta cidade, pelo sistema de MacAdam, e pela directriz mais conveniente, de sorte que fiquem comunicadas entre si as importantes populações de Oliveira de Azeméis, São João da Madeira, Águeda, Albergaria, e outras com que esta cidade tem importantes relações comerciais.

Não deverá ser-vos desconhecido, senhores, o empenho que esta cidade tem constantemente mostrado em ligar-se com a capital da Monarquia, por meio de uma estrada seguida, e por isso pode imaginar-se com que júbilo seria por esta Associação acolhida a vossa deliberação, e o esforço do ilustrado ministro das Obras Públicas em secundá-la, levando ao cabo a estrada do Carregado a Coimbra, dentro de um prazo tão breve, que o País todo reconheceu como maravilhoso para a importante obra que se empreendeu.

Com igual iniciativa do vosso ilustrado zelo pela prosperidade deste País, com idêntico empenho do incansável ministro, esperava a Associação, que toma a honra de representar, vir encetar e concluir dentro de poucos meses a estrada de Coimbra ao Porto, que seria o complemento do seu voto tantas vezes manifestado. (...)”

Será esta representação da Associação Comercial do Porto, que o Comércio prometeu publicar? Serão estas as verdadeira proposições em que assentou a reunião presidida pelo Sr. barão de Massarelos? Serão estes os pensamentos do corpo comercial do Porto e de toda a cidade? Ora pois, não digam que criamos fantasmas, que torcemos as intenções, que desfiguramos os enunciados (…).

Mogofores! Mogofores! Também este grito de guerra soou nos salões do nobre edifício daquela distinta companhia, que, seja dito de passagem, tem levado mais tempo a construir do que a maior parte dos caminhos-de-ferro da Europa? Também ferveu a indignação nos peitos daqueles ilustres comerciantes ao recordarem uma das mais escandalosas venalidades que desonestam a situação actual? (…) Pois a Associação Comercial soube o que pediu, quando requereu às Cortes que dessem ao Porto os benefícios que estavam continuando a Aveiro?

Aí está em algarismos, na máxima evidência para comerciantes, o contrato duro e injusto pelo qual Aveiro se pavoneia para assoberbar todas as terras da sua circunvizinhança. Aí está reduzido a cifras o preço de uma consciência política, e um dos maiores segredos da dilatada existência desta situação.

Distrito de Aveiro

Obras Públicas

Mapa demonstrativo da diferença entre as quantias votadas pelas Cortes durante os anos económicos de 1853-1854 e de 1854-1855 para as obras das estradas abaixo mencionadas, e dispendidas nas mesmas obras desde aquele ano até à semana finda em 9 de Junho de 1855, a que se refere este mapa.

Receita

Estrada de Aveiro a Albergaria-a-Velha.

Ano económico de 1853 a 1854.

Quantia votada para este ano……………..4:000$

Ano económico de 1854 a 1855.

Quantia votada para este ano……………10:000$

Estrada de Aveiro a Mogofores.

Ano económico de 1854 a 1855.

Quantia votada para este ano……………10:000$

Total……………….24:000$

(…)

Já vê a associação comercial o que é Mogofores, o que é Aveiro? Já conhece os grandes benefícios que aquela localidade deve ao Governo? Vinte e quatro contos de reis em três anos para duas estradas, e dessas ainda seis em divida!

(…)

O artigo vai desmesurado, e contudo ainda sobra matéria para muitos outros. (A Revolução de Setembro, 28 de Junho de 1855)

Artigo de opinião sem matéria informativa relevante – Enunciado onde António Rodrigues Sampaio expõe o seu posicionamento perante um determinado tema ou assunto sem que se expanda na descrição de factos noticiosos, mesmo quando estes funcionam como o pretexto para o artigo.

