14.06 Sampaio na Patuleia: O Espectro

4.2 Sampaio e O Espectro

Conforme se pode observar na tabela 2, O Espectro durou de 16 de Dezembro de 1846 a 3 de Julho de 1847, num total de 63 números e nove suplementos (números 22, 25, 31, 41, 42, 44, 49, 54) com notícias importantes de última hora. Foi o ponto alto da vida de António Rodrigues Sampaio enquanto resistente e jornalista.

Como se apresentava O Espectro? Tal como o Eco e o Revolução de Setembro, ostentava o design típico do período vitoriano e caracteres romanos. As figuras 7 e 8 dão uma ideia geral. Era um periódico que seguia o formato comum para a época, o formato de quarto (26 x 18,5 cm, para uma mancha gráfica de 23 x 15 cm). O título, central, rodeado de uma significativa quantidade de espaço vazio que lhe dava maior impacto visual, era antecedido pela menção ao número, à esquerda, pela data da publicação, ao centro, e pelo ano, à direita. A seguir ao título, seguia-se, evocando a respectiva missão, o lema do jornal, traduzido na epígrafe Admonet in somnis et turbbida terrer imago – Hórrido espectro me atormenta em sonhos.

O jornal era paginado a duas colunas, separadas por um espaço em branco (na reprodução de 1880, disponível na hemeroteca on-line da Câmara Municipal de Lisboa, surge um filete vertical), e tinha, normalmente, quatro páginas (por três vezes, surgiu com seis páginas: números 44, 53 e 57). Os textos, corridos, alguns dos quais (em especial os artigos de fundo que abriam o jornal) iniciados com letra capitular, seguiam-se uns aos outros, mas segmentados por um arremedo de secções, que não eram fixas e que também nem sempre eram antecedidas de qualquer denominação identificadora. Quando o eram, e conforme também tinha sucedido no Revolução e no Eco de Santarém, os caracteres não eram padronizados (a denominação da secção podia surgir em caracteres normais, em itálico ou em maiúsculas, indiferenciadamente).

Normalmente, o periódico tinha três ou quatro partes, por vezes divididas por um filete horizontal ou outro recurso gráfico, ocasionalmente com identificador (por exemplo, “Parte Oficial” ou “Correspondência Interceptada”). Iniciava-se por um artigo de fundo, habitualmente localizado e datado (a redacção do artigo de fundo em Lisboa representava, inclusivamente, um desafio ao poder cabralista na capital). Podia seguir-se-lhe uma secção de notícias enquadradas e comentadas, provenientes de várias fontes, incluindo transcrições de outros jornais e de correspondência, notícias trazidas pelos barcos, etc. Depois, poderiam aparecer os actos oficiais da Junta do Governo Supremo do Reino, sedeada no Porto, os seus decretos e proclamações (“Parte oficial”[1]), o que levava o jornal, de certa forma, a funcionar como um dos periódicos oficiosos ao serviço da mesma, a par do Nacional, do Porto. Finalmente, em certas ocasiões, havia ainda um espaço para informações de última hora (“À última hora”) ou, ocasionalmente, para a publicação da “Correspondência Interceptada” do inimigo (é esta, por exemplo, a designação que encima a secção no número de 28 de Abril). Diga-se, no entanto, que a ordem das secções não era fixa. Por exemplo, o primeiro número, de 16 de Dezembro de 1846, abre com a Advertência, continua com o artigo de fundo, passa para “à Última Hora”, segue para a “Parte Oficial” e encerra com uma carta do conde do Bonfim, dando conta de operações militares.

A secção “À Última Hora” (uma vez surge “Às 10 da noite”, no número de 9 de Abril) acentua a ideia de urgência na informação, tornando-a mais apetecível para o leitor, e ao mesmo tempo mostra que a cronomentalidade (SCHLESINGER, 1977) se inculcava no mundo jornalístico.

A secção “Correspondência Interceptada”, apesar de ser ocasional, é uma das mais interessantes partes do Espectro, pois são nela publicadas cartas privadas e documentos políticos e militares apanhados aos cabralistas, que davam conta do ânimo ou das intenções destes. Os conteúdos dessas cartas eram virados contra os próprios inimigos. No entanto, apesar de não surgirem autonomizadas numa “secção”, esse tipo de informações e comentários já aparecia anteriormente no jornal. Por exemplo, no número de 23 de Janeiro de 1847, narra-se a apreensão, pelas forças constitucionais, de uma carta do barão de Estremoz aos seus superiores, na qual se conta – e Sampaio frisa-o no enquadramento que lhe dá – que o exército regular carecia de meios:

A minha cavalaria apreendeu na Venda do Duque o ofício que remeto (...).

Eis o ofício:

«Cópia autêntica – Ill.mo e ex.mo Senhor: (...) cumpre-me dizer a V. Ex.ª (...) que (...) seria conveniente (...) mandar vir de Elvas alguns géneros (...) [e] poder-se desarmar a guarda nacional de Portalegre (...). Conseguindo isto, não faltariam recursos, tanto de géneros, como outros que se precisarem (...).

No número de 28 de Abril, a inserção de uma carta interceptada ao inimigo merece apenas a seguinte frase: “Não comentamos a carta seguinte, escrita ao conde de Vinhais. A frase é de um garoto perfeito”. Mas noutro exemplo, o do número de 28 de Maio de 1847, as várias cartas aí inseridas não são antecedidas ou seguidas de qualquer comentário enquadrante, à excepção de duas notas de rodapé, já que, para quem estivesse imerso no contexto da época, seriam eloquentes por si. Já as cartas publicadas no número de 1 de Maio são precedidas de um resumo das mesmas, chamando a atenção para os seus aspectos mais interessantes, como uma circular de Saldanha na qual este se queixa de que a maioria das moedas que lhe mandavam eram falsas.

A “Parte Oficial” era usada, conforme se disse, para a publicação das proclamações da Junta e dos líderes rebeldes. Assim, no número de 16 de Dezembro de 1846, primeiro do Espectro, pode ler-se a seguinte proclamação, que apela à dicotomia homens livres (constitucionalistas) – escravos (cabralistas):

Portuenses! O general Abreu volta de novo com a força do seu comando a aproximar-se das linhas do Porto.