Exemplo

A Nação ofereceu-nos um artigo do Português para nos convencer do abandono em que nos deixavam os nossos correligionários. A resposta deu-lha um operário na Verdade, jornal do Porto. Publicamo-la para dizermos ao Sr. Conceição que nenhumas palavras nossas foram inspiradas por qualquer ressentimento, e que se qualquer operário, mesmo algum que nos tenha ofendido, bater à nossa porta, não nos lembraremos senão de o servir no que pudermos sem lhe pedirmos sequer o reconhecimento de qualquer favor prestado. Se injuriam, é porque não sabem mais; se erram, é porque lhes falta a educação que deveriam ter.

Instruindo-os e protegendo-os fazemos o nosso dever (...). (Revolução de Setembro, 30 de Dezembro de 1855)

A tabela 8 mostra, então, os géneros jornalísticos a que Sampaio recorreu para expressar a sua voz através do Revolução de Setembro. É de realçar que se tinham definido, ainda, as categorias “Entrevista”, “Reportagem” e “Informações utilitárias e de serviços (não publicitárias)”, mas, na amostra estudada, não se registaram quaisquer casos de peças que devessem ser classificada nestas categorias, pelo que, caso tenham sido usadas por Sampaio, o foram a título meramente circunstancial.

Tabela 8

Géneros jornalísticos empregues por António Rodrigues Sampaio entre 1851 e 1881 no jornal A Revolução de Setembro

Os dados da amostragem permitem concluir que António Rodrigues Sampaio, para se exprimir no espaço público imaterial e simbólico do jornalismo, cultivou, essencialmente, o artigo de opinião com matéria informativa relevante (63% dos textos da amostra) e a notícia desenvolvida comentada (30% dos textos da amostra). Mesmo em várias das notícias breves que elaborou, o jornalista deixou expressa a sua opinião sobre os factos noticiados (2% das matérias). Há até 1% das matérias recolhidas que vivem unicamente da opinião do jornalista, sem relato notório de qualquer facto, por causa da natureza de determinados temas (como as discussões sobre a pertinência, ou não, da pena de morte ou sobre os princípios da política). Ou seja, em 96% das peças, Sampaio não se coibiu de interpretar factos e de opinar sobre a realidade que o cercava. No entanto, deve assinalar-se que, na maioria dessas matérias (95% do total), Rodrigues Sampaio partiu sempre do relato de factos, acontecimentos ou problemáticas. Ele teria perfeita consciência de que o jornalismo não vive sem informação, só com opinião – especialmente quando esta não é escorada pelos factos.

Os dados da tabela 8 testemunham, assim, a personalidade interventiva de Sampaio, mas também dão conta daquele que seria o estilo do jornalismo político português dominante na época – os factos exigiam interpretação e comentário, exigiam um enquadramento favorável ao partido que um determinado jornal representava. No entanto, conforme os dados da tabela e os exemplos acima expostos documentam, António Rodrigues Sampaio por vezes também redigia notícias factuais (4% das peças), ocasionalmente até baseadas em paráfrases sucessivas sobre as intervenções de terceiros no espaço público. No que respeita à expressão jornalística, à retórica do jornalismo, Rodrigues Sampaio era, portanto, detentor de competências maleáveis.

6.19 Em resumo...

Na sua intervenção jornalística, Sampaio tratou das grandes questões do homem (a liberdade, a democracia, o civismo) mas também das questões mais prosaicas (a educação, a saúde, a justiça, a economia...), sempre num estilo vigoroso, ornado de abundante adjectivação, de citações latinas e de figuras de estilo como a metáfora e as perguntas (ou dirigidas ao leitor presumido ou a si mesmo) e exclamações retóricas. Fá-lo, frequentemente, arvorando-se em “voz do Povo”, ou melhor, “voz de todo um Povo”. Mas nas suas palavras de crente católico (mais do que de homem de esquerda) ribomba, também, uma forte comiseração solidária pela sorte dos mais desfavorecidos ou daqueles que sofrem.

Poderá, assim, dizer-se que, ao integrar-se no ambiente relativamente tranquilo da Regeneração, as preocupações de Sampaio passaram a ser, sobretudo, a defesa da justiça, da moral e da lei (justa) – em suma, do Estado de Direito; a defesa da ordem democrática, com respeito pelos adversários; a protecção dos humildes, conforme os mandamentos católicos; a generalização da educação – principalmente de uma instrução técnica, o que denuncia a sua visão instrumental da mesma; e o progresso económico e material do País, com base numa linha liberal mais fisiocrata do que livre-cambista, assente na industrialização e nas obras públicas (principalmente na construção de escolas e vias de comunicação).

[1] A Revolução de Setembro sobreviveu a Sampaio, tendo fechado somente a 23 de Março de 1901.

[2] Nelson Werneck Sodré (1999, p. 407-421), por exemplo, sustenta que há limitações à liberdade de imprensa que partem dos detentores do capital, nomeadamente dos proprietários dos meios de comunicação social. Para o autor, estes teriam tornado o jornalismo em veículo da sua “opinião”, “em instrumento de alienação” e não de “esclarecimento”, devido às pressões que exerceriam sobre os jornalistas (possibilidade de despedimento, política salarial, interferências directas, etc.).

[3] Logo em 1851, foram mandados arquivar os processos por abuso de liberdade de imprensa pendentes; em 1856, estabeleceu-se que as leis de liberdade de imprensa se observassem também no ultramar. Em 1862, amnistiaram-se os crimes de liberdade de imprensa em que o acusador era somente o Ministério Público. Em 1863, publicou-se uma lei sobre os direitos dos jornais. Finalmente, em 1866, aboliram-se, por lei, “todas as cauções e restrições estabelecidas para a imprensa periódica”.

[4] Neiva Soares (1982, p. XXVI) assegura que leu todos os jornais, à excepção dos números em falta na Biblioteca Nacional, e que não encontrou vestígios da colaboração de Sampaio nesta publicação associativa.

[5] Alegadamente, durante a sua viagem, Rodrigues Sampaio teria enviado para o Revolução de Setembro várias cartas (“Notas de Viagem”) dando conta das suas experiências na Europa. Mas nos números de 1867 do periódico em causa não se encontrou qualquer texto que provasse esta alegação.

[6] Fonseca, em 1874, em texto dirigido a Sampaio, refere que este já estava retirado das lides jornalísticas.

[7] É interessante verificar como o juízo de Sampaio sobre Saldanha mudou ao longo do tempo, principalmente quando se confrontam os escritos de 1870 com os textos do tempo da Patuleia.

[8] Diga-se, no entanto, que António Rodrigues Sampaio manteve até morrer um enorme orgulho no Espectro. Um dia, segundo contam Ramalho Ortigão e Eça de Queirós nas Farpas de Janeiro e Fevereiro de 1873, já na condição de ministro do Reino, acusado nas Cortes de ter sido um radical, lançou um volume encadernado do jornal para a mesa e declarou que, se depois de o ter examinado, a Câmara entendesse que haveria alguma espécie de incompatibilidade entre as ideias que aí se achavam expostas e a presença de Sampaio no Governo, ele retirar-se-ia, porque preferiria a honra de ter escrito esse periódico à glória do cargo ministerial.

[9]As conferências do Casino Lisbonense foram realizadas por impulso de Antero de Quental, Eça de Queirós, Oliveira Martins, Teófilo Braga e Manuel de Arriaga, entre outros, tendo-se nelas debatido questões literárias e das artes plásticas, como o Realismo, questões políticas, como a República e o Socialismo, e ainda questões científicas, como a aparição das ciências sociais, o Darwinismo, etc. Por isso, eram corrosivas para o Portugal hiper-conservador e profundamente católico oitocentista. Segundo o manifesto paradoxalmente publicado no Revolução de Setembro de 18 de Maio de 1871, as conferências pretendiam “Abrir uma tribuna onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam este movimento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos; ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a sociedade civilizada, procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam na Europa; agitar na opinião pública as grandes questões da filosofia e da ciência modernas; estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa.”

[10] Era, porém, uma associação elitista que congregava, principalmente, “escritores de jornal” e “políticos de jornal”, não repórteres profissionais, então vistos como uma espécie de ralé do jornalismo nacional. Ser articulista, redactor de artigos políticos, era visto, ainda, como o objectivo “elevado” de muitos dos que se envolviam na vida dos jornais.