Ele não confia em si. Confia na traição. Mas engana-se. A Junta está prevenida. Ninguém ousará, dentro dos muros do Porto, levantar um grito criminoso, fazer uma tentativa culpada. (...) E ai daquele que o ouse!

(...)

A liberdade nos inspira. Os escravos que vêm trazer os ferros e a assolação a esta cidade ficarão petrificados diante das nossas baionetas. O Porto é a cabeça da Medusa diante da qual os tiranos estremecem e gelam de terror.

É de salientar, conforme se provará, que a estética romântica, exploradora das emoções, das metáforas, do lirismo, dos referentes sobrenaturais, das comparações, conforme se nota no excerto da proclamação acima inserida, impregna-se em todo O Espectro.

O êxito do Espectro perdurou após o seu fim. Tanto assim foi que, em 1880, se fez uma nova edição do periódico, em livro.

O feito mais fantástico do Espectro foi ter conseguido publicar-se periodicamente durante todo o período da guerra civil da Patuleia, pois tratava-se de um jornal clandestino, redigido e impresso em Lisboa, sede do poder cabralista. Teve, contudo, periodicidade irregular, oscilando entre o semanal, bissemanal e trissemanal, conforme se constata pela tabela seguinte.

Tabela 2

Datas de publicação de O Espectro

Financiado por indivíduos identificados com a causa patuleia[2], O Espectro tornou-se lendário, graças ao mistério que acompanhava a sua publicação e circulação pela totalidade do território nacional. Por isso, ufano, Sampaio escrevia no número de 13 de Abril de 1847: “o Espectro (...) podia correr sem licença do Santo Ofício, e até apesar dele. (...) O Espectro vai às Necessidades, vai às secretarias de Estado, às estações da polícia, vai aos países estrangeiros, vai a toda a parte”. E no número de 23 de Abril de 1847, acrescentava: “O Espectro vê tudo, e ninguém o vê a ele. Está em toda a parte, como Deus, porque é a emanação dele[3]. Põe a mão sobre o coração do país e conta todas as suas palpitações”.

Não é apenas na circulação que se observa a vocação nacional do Espectro. Lendo-se a correspondência do mesmo, verifica-se que fala da generalidade do País – incluindo as ilhas adjacentes – e que tem correspondentes regulares no Porto, na Guarda, em Coimbra, em Santarém, em Vila Franca, em Setúbal, em Montemor, em Évora e até em Faro, cidade para onde, ao tempo, não havia sequer estradas, apenas caminhos que atravessavam a serra algarvia (por alguma razão, os Reis de Portugal também o eram dos Algarves).

O Espectro, apesar das condições peculiares em que foi publicado, conseguiu funcionar como o principal periódico oficioso dos revoltosos – e tanto assim é que, no número de 28 de Junho de 1847, divulga o documento em que a Junta Provisória do Governo Supremo do Reino, que os patuleias tinham criado para administrar as zonas por si controladas, aceita a mediação estrangeira para pôr fim à guerra civil. O Espectro assumia-se, de facto, como público porta-voz da Junta e dos revoltosos.

Segundo Tengarrinha (2006, p. 146) e Pedro Venceslau de Brito Aranha (1907, p. 66), Rodrigues Sampaio conseguiu obter a colaboração do tipógrafo António Costa Pratas para a composição e impressão do novo jornal clandestino. Afonso Praça (1979, p. 44) narra da seguinte maneira o episódio:

Um dia, o jornalista foi ali [na casa do padre Carvalho] procurado pelo tipógrafo António da Costa Pratas, da Revolução, que ia pedir-lhe auxílio para passar a Setúbal, onde pretendia juntar-se à insurreição popular. Sampaio convenceu-o, no entanto, de que poderia servir melhor a causa revolucionária encarregando-se de compor um jornal que ele ia escrever. Costa Pratas aceitou e ambos partiram para uma das mais corajosas “aventuras” do jornalismo português (...).

Praça (1979, p. 44) conjectura que os primeiros números do Espectro teriam sido impressos na casa do padre Carvalho. Mas o jornalista Costa Júnior (cit. in Praça, 1979, p. 44-45) refere que os primeiros números foram feitos numa água-furtada da Rua de D. Pedro V, à esquina da Rua da Rosa, acrescentando que “os caracteres tipográficos foram recolhidos aqui e ali e os caixotins improvisados com papelão e que o prelo foi construído com uma galé velha na qual se imprimiam as páginas, sendo a pressão exercida por uma alavanca fincada na parede”.

Eduardo Coelho (1882, p. 252) tem uma versão diferente. Ele diz que a tipografia clandestina do Espectro, onde António Costa Pratas trabalhou furtivamente, foi organizada, apenas com duas caixas de tipos e uma velha prensa de madeira do Revolução de Setembro, numa casa da esquina entre a Rua de São Caetano e a Rua do Chafariz das Terras, em Lisboa, que estava arrendada por José Estêvão, tendo as chaves José Miguel da Costa, editor da Revolução. Seja como for, o que é seguro é que alguém imprimiu o periódico sem ser detectado pelas autoridades.

A distribuição do Espectro era assegurada por um aguadeiro do chafariz da Esperança, que escondia os jornais dentro de um barril, e por uma antiga empregada do Revolução, que os levava debaixo da roupa (COELHO, 1882, p. 252). Os jornais, entregues a patuleias de confiança, eram, posteriormente, redistribuídos camufladamente por toda a cidade de Lisboa e até na província, chegando aos próprios ministros, que assim podiam ler directamente as vergastadas discursivas com que António Rodrigues Sampaio os zurzia. Apesar de se desconhecer a tiragem do Espectro (PRAÇA, 1979, p. 44), pode conjecturar-se que atingiria, pelo menos, algumas centenas de exemplares.

Seguidamente, e ainda de acordo com Coelho (1882, p. 252), numa versão corroborada por Tengarrinha (2006, p. 146-147), Costa Pratas mudou-se para uma pequena tipografia na Rua do Quelhas que pertencia a outro patuleia, chamado Costa e alcunhado “o Coxo da Lapa”, mas, prestes a ser descoberto, deslocou-se para um quarto no Convento dos Barbadinhos arrendado pelo fundador do jornal de anúncios O Grátis, Portugal e Silva, seu amigo e, paradoxalmente, um cabralista, administrador de Almada. E foi na própria tipografia de Portugal e Silva que o Espectro foi impresso, enquanto este se esforçava por descobrir a tipografia do jornal na região que administrava. Dessa vez, o jornal era distribuído por uma mulher, que escondia os exemplares num cesto de legumes.

Depois, o jornal regressou à tipografia da Rua do Quelhas, passando a sua impressão a ser assegurada por Luís da Silva Coutinho Júnior, que seria, mais tarde, o substituto de Sampaio à frente do Revolução de Setembro, lugar que ainda ocupava quando Sampaio morreu. Foi ainda impresso “em subterrâneos, águas furtadas, numa barcaça no meio do rio Tejo” (TENGARRINHA, 1963, p. 18). “O jornal mudava constantemente de casa, de modo a não ser paralisada a bela aventura. Na Graça, no Chafariz das Terras, na Rua do Quelhas, aqui e além, não importava, o jornal continuava a imprimir-se” (COSTA PRATAS, cit. in PRAÇA, 1979, p. 46).

Teixeira de Vasconcelos (1859, p. 95) recorda, assim, o período heróico d’O Espectro:

Nos países estrangeiros, causava admiração ver continuar a publicação de um jornal clandestino na capital do reino sem que o governo lhe pudesse pôr cobro. A Revista dos Dois Mundos de 15 de Maio de 1847 consagrou uma página ao Espectro “cuja oficina mudava de casa todas as noites e cujo redactor perseguido pela polícia, arrostando a prisão e os rigores do poder, não sabia se amanhã descansaria a cabeça no sítio onde lhe fora permitido repousá-la hoje.”

Por vezes, a acção de Sampaio no Eco e no Espectro é apresentada como um gesto de heroicidade individual. Podendo ter essa leitura, também pode ter outras, como a de Victor de Sá (1984, p. 40), para quem apesar de ser “arauto da liberdade”, Rodrigues Sampaio não praticou um gesto de “heroísmo individual”, antes se integrou num colectivo que geria a revolta:

A sua acção não foi, porém, como às vezes se inculca, nem tinha que ser, um gesto de heroísmo individual. Pelo contrário. No plano de organização da resistência (…), enquanto outros assumiram responsabilidades, ou militares, administrativas ou mesmo diplomáticas, a ele coube-lhe ser o porta-voz (…) das razões e dos objectivos da causa constitucional.

No primeiro número do Espectro, Sampaio adverte que “O Espectro não se assina nem se vende. (...) Distribui-se gratuitamente” (8 de Dezembro de 1846). Essa advertência de Sampaio no primeiro número do jornal é muito importante porque revela que, efectivamente, havia um apoio organizado ao periódico, conforme o autor confessa no final do último número (3 de Julho de 1847), quando declara que tinham sido cinco os financiadores do Espectro, um inicial e outro a seguir, sendo que este recolhia as dádivas de mais três apoiantes:

O Espectro foi sempre distribuído gratuitamente, nunca teve assinaturas. O redactor escreveu no fim de Janeiro a cinco indivíduos, a quem lançou uma contribuição de 4$800 réis.

Os dois primeiros números foram pagos por um indivíduo. Todos os outros foram por um cavalheiro (…). Não passaram de três pessoas as que lhe deram, a ele, algumas quantias, uma de 48 mil réis em notas, outra de nove mil e tantos réis em metal, e outra de 3 a 4 moedas. (…) A redacção foi sempre, e inteiramente, gratuita.

Alguns devem ter lucrado ilegitimamente com o Espectro, tal era a popularidade do periódico, pois Rodrigues Sampaio viu-se na obrigação de acrescentar o seguinte a essa explicação: “Tudo o que não é isto, se algum dinheiro foi recebido por alguém, não teve aplicação para o Espectro (...). Soube que se assinava, que se vendia, que se reimprimia, e até que algum produto da sua venda revertia para obras de caridade e beneficência, mas o Espectro era estranho a tudo isso.”

A propósito deste último número, propagou-se a ideia de que António Rodrigues Sampaio, para assinalar a sua obra, o teria assinado com as iniciais A.R.S., mas não se descobriram essas iniciais num dos dois diferentes exemplares que foram consultados no âmbito desta pesquisa nem na reedição de 1880, embora essa assinatura exista no exemplar disponível na Biblioteca Nacional. Fica a dúvida, pois, como diz o próprio Sampaio, os exemplares do Espectro eram reimpressos. De qualquer modo, nem todo o Espectro levava a chancela de António Rodrigues Sampaio, já que muitos dos textos inseridos no periódico eram transcrições de outros jornais, de correspondência, de documentos legais e proclamações.

José Manuel Tengarrinha (1989, p. 168) avalia, assim, O Espectro:

O Espectro propõe-se (...) fomentar o levantamento popular esperado pelos chefes rebeldes que (...) se mantêm indecisos em volta da capital. Para além de Lisboa, as ambições de difusão do jornal são necessariamente limitadas. Não são fáceis as comunicações num país rasgado pela guerra civil. Numa cidade que é o bastião das forças governamentais (...), o desenvolvimento de tal tarefa defronta obstáculos aparentemente inultrapassáveis. E, no entanto, o jornal aparece regularmente durante cerca de sete meses e adquire uma reputação lendária, não só no país, mas também no estrangeiro. Podemos considerá-lo o jornal clandestino mais importante da história da nossa imprensa periódica até ao aparecimento do Avante!

E diz também:

Nas circunstâncias em que foi elaborado, compreende-se a tensão e violência do seu estilo, roçando, por vezes, a demagogia. Mas para além das invectivas contra a Rainha, das notícias das operações militares e dos patéticos apelos ao povo, O Espectro atinge o fundo da questão quando faz o balanço da crise financeira, quando acusa os governantes de estarem submetidos aos interesses de Londres e de terem deixado cair o País numa situação (...) lamentável (...). É a voz esclarecida da imprensa patuleia do tempo e um dos documentos mais interessantes para o estudo deste agitado período. (TENGARRINHA, 2006, p. 148).