[11] Ramalho Ortigão, nas Farpas de Novembro de 1881, escreve uma farsa sobre a tomada de posse e demissão de Sampaio. O efeito cómico é tremendo:

Foi no dia da serração da velha que a cambulhada se constituiu e foi em estado ao paço apresentar-se ao Monarca.

– Aí está a rapaziada que se pôde arranjar, disse Sampadius, pondo-os (...), maternalmente, em roda do Trono. Tudo gente nova, ousada, corajosa, instruída, ávida de renome e de glória... É quanto por aí há de mais apto para resolver luminosamente (...) os graves problemas da governação pública.

– Quem é esta criança? – perguntou o Rei (...).

– Este é o Bazorra [o caricaturado é António José de Barros e Sá] – respondeu Sampadius (...).

Em seguida, dirigindo-se aos jovens:

– Mancebos! Diz-me aqui assim Sampadius Rusticus adque Rodrigues, do meu conselho, que vós vos achais nos casos de irdes serrar a velha. Sentis-vos com forças para isso?

– Sentimos! Sentimos! – conclamaram os meninos todos com ardor.

– Ide, pois! – concluiu a Coroa (...).

Assim começou a reinação famosa (...).

Chega ao cabo de seis meses o prazo de virem os jovens referir ao Parlamento qual o modo como corresponderam à confiança da Coroa, serrando a velha da governação. Vem o dia solene de São Martinho (...) e (...) os jovens (...) inesperadamente caem por terra.

Por que (...) caíram?

Dizem uns que a briga principiou pelas castanhas, sobre as quais a voracidade (...) de Bazorra se exercera de um modo que obrigava os seus colegas a considerarem a presença de S. Ex.ª no Governo como uma nova calamidade pública (...). Outros afirmam que a contenda tivera por origem a simples divergência de opiniões públicas (...).

Hintz Flumen (...) exigia (...) que fosse decretada a tristeza obrigatória (...) e que ninguém mais fosse recebido nas carreiras públicas (...). Bazorra (...) dizia:

– (...) O País, do que precisa, é de empregos públicos (...).

Convidado (...) a propor o seu plano, o rabino disse:

– O meu programa é simples. Consiste apenas em criar mais duas ou três alfândegas (...).

O inocente da Guerra exigia uma nova promoção de coronéis. Porque (...) só por meio duma forte emissão de coronéis (...) conseguiremos reanimar o importante comércio da amêndoa torrada e da pêra seca (...).

O menor da pasta da Fazenda opinava em sentido diverso:

– (...) a única base sólida sobre que repousa o progresso económico das sociedades é o barbeiro. (...) No fim do ano, a estatística do movimento das barbas (...) convencerá os mais incrédulos da importância decisiva que têm (...) as navalhas (...) sobre a extinção do défice (...).

– Senhores! – disse o menino da Marinha (...)– de todos vós é bem conhecido o maravilhoso incremento que nos últimos anos tem tido o mexilhão. Esse saboroso marisco não cessa (...) de invadir as quilhas (...) dos nossos vasos de guerra. Há cinco meses que eu não faço outra coisa do que meter os navios no dique para lhes tirar o mexilhão e lançá-los depois à água para lhos tornar a pôr (...).

Dizem outros (...) que o que determinou a queda do Ministério na noite de São Martinho não fora a divergência das ideias, mas simplesmente a circunstância da próxima visita a Lisboa de Sua Majestade o Rei de Espanha, para falar com o qual não havia no Governo quem manejasse o idioma espanhol (...).

Outro texto das Farpas de Ramalho Ortigão sobre o Governo de António Rodrigues Sampaio, conhecido latinista, regista a tomada de posse de Hintze Ribeiro (que mais tarde seria primeiro-ministro) como ministro dos Negócios Estrangeiros:

Perante a necessidade de atamancar o Governo com um novo ministro dos Estrangeiros (...), o Sr. Sampaio recusou-se a aceitar esse encargo, com o fundamento de que não é a sua especialidade o manejo das línguas vivas, e voltando-se para o Sr. Hintze Ribeiro, (...) o Sr. Sampaio entregou-lhe a pasta, dizendo-lhe no seu idioma familiar (...):

Macte nova virtute, puer sic itur ad astra.