O fim da guerra civil permitiu a Rodrigues Sampaio retomar o seu lugar à frente do Revolução de Setembro, que só abandonaria anos mais tarde, possivelmente numa altura em que o exercício de cargos políticos lhe impediam já uma forte dedicação ao jornalismo.

4.2.1 O discurso do Espectro

O Espectro foi um jornal que, servindo de porta-voz aos revoltados da Patuleia, contradizendo as versões governativas sobre o que sucedia, influenciou decisivamente a marcha dos acontecimentos, até porque, numa época fértil em novidades importantes, não faltaram a Sampaio temas sobre o que escrever e causas por que lutar – em especial o fim do cabralismo, mesmo sem Cabrais, e dos actos despóticos do poder.

4.2.1.1 A conjuntura da Patuleia

Qual a conjuntura que rodeava O Espectro?

O Espectro foi publicado em plena revolta da Patuleia, durante um período de grave instabilidade política e de guerra civil e sob a ameaça constante de uma intervenção militar estrangeira

A revolta da Patuleia começou, conforme já se disse, com o golpe alcunhado de Emboscada pelos setembristas, a 6 de Outubro de 1846, perspectivado por estes últimos como um golpe de Estado cabralista e despótico. Na interpretação de Bonifácio (1993b), o marechal Saldanha, a quem tinha sido dada a tarefa de constituir governo pela Rainha, à revelia do Parlamento, ainda procurou isolar os radicais, incluindo os setembristas, e ao mesmo tempo impedir o retorno dos Cabrais. Chegou a oferecer ao conde do Bonfim e ao conde das Antas o comando de divisões do Exército, mas estes recusaram. A fundação, no Porto, da Junta Provisória do Governo Supremo do Reino, setembrista, impediu qualquer conciliação. A Junta declarou guerra ao Governo de Lisboa, a 10 de Outubro, e mandou prender o duque da Terceira e outros cartistas lealistas. A 13 desse mês, o Governo de Saldanha reagiu e aprisionou os opositores que estavam em Lisboa. Sampaio, na altura, conforme se referiu, já tinha mergulhado na clandestinidade.

O país foi retalhado, mas de forma inconclusiva. Beja, Évora e Faro, por exemplo, declararam-se pela Junta, tal como o Porto. Coimbra foi ocupada pelo conde das Antas, presidente da Junta, mas o Governo, além da capital, controlava praças importantes por todo o país, como Santarém, Elvas ou Castelo Branco, e ocupava militarmente a maior parte do território.

Os rebeldes constitucionalistas, anticabralistas, numa movimentação de Coimbra para sul, ocuparam Santarém e as Caldas da Rainha. O Governo, na altura, iniciou uma ofensiva diplomática, no âmbito da qual solicitou a mediação britânica e o apoio espanhol, ao abrigo da Quádrupla Aliança, inclusivamente porque a guerrilha miguelista, realista e absolutista, capitaneada por McDonnell, aproveitando-se da situação de instabilidade, tinha feito recrudescer a sua acção, o que preocupava quer o governo liberal e constitucional de Espanha, ameaçado por absolutistas espanhóis, quer franceses e britânicos, que não desejavam o regresso de D. Miguel nem a imposição de um regime absolutista em Portugal.

A 27 de Outubro, o Governo de Lisboa suspendeu as garantias constitucionais, um facto que permitiu a Sampaio, conforme se verá adiante, acusar a Monarca, D. Maria II, de governar como uma déspota absoluta. A 7 de Novembro, Saldanha saiu da capital com o exército e tentou entabular conversações com o conde das Antas, através do mediador britânico, coronel Wilde, cujas acções são relatadas no Espectro. Entretanto, a Norte, as tropas governamentais do conde de Casal vencem Sá da Bandeira e aproximam-se do Porto, mas desviam-se e seguem para a fronteira Norte, ocupando Valença. A 27 de Novembro, forças miguelistas (absolutistas) ocupam Guimarães e Braga, mas, a 26 de Dezembro, são derrotadas pelo conde de Casal, um dos comandantes cartistas. Na sequência da derrota, alguns miguelistas aderiram à causa da Junta, o que foi visto como uma aliança conjuntural, embora contranatura, entre miguelistas e constitucionalistas (incluindo os da ala radical setembrista, entre os quais se contava António Rodrigues Sampaio) – uma aliança difícil de explicar mesmo para Sampaio, apesar deste o ter tentado fazer nas páginas do Espectro.

Entretanto, os rebeldes constitucionalistas, comandados pelo conde do Bonfim, rumaram a sul, talvez numa tentativa de cercar Lisboa, mas Saldanha intercepta-os e, a 22 de Dezembro, na única escaramuça do conflito que pode levar o título de batalha, derrota-os em Torres Vedras, onde morre o constitucionalista Mouzinho de Albuquerque (avô do Mouzinho de Albuquerque que capturou Gungunhana) e avança, depois, para Norte. Estranhamente, o conde das Antas, que se tinha movimentado para o Cadaval e estava perto, não intervém. Porém, a sua inacção não chega a ser criticada no Espectro.

Os prisioneiros de Torres Vedras, conforme narra o periódico, são levados para Lisboa e mantidos incomunicáveis até partirem para o degredo, a 1 de Fevereiro de 1847.

No início de Março, a Junta retoma as hostilidades, numa ofensiva sobre o Sul. A 19 de Março, o Governo de Lisboa pediu, formalmente, a intervenção estrangeira, ao abrigo dos acordos da Quádrupla Aliança. No final desse mês, a Rainha, pressionada pelo mediador britânico, demite o Governo, mas nomeia outro da mesma cor. Ao mesmo tempo, Sá da Bandeira, pela Junta, começa uma expedição no Algarve, em Lagos, e marcha para Lisboa, pelo Alentejo, mas as suas intenções são frustradas pelas tropas governamentais. A 11 de Abril de 1847, a ofensiva da Junta cessa. A situação militar cai num impasse.

A 11 de Maio, o Governo assina, em Londres, um protocolo ao abrigo do qual se autoriza a intervenção militar das potências da Quádrupla Aliança. A 27 de Maio, navios da Armada britânica já controlavam a barra do Douro, no Porto. No final do mês, o conde das Antas ainda tenta uma nova expedição militar naval para Sul, a partir do Porto, mas os seus intentos falham por causa do bloqueio britânico à barra do Douro. Perante forças de poderio muito superior, o conde foi aprisionado e levado para Lisboa, só tendo sido libertado aquando da celebração da Convenção de Gramido.