Ao que o Sr. Hintze Ribeiro respondeu prontamente, desembaraçado e gaiteiro:

– Uí monsiú.

[12] A portaria “muda”, de 12 de Outubro de 1881, explicitava que “Tendo a experiência demonstrado graves inconvenientes na publicação das ocorrências policiais, não só pelo desfavor que se lança sobre as pessoas nelas envolvidas (muitas vezes sem justa causa, pela falta de tempo para apurar a verdade dos factos) mas também, e sobretudo, pelo muito que se prejudica a acção da autoridade policial na investigação dos crimes e na descoberta dos criminosos, os quais, advertidos pela imprensa periódica, não raras vezes iludem todos os propósitos dos agentes policiais e se subtraem, assim, à acção da justiça, há Sua Majestade El-Rei por bem ordenar (...) que, de agora em diante, não dê em notícias das ocorrências e factos policiais”.

[13] Deve realçar-se de novo que António Rodrigues Sampaio surge como responsável pelo jornal A Revolução de Setembro apenas entre 5 de Outubro de 1850 e 14 de Janeiro de 1860. Tanto quanto se pode perceber pela leitura desse jornal, a partir de 14 de Janeiro de 1860, coincidindo com o seu maior envolvimento na política, Sampaio abranda a intensidade do seu envolvimento no jornalismo. Há que dizer, no entanto, que o facto de muitos dos textos do Revolução não serem assinados dificultou a identificação daqueles que podem ser atribuídos a Sampaio. Para este livro, foram seleccionados apenas aqueles nos quais se parece reconhecer o estilo do jornalista.

[14]Dona Isabel II de Espanha foi coroada Rainha em 1833, mas o seu tio, Carlos Maria de Bourbon, conde de Molina, ideologicamente mais identificado com os adeptos do Antigo Regime, não aceitou a sua subida ao Trono, invocando a medieval Lei Sálica, que excluía a sucessão dinástica pela via feminina. Assim, o seu reinado foi desestabilizado desde o início pela questão da legitimidade da sua ascensão ao Trono de Espanha e pelas guerras “Carlistas” movidas pelo seu tio, no âmbito das quais, graças ao Tratado da Quádrupla Aliança, intervieram Portugal e a França, ao lado das forças da Soberana espanhola. Por outro lado, o seu casamento com o seu primo Francisco de Assis, provavelmente homossexual, levou-a – provocando escândalo – a ter uma sucessão de amantes, inclusivamente para garantir descendência masculina. O seu filho, o Rei Alfonso XII, por exemplo, era muito provavelmente filho de um oficial do exército. Na sua própria família se alimentaram intrigas com vista à ascensão da sua irmã, D. Luísa, ao Trono, enquanto a Rainha não produziu descendência. Portanto, Dona Isabel II foi uma Rainha polémica cujo reinado, numa fase conturbada da história, foi marcado pela instabilidade, não surpreendendo, consequentemente, a sua deposição durante a revolução “La Gloriosa” de 1868. Diga-se, no entanto, que após um grave período de instabilidade conhecido por Seiscénio Revolucionário, durante o qual se sucederam no poder um governo provisório, uma monarquia efémera (Rei Amadeu I, filho do Rei Victor Emanuel II de Itália) e a república, o filho de D. Isabel II, Alfonso XII, ascendeu ao Trono Espanhol (Segunda Restauração Bourbónica), tendo pacificado o país (daí o seu cognome “O Pacificador”) e derrotado definitivamente o Carlismo. Sua Majestade El-Rei D. Juan Carlos I, de Espanha, é trineto de Dona Isabel II.

[15] Em 1843, Rodrigues Sampaio também escreveu vários textos em que se pode observar o seu incipiente anticlericalismo. A 3 de Abril desse ano, criticava, no Revolução de Setembro, a Igreja, e a Corte, sugerindo ser “o bafo pontifício” a dar “séculos de duração à Monarquia”, e a 17 de Maio desse mesmo ano escreveu, no mesmo jornal, que “a cúria romana e toda a sua Igreja bastarda conhece que o espírito da verdadeira religiosidade nesta época é o primeiro obstáculo aos seus planos” para obter “imensas vantagens” no mundo terreno.

[16] O jornal portuense O Primeiro de Janeiro ostenta esse título precisamente porque foi fundado, enquanto órgão do Centro Eleitoral Portuense, de tendência Reformista, para evocar e celebrar perpetuamente a revolta da Janeirinha.

[17] O Partido Reformista resultou de uma cisão no Partido Histórico. Foi fundado em 1862, em torno do marquês de Sá da Bandeira, que se tinha incompatibilizado com o duque de Loulé, líder dos históricos. Fundou Governo pela primeira vez, ainda que por poucos meses, a 17 de Abril de 1865. Sendo um partido dos partidários de um homem, não sobreviveu à morte do seu líder, ocorrida em 1876, acabando por se fundir com o Partido Histórico, sua agremiação política de origem.

[18] Surgido em 1851, o Partido Regenerador, ao qual pertencia Sampaio e que teve por principal expoente, na liderança, Fontes Pereira de Melo, foi o principal partido político português da segunda metade do século XIX. Mais de metade dos primeiros-ministros portugueses dessa época provieram dos quadros regeneradores, incluindo António Rodrigues Sampaio.

[19] O Partido Histórico (1852-1876) foi um partido político fundado em torno do duque de Loulé, seu primeiro líder. Agrupou os principais adversários dos regeneradores e alternou-se com eles no Governo (o primeiro Governo histórico data de 3 de Junho de 1856) até à eclosão da Janeirinha. A 7 de Setembro de 1876, pelo Pacto da Granja, o Partido Histórico fundiu-se com o Partido Reformista, dando origem ao Partido Progressista, liderado por Anselmo José Braamcamp, que se alternou com os regeneradores no Governo até ao final da Monarquia.

[20] Relembre-se, conforme já se assinalou, a terrível inconstância do jornal quanto à atribuição da autoria dos textos. Em determinados períodos, todos os textos podiam vir assinados; noutros, nenhum era subscrito. A partir de meados de 1860, quase nenhum texto político foi assinado. Esta conjuntura tornou a análise mais difícil e mais incerta, já que a identificação de textos de Sampaio resultou, sobretudo, do estilo que neles foi empregue – uma opção que naturalmente reconhecemos como falível. A tarefa de reconhecimento dos textos de Sampaio foi dificultada porque, a partir de 15 de Janeiro de 1860, ele deixou de ser o editor responsável pelo Revolução de Setembro, sendo crível que o novo editor responsável, Luís da Silva Coutinho Júnior, tivesse passado a redigir grande parte dos artigos de fundo, até aí da responsabilidade quase exclusiva de Sampaio. Aliás, tanto quanto foi possível perceber, a partir de 1860 Rodrigues Sampaio abrandou significativamente a sua actividade jornalística, tendo esse decréscimo sido ainda mais acentuado a partir do momento em que assumiu cargos ministeriais (1870).

[21] O que dificultou a identificação do que António Rodrigues Sampaio escreveu ou não.

[22] Constituída não apenas pelos textos que Sampaio assinou mas também por aqueles que possivelmente são dele.

[23] Realce para o facto de o gráfico não permitir inferências sobre o volume da produção jornalística de Sampaio, que desacelera nitidamente a partir de meados da década de 1860. Apenas regista, em valores percentuais, os temas dessa mesma produção ao longo dos anos.