A 31 de Maio, as forças estrangeiras intimam a Junta do Porto a aceitar o protocolo de Londres, que previa eleições e um governo de gestão independente, a que este órgão acede, a 5 de Junho.

A partir de Junho, as movimentações militares quase cessam, antecedendo a Convenção do Gramido, que, celebrada a 29 de Junho, pôs, oficialmente, fim à guerra civil. Forças espanholas progridem no Minho e em Trás-os-Montes para estabilizar a situação. Os britânicos controlam os portos de Lisboa e do Porto. A Junta dissolve-se logo no dia 30. A 3 de Julho, Sampaio dá por encerrado o seu Espectro.

Terá a conjuntura política e militar moldado os conteúdos d’O Espectro? Do que fala, pois, o jornal?

Conforme se provará, O Espectro fala, principalmente, da situação nacional – incluindo da perspectiva com que se olha o país a partir do estrangeiro. Ou seja, fala principalmente da guerra civil da Patuleia, ecoando as diversas fases do conflito. Nem poderia ser de outra maneira, pois o seu redactor estava profundamente envolvido na revolta anti-cabralista e anti-cartista que tinha eclodido no país.

4.2.1.2 A situação político-militar e a atitude d’O Espectro

As batalhas (melhor dizendo, a batalha de Torres Vedras, pois apenas um confronto poderá ser assim – remotamente – classificado) e as movimentações militares e políticas são amplamente abordadas no Espectro, mas sempre numa perspectiva de engrandecimento da própria causa e rebaixamento da causa contrária. Entre muitos exemplos que se poderiam dar, podem-se recolher alguns do primeiro número do jornal (16 de Dezembro de 1846):

As armas nacionais vão obtendo gloriosos triunfos e libertando a pátria da facção que a oprime.

A noite passada, saíram daqui [Lisboa] nove fragatas para o transporte das bagagens do exército do Saldanha, que parece tocar à retirada, e aquela força que há pouco ia bater às portas da Lusa Atenas [Coimbra], vem recolhendo à capital sem os louros do triunfo.

Eis aqui as notícias de Santarém, às 11 horas do dia 13:

O tenente-general conde do Bonfim, com a sua divisão e a coluna do brigadeiro Mouzinho de Albuquerque, entrou no dia 11 em Leiria, às 4 horas da tarde. O inimigo havia abandonado esta cidade, às 4 horas da manhã, deixando rações e alguns soldados, que se apresentaram. Na noite de 12, pernoitaram as forças inimigas do comando dos coronéis Lapa e Ferreira em Rio Maior (...).

O tenente-coronel Galamba, com 80 cavaleiros, com o batalhão dos bravos serranos de Sintra, um corpo de artilheiros e as competentes munições de guerra, saiu de Santarém no dia 13, a reunir-se com as forças populares do comando de José Estêvão, para operarem na outra banda do Tejo.

Os exemplos anteriores mostram a pouca complacência de Sampaio pela confidencialidade das operações militares. Sem censura e sem desinformação, elas acabam por ser imprudentemente reveladas ao inimigo[4]. E aos adversários também é revelado o que se conhece da sua própria planificação militar, o que lhe permitiria alterar os planos, se necessário. Leia-se, por exemplo, a seguinte notícia, redigida por Sampaio, que, estando clandestinamente em Lisboa, sabia o que se passava na capital:

O brigue Douro saiu hoje para Vigo, levando cento e tantas praças de diversos corpos de infantaria, trinta soldados artilheiros e alguns oficiais. Dali terão talvez de atravessar para Valença, a fim de socorrerem a força que lá está, sitiada pelos populares. (2 de Janeiro de 1847)

Os exemplos documentam, também, o recorrente recurso de Sampaio a uma técnica retórica que se esmiuçará mais à frente: começar o relato por uma generalidade enquadrante para somente depois se disporem as informações, muitas delas objectivas.

De qualquer modo, o que importa salientar é que as notícias são redigidas sempre numa perspectiva de rebaixamento do inimigo cabralista, cartista e lealista. O marechal Saldanha, líder cabralista, que no entanto se procurava autonomizar dos Cabrais (BONIFÁCIO, 1993b), é particularmente visado, e até mimado com insultos, quer por causa das suas contradições, quer por causa da forma alegadamente errática e desorientada da sua acção, quer ainda por causa da maneira como procurava propagandeá-la nos jornais que lhe eram afectos e estavam às suas ordens. Veja-se, por exemplo, o que é escrito no Espectro de 23 de Dezembro de 1846:

O Saldanha saiu a ferir a revolta no coração. O primeiro golpe foi largar Santarém às forças liberais e enquanto fazia escrever na sua gazeta que fora por sua ordem que esta fuga se praticara, mandava meter em conselho de guerra o comandante do 10 (Torresão) que se retirara diante das forças populares. O invencível que fugiu sem chapéu para o Belfast (...) estaca diante de Santarém, olha por um óculo para uns poucos de homens que a ocupam, devora no Cartaxo pratos de arroz (...), invoca o testemunho do coronel Wilde[5] para autorizar a sua palavra (...), e quando o cavalheiro inglês lhe escreveu para retractar o testemunho que lhe atribuíra, este português cobarde e poltrão escreve uma carta humilhante, vil e baixa, na qual se derrete em satisfações ao estrangeiro (...), declarando que na guerra é permitida (...) a mentira!!! E que ele nunca pensara que o seu ofício seria publicado!!! Assim, o chefe do exército do Governo de Lisboa (...) abate o nosso nome no estrangeiro e prejudica a sua própria causa por uma série de vilezas que só se podem explicar pela extenuação das faculdades que as folhas estrangeiras nele divisam (...).

Quando as coisas corriam mal para as armas rebeldes, como aconteceu após a derrota de Torres Vedras, o Espectro, animosamente, relembra que “a sorte da nossa causa não depende da fortuna de uma batalha, da perda de uma divisão (...) – tem raízes mais profundas”. (26 de Dezembro de 1846) Nesse dia, as notícias sobre a sorte das armas eram ainda incertas, mas já se acusava a Rainha de ter-se regozijado publicamente pela vitória cabralista:

“Anteontem e ontem corriam (...) notícias variantes sobre a sorte das nossas armas em Torres Vedras (...). o que é certo é que (...) dão uma mortandade imensa do seu lado e do nosso somente falam do sr. Mouzinho de Albuquerque gravemente ferido. (...) A Corte dançou quanto ouviu dizer que houve muito sangue derramado (...). Enquanto Lisboa se vestia de luto, enquanto as famílias de ambos os exércitos beligerantes choravam, nas Necessidades havia (...) um delírio feroz por julgarem segura a vitória.” (26 de Dezembro de 1846).

O Espectro de 28 de Dezembro de 1846 continua a narrar o sucedido em Torres Vedras, mas do discurso emerge um tom de ressabiado desespero, conforme, muito bem, identifica Cabrera (2006, p. 11), camuflado pelas tentativas de insuflar ânimo aos correligionários, sugerindo a desforra e explorando o ressentimento. Ana Cabrera (2006, p. 11) vê mesmo nisso uma forma de “transformar a vitória dos adversários numa derrota moral” dos mesmos. No artigo de fundo desse dia, Sampaio expõe, alegoricamente, pela voz de fantasmas, a perfídia da Rainha, protegida pelo princípio constitucional da inviolabilidade da Pessoa Real; e explora o sentimento de superioridade moral da causa constitucional, que viria, inclusivamente, dos tempos em que as forças liberais tinham conseguido destronar D. Miguel para colocar D. Maria II no trono, conforme a pretensão de seu pai, D. Pedro IV de Portugal e I do Brasil. Leia-se, como exemplo, o seguinte excerto, que, ademais, obedece profundamente aos princípios da estética do Romantismo, temperada pelos contrastes e moldada pelo apelo ao tenebroso e ao sobrenatural:

O Espectro não está sujeito às leis da terra. (...) Sombra nua das vítimas, atormentará sempre os seus opressores. (...) O Espectro só obedece a Deus (...), não tem excepção a favor de nenhuma família. Inviolável, respeitável, só o é a virtude! (...) Levantar-se-ão todas as vítimas (...). Entrarão primeiro os espectros de Torres Vedras e dirão: “Morremos todos por via de ti, que te dizes Rainha. (...) Mas a tua vitória será efémera (...). Por via de ti, sofremos o exílio. Quando os teus ministros de hoje aclamavam o teu tio, quando nos chamavam republicanos como hoje nos chamam, quando nos cobriam de insultos como hoje nos cobrem, (...) éramos nós os únicos súbdito que te reconheciam por nossa soberana. (...) O nosso sangue cairá sobre ti e sobre a tua descendência. O teu reinado tem sido um reinado de violências e desgraças. Por via de ti, para te colocarmos no trono, hipotecámos este país (...) à praça de Londres (...) na esperança de que seríamos livres. Como nos enganámos! Ficámos sem bens e sem liberdade. Derrubámos o tirano e deixámos de pé a tirania.” (...) Portugal não ficará sem Rei mas vós podereis ficar sem Trono.

Mais à frente, no mesmo artigo (28 de Dezembro de 1846), Sampaio faz o seguinte comentário analítico, revelador, afinal, de uma verdade: Saldanha poderia ter vencido uma batalha, mas as forças da Junta eram mais numerosas: “Quem venceu em Torres Vedras foram uns poucos de centos de cavaleiros. As forças da Rainha têm mais cavaleiros, as populares mais homens.” O comentário insinua que perder uma batalha não é perder a guerra.

A análise de Sampaio continua numa notícia sobre o número de baixas das forças governamentais, que ele vai buscar ao próprio Diário do Governo. Também havia, portanto, informação no jornal, embora as notícias fossem frequentemente interpretadas e enquadradas pelo redactor. Segundo o Espectro, citando o Diário do Governo, as forças de Saldanha tiveram 73 mortos (incluindo 16 cavaleiros), 342 feridos (incluindo 26 cavaleiros) e 18 desaparecidos em combate (incluindo cinco cavaleiros), tendo aprisionado 900 rebeldes da infantaria, 400 caçadores e 220 cavaleiros. Assim sendo, Sampaio pode afirmar que “parece que os mortos do partido liberal foram muito poucos”. E conclui o seguinte: “A divisão do conde do Bonfim, como se demonstra pelos mapas oficiais, constava de quatro mil quatrocentas e tantas praças. Parece, pois, que mais de dois mil homens retiraram e se foram unir à brigada do conde das Antas”. Por outras palavras, nem tudo estava perdido... a luta continuava e era preciso afirmá-lo irredutivelmente.

Seguidamente, o redactor do Espectro queixa-se das informações serem parcas, pois “os expressos que vão para Torres Vedras não voltam, e não voltam porque o Saldanha os prende para não virem contar os horrores que lá se praticaram”. Mais ainda, “Pelos prisioneiros também não pudemos saber nada (...), meteram-nos (...) nos pontões, e puseram-nos incomunicáveis.” O inimigo praticaria a censura, portanto. Mas, contraditoriamente, a falta de informações não é motivo para o autor não relatar, com autoridade, o comportamento alegadamente infame do exército regular: “As forças da Rainha deram saque e não respeitaram mulher nem donzela”. A interrogação fica, portanto: mera propaganda, boato ou informação verdadeira que escapou à censura de Saldanha? Aliás, repetitivamente, Sampaio alega que as tropas governamentais teriam um comportamento vândalo: “O saque de Torres e a desfloração das donzelas tem causado indignação geral” (30 de Dezembro de 1846); “em toda a parte por onde passam as hordas ministeriais – tudo é roubo, assolação e morte (...), o saque é tudo. (...) Em Braga foram assassinadas mais de 200 pessoas (...).” (6 de Janeiro de 1847). Ou ainda, citando uma carta publicada no Nacional referente ao saque de Braga pelas tropas governamentais, que dali desalojaram os guerrilheiros miguelistas:

Aqui há soldados que têm bons cordões de ouro, brincos, peças de ouro em moeda e prata, vendem cortes de vestidos de seda, pulseiras, roupas, e até um comprou 200 mil réis em ouro, e ainda lhe ficou muita prata!... Ao mesmo tempo que os habitantes da cidade choram pelo que se lhes roubou (...). Houve pessoas que ficaram com o que tinham no corpo, levando em troca coronhada (...), e houve quem comprasse a honra da sua filha dando um faqueiro de prata, e a mãe da mesma deu os brincos de ouro, que lhe foram tirados das orelhas, rasgando-lhe uma delas! (11 de Janeiro de 1847)

Face à forma como os inimigos trataram os prisioneiros rebeldes após a batalha de Torres Vedras, Sampaio ameaça que a Junta pode dar idêntico tratamento aos presos lealistas e não deixa de procurar imiscuir-se nos assuntos da governação, dizendo à Junta como deveria proceder, e antecipando, deste modo, a atitude de intervenção política em nome do bem comum seguida pelos jornais do final do século XIX (SOUSA, 2008d): “Temos em quem fazer represálias. A Junta do Supremo Governo do Reino deve imediatamente meter num pontão e pôr incomunicáveis o duque da Terceira e outros presos rebeldes que tem em seu poder.” (6 de Janeiro de 1847) Interessantemente, aqui Sampaio denomina de “rebeldes” os cartistas, virando o epíteto contra os próprios – uma técnica a que, de resto, o jornalista recorria comummente. No número de 9 de Janeiro, António Rodrigues Sampaio, indignado com a incomunicabilidade a que tinham sido submetidos os prisioneiros rebeldes, volta, ressabiado, à carga (interessantemente, fazendo uma distinção entre “nobres” e não nobres:

Felizmente, temos em quem fazer represálias, posto que não tenhamos vítimas tão nobres. A Junta do Porto deve imediatamente ordenar a respeito dos seus prisioneiros o mesmo tratamento que em Lisboa se dá aos de Torres Vedras. (...) Também se diz que mandam para Angola os prisioneiros. Façam o que quiserem, que têm por onde o paguem. Ainda estes dias nos caíram nas mãos 80 dos seus (...). Não as hão-de pagar no outro mundo.

Quando os prisioneiros de Torres Vedras partem, enfim, para o degredo, a 1 de Fevereiro de 1847, o Espectro, assinalando a injusta ironia da situação, relembra que “entre quarenta e tantos presos, só três não desembarcaram no Mindelo” (3 de Fevereiro de 1847), ou seja, só três não estavam entre as forças de D. Pedro IV (I do Brasil) quando, em 1832, desembarcou em Portugal à frente de um pequeno exército liberal, para restituir o trono a sua filha, D. Maria II. Nesse número de 3 de Fevereiro de 1847 do Espectro, Sampaio narra as chorosas e desditosas visitas da mulher e da irmã do conde de Vila Real a este velho combatente das guerras liberais, que partia para o exílio, e à Rainha, a quem pediram clemência, numa estratégia de personalização do relato, com fortes efeitos emotivos:

A capital presenciara em silêncio esta romaria das duas formosas damas. O embarque e o desembarque delas, a vista de uma cadeirinha que indica sempre uma existência precária e amargurada, tinha feito amontoar o povo à sua passagem, e todos esperavam alívio para tantas mágoas. Só o Espectro não esperava (...), (...) uma Rainha teimosa [que] cria carne com o choro das vítimas e só a mortificaria com o seu prazer.

Fizeram o seu dever as duas nobres senhoras. As lágrimas ficam bem à aflição e à inocência. A Corte folgou com essas lágrimas (...).

Conforme se poderá ver nos exemplos abaixo, similares a centenas de informações publicadas no jornal, o Espectro vai, sucessivamente, dando conta das pequenas escaramuças e das ofensivas militares da Patuleia, sempre denunciando o alegado ambiente de “intrigas” que corroeria o Governo, a Corte e a Rainha (por exemplo, no Suplemento ao número 25, datado de 20 de Fevereiro de 1847), embora esta palavra indicie mais os desejos e expectativas de Sampaio do que a situação real. Porém, as notícias baseavam-se muito em rumores:

Última hora

Por pessoas chegadas hoje do Alentejo, consta que o conde de Melo, no dia 27, atacara de novo Estremoz, onde entrara depois de três horas de fogo, aprisionando o ex-barão de Estremoz e toda a guarnição.

Consta que Shwalback fugira para Coruche, donde oficiara ao Governo dizendo que depois do último desastre, não tivera remédio senão retirar, e que se o Governo não lhe mandasse socorros de gente e dinheiro, viria até Lisboa, por que lhe vai desertando a gente. (3 de Março de 1847)

Não tendo havido qualquer batalha digna de registo após Torres Vedras, parecia que, efectivamente, o País se preparava para a intervenção estrangeira, por muito que Sampaio sustentasse o contrário, jurando que “as forças populares cobrem o País e alcançam assinaladas vitórias” (31 de Março de 1847). A 3 de Abril, por exemplo, ironiza com o exército governamental, que tinha saído da capital, ocupando Loures, para impedir o progresso de uma força constitucional, apesar de que “Toda a gente sabia que a expedição era destinada ao Alentejo, menos o Governo”. A 9 de Abril, anuncia, com atraso, o desembarque de Sá da Bandeira, em Lagos, a 31, que “marchou no dia seguinte para Évora”. E assim sucessivamente, quase até ao final da publicação do jornal, vinca a existência de operações militares e de combates, quase como se persistisse em não ver a realidade mas sim os seus desejos. É o que sucede, por exemplo, no número de 8 de Junho, onde faz uma súmula da situação militar dos rebeldes, com base numa carta recebida do Porto, a 30 de Maio, em que dá conta da tentativa final do conde das Antas para iniciar nova ofensiva e das ameaças de interposição britânica, que se viriam efectivamente a concretizar:

A nossa situação militar é a seguinte – José Vitorino Damásio continua cercando Valença. O conde das Antas está para embarcar, estando já fora da barra o Mindelo, Salter, corveta Oito de Julho e o vapor Porto (...); o conde de Almargem comanda em chefe o exército do Norte (...). A revolução da Beira é muito séria. O brigadeiro Manuel Cardoso está em Mangualde e vizinhanças com 600 homens (...).