[24] Isto não quer dizer que os grandes acontecimentos internacionais da época tenham passado despercebidos ao Revolução de Setembro. Pelo contrário, na secção “Política Estrangeira”, por exemplo, são comuns os textos sobre ocorrências externas, mas com quase toda a certeza a grande maioria delas não saiu da pena de Sampaio. Eis, por exemplo, um texto sobre a eclosão da guerra franco-prussiana de 1870, de autoria desconhecida mas cujo estilo é próximo do de Sampaio:

Dizia um rei, um grande rei e um grande batalhador, o herói da guerra dos sete anos, o vencedor de Rosbach, o homem que escreveu com a espada o prefácio da grandeza da Prússia, Frederico II, enfim: – “A guerra é tão fecunda em desgraças, o êxito tão incerto e as consequências tão ruinosas para um país, que os príncipes nunca reflectiriam demais antes de travá-la.”

Mais uma vez está aberto na história da Europa culta um desses parênteses que valem por uma nódoa na civilização e por um cancro terrível na riqueza e no bem-estar dos povos, parênteses de desastres imensos e de imensa desordem na vida social.

(…)

Que busca a França além?

E aquém que teria a ganhar a Prússia?

A França vai arrastada ou impelida?

É simplesmente a vontade de um homem que arroja a Alemanha para os campos da batalha?

Que pretende o César?

Porque, é forçoso confessá-lo, foi a França que soltou primeiro o grito de guerra. O facto aparente, pelo menos, foi este.

A candidatura de um príncipe alemão, livre no seu proceder, instado na sua primeira resolução de aceitar o trono de Espanha, sobressaltará a política imperial. Mas a Espanha é um país independente e livre; a Espanha tem o direito de escolher o seu rei e não o escolhera ainda. Teria a França o direito do veto ao exercício da soberania nacional de um povo, ainda antes da solução definitiva desse exercício?

Que vale então essa soberania?

Que é então a soberania dos estados?

Que valem então os protestos oficiais e oficiosos a essa independência?

Mas a França julgava ver a Prússia atrás do candidato real ou a influência política da Alemanha do norte, alojando-se já nas bagagens do príncipe de Hohenzollern para depois vir a fechar os Pirenéus à política do gabinete das Tulherias.

Debalde se lhe dizia que Leopoldo tinha de ser um rei constitucional; que os destinos dos povos não andam já enfeudados ao alvedrio dos príncipes, como a vontade e a consciência de um indivíduo não anda enfeudada à ambição e à política de uma família ou de um estado; que a Espanha era e queria ser um povo livre; que a escolha de um rei, implicando a liberdade de uma nação, não era a abdicação do futuro nacional: era a afirmação da nacional soberania.

A política francesa não se tranquilizou com isso. Avocou-se até a fantasma do império de Carlos V e descobriu-se que no castelo de Hohenzollern, destruído em 1423 pelas forças da liga hanseática e modernamente reconstruído, havia uma porta no cimo da qual estava escrito – A forte mão da Prússia me ergueu e chamo-me a Porta da Águia – e que mais além estava esta divisa – Von fels zum meer – (Da rocha ao mar). Era descoberta de efeito!

Da porta da águia, porém, só veio um argumento de pombo, uma voz de paz, de abnegação, de isenção nobre e generosa.

O príncipe Leopoldo de Hohenzollern desistiu da candidatura que lhe fora oferecida, da Coroa que proximamente receberia, porque não queria perturbar a paz do mundo, não queria lançar numa situação difícil uma nação briosa.

Estava satisfeita a França.

Desaparecida a causa, cessava o efeito. Parecia isto natural.

Comunicou-se oficialmente a desistência da candidatura, aceitou-a a Espanha, voltando ao statu quo e anulando a convocação extraordinária das cortes.

O gabinete das Telheiras dirigira-se ao rei da Prússia; exigia deste que impusesse ao príncipe a renúncia; que não autorizasse a aceitação.

E quando tudo isto acontecesse, o príncipe não poderia partir da Prússia e vir receber a Coroa de Espanha por ela oferecida?

Não o fez com a coroa da Roménia seu irmão, o príncipe Carlos de Hohenzollern?

E não discutamos agora os manejos ou intenções secretas da política que podem ter-se dado como podem não se ter dado também e aos quais em todo o caso não obviariam declarações diplomáticas.

Podia-se dar tal ordem?

E quando se desse evitava-se a desobediência?