Durante a ausência do conde das Antas, pediu-se armistício à Junta, que se recusou. José Passos foi intimado pelo capitão Robb de que os navios da Junta seriam provavelmente detidos no Douro (...). Chegou o conde das Antas e havia alguns membros da Junta que se indicavam à concessão de um armistício com certas condições. Esta ideia foi mal recebida pelo público. Estavam neste ponto quando Salter recebeu uma intimação (...) para recolher para o Douro (...). Salter recebeu ordem da Junta para se conservar fora da barra.

(...)

Então, a Junta foi unânime em recusar o armistício, propondo que o negócio, por ser português, fosse tratado portuguesmente.

(...)

A Junta mandou sair a sua esquadra (...).

De qualquer modo, a partir de Abril de 1847, Sampaio compraz-se em referenciar as vozes que, entre os cartistas e cabralistas, leais a D. Maria II, prenunciam o fim das hostilidades. Por exemplo, a 3 de Março, Sampaio realça a “impotência do Governo para acabar com a revolução” revelando que “o ex-duque de Saldanha escrevendo para Lisboa, se exprimia assim: «A revolução é como a hidra. Quantas cabeças se lhe cortam, tantas mais renascem, e com mais força.»”. A 7 de Abril, escreve que “o ex-marechal Saldanha diz a S. M. que convém dar uma amnistia visto não poder terminar a guerra pelas armas”. A expressão “ex”, em ambos os casos, é forçada, pois Saldanha nunca foi exonerado pelo Governo lisboeta nem pela Rainha.

A 9 de Abril, Sampaio anuncia, no mesmo tom: “apareceu por aí um boletim (...) cartista bradando contra este estado violento”. E citando profusamente esse periódico (Boletim Cartista), mostra como os adversários se encontravam divididos, já que este jornal critica o Governo, exige “que a guerra termine quanto antes com honra para o Trono”, pede a demissão da maioria dos ministros e denuncia a “desordem das finanças” e a inacção dos chefes militares do exército regular, que, depois de terem derrotado os rebeldes constitucionalistas em “Viana do Alentejo, Valpaços e Braga e (...) em Torres Vedras”, permitiram a sua recuperação, a tal ponto que estes já controlavam “quase todo o Minho, (...) todo o Algarve, e (...) boa parte do Alentejo”.

A 23 de Abril, prenúncio que a situação caminhava no sentido da estabilização, Sampaio dá conta do regresso de José Cabral ao Reino e da incredulidade da Rainha perante a ousadia do irmão de Costa Cabral, num relato de recorte literário e minucioso, quase como recomendariam as correntes do jornalismo literário e do (segundo) Novo Jornalismo. Interessantemente, Sampaio não presenciou o acontecimento relatado, pelo que, embora o reporte com a autoridade omnisciente de narrador, existirá uma eventual dimensão ficcional na referida narrativa:

estava a Rainha no palácio quando o barão de Rilvas chega e dá parte que estava ali José Cabral (...).

Rainha – O barão está a gracejar.

Barão – Não senhora, eu não tenho confiança para gracejar com Vossa Majestade...

Rainha – Diga-lhe que estou incomodada... Não... que entre... (...).

Chega o Cabral, beija a mão à Rainha e ao Rei e tudo fica silencioso (...).

José Cabral – Senhora, Vossa Majestade determina alguma coisa de mim?

Rainha – Que vos retireis.

A Rainha queixa-se dos ministros (...).

Rainha – Pois é preciso que esse homem se vá embora, e que parta dentro de 24 horas.

D. Manuel [de Portugal] – Então será preciso intimá-lo.

Rainha – Pois intimai.

D. Manuel – Mas, senhora, 24 horas será muito breve. Não bastará que partisse no paquete?

Rainha – Pois sim, que parta.

Passaram-se as ordens ao governador civil. O marquês de Fronteira foi em pessoa fazer a citação. Diz-se que ia da parte de Sua Majestade insinuar-lhe que saísse do Reino. O Cabral perguntou se era insinuação ou ordem. Respondeu-lhe que era ordem. Depois (...) despediram-se (...), e apesar da ordem, o homem sumiu-se e ficou.

Nós folgamos com aqueles respeitos de amor e lealdade à Rainha.

A 28 de Abril, Sampaio noticia no Espectro a formação de novo Governo, mas com a manutenção de Saldanha no cargo de presidente. Comenta-o assim: “Esses homens (...) seriam talvez aptos, (...) alguns, para tempos ordinários, mas nas actuais circunstâncias têm contra si todos os partidos”. E assegura: “O Povo não desarma enquanto não vir garantida a Constituição e as leis.” A 1 de Maio, a formação do novo Governo merece-lhe a seguinte observação: “o Ministério é a Junta do Porto até que a representação nacional se reúna, que é essa a quem toca designar aqueles que devem gerir os negócios públicos.” Acrescenta que o novo Governo só teria visto a luz do dia porque a Rainha “vendo-se solitária” quis “transigir”, tendo dado esse passo “para obter a mediação estrangeira”. O fantasma do alegado perigo espanhol, que nunca saiu do imaginário colectivo de muitos portugueses, é frequente, e injustamente, agitado:

A questão assim fica sendo pouco portuguesa da parte da Corte e só o é do lado da Junta do Porto. Para vergonha dessa facção (...), os estrangeiros foram chamados contra nós. Se a Rainha (...) mandasse vir os castelhanos para esmagar os portugueses, nós com toda a nação bradaríamos que a Rainha tinha perdido o direito ao Trono. (...) E esses castelhanos foram chamados, e os espanhóis ameaçam a nossa independência (...), receiam que sejamos livres e que a nossa força os prejudique. Querem, pois, engrossar as fileiras cabralistas para aniquilarem a nossa nacionalidade. (1 de Maio de 1847)

Em certas alturas, a calamitosa degradada situação social também é destacada no Espectro, evidenciando o olhar compadecido e compassivo de um Sampaio profundamente católico e que se chocava com a miséria que afligia a maioria da população portuguesa, que contrastava com o bem-estar das elites nobres e aristocráticas do país:

Têm aparecido imensas pessoas mortas de fome e de miséria na sua própria casa. Depois de venderem quanto têm, entregam a alma ao criador. (...) Enquanto tudo estala de fome, o Ministério tira duas décimas aos empregados