E desobedecido o Rei Guilherme pelo Príncipe, declararia guerra à Espanha, porque o seu rei o era contra uma ordem do rei da Prússia, ou mandaria este prender aquele sobre o trono por alguns agentes da polícia de Berlim?

Declararia a França a guerra à Espanha porque esta escolhera um rei que lhe desagradava?

A Alemanha do norte protestava pela sua imprensa e pelo seu governo que a questão da candidatura não lhe dizia respeito, não fora nem era um negócio oficial seu, que a renúncia ou aceitação era negócio individual e particular.

Mas como chefe dos dois ramos da casa de Hohenzollern, o rei Guilherme prestava os seus bons ofícios. Finalmente realizou-se a renúncia do príncipe e o gabinete das Tulherias declara que se não importa com a renúncia dele e exige que a Prússia imponha ainda o seu veto não só para o presente mas para o futuro!

Note-se que não metemos em linha de conta a questão da dignidade nacional da Prússia, perguntamos de que serviria à França o veto do Rei Guilherme e se ele, que mal o poderia dar e inutilmente, como o expusemos, no presente, o poderia impor para o futuro, fossem quais fossem as circunstâncias e numa questão que, em última análise, só depende da vontade da nação espanhola e da de um indivíduo.

E como não temos metido em linha de conta o elemento essencial da dignidade política da Prússia, não relembraremos a atitude ameaçadora – provocadora como dizem as folhas e até insinua o governo inglês – da França, contrastando com a calma e reserva da outra parte.

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Não está saltando aos olhos que a candidatura espanhola foi apenas ou um pretexto ou um incidente de bem maior questão?

É a que queremos chegar.

(…)

Não distribuímos responsabilidades, nem temos que discutir simpatias.

Merece-nos tantas a França, a formosa, a gloriosa, a entusiasta e evangelizadora França: a Gallia regina, como a Alemanha, a grande, a pensadora, a fecunda e liberal Alemanha, a Germania mater.

A uma e outra deve imenso a civilização moderna, devemos nós todos e mais do que todos, os que não empunhamos o gládio nem cremos nele, os que estudamos e mourejamos nos produtivos e civilizadores trabalhos da paz, com a pena, com a charrua, com a máquina, na indústria, no comércio, nas artes e nas ciências. (…)

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Circunscrever-se-á a pugna à França e à Alemanha?

Realizar-se-á aquele prognóstico de Mr. Guisot e de tantos, de que o duelo entre os doiscolossos traria uma conflagração geral?

Há sérias apreensões a tal respeito. (A Revolução de Setembro, 20 de Julho de 1870)

[25] Note-se que na tabela 8 se apresentam os resultados percentuais calculados em função do número de referências a cada lugar e não em função do tema das peças. Daí que subsistam discrepâncias em relação aos valores da tabela 7.

[26] São encontradas referências a variadíssimos jornais: Nacional, A Nação, O País, Imprensa e Lei, Jornal do Comércio, O Comércio do Porto, Braz Tisana, Estandarte, O Português,Viriato (Viseu), Diário Mercantil, Campeão das Províncias (Aveiro), Tribuno Popular (Coimbra), Jornal do Porto, Mercantil, Gazeta de Portugal, Sentinela da Liberdade (Covilhã), Voz do Minho (Valença), O Conimbricense, Voz do Povo (Funchal), Vimaranense (Guimarães), Jornal de Lisboa, Jornal do Norte, Vianense, Economias, Opinião Nacional, Distrito de Aveiro, Aurora. Bracarense e outros. Muitas vezes, as referências não são explícitas (usam-se expressões como “folhas do Porto”). De qualquer modo, a publicação portuguesa mais referenciada é o Diário do Governo, frequentemente apelidado de “folha oficial”.

[27] São encontradas referências a jornais como: La Nation, Moniteur, Journal des Debats, La Presse, Times, Spectator, Avenir, Epoca (de Madrid), etc. Surgem também expressões como “folhas de Paris”, “jornais espanhóis” ou “jornais ingleses” para designar a imprensa estrangeira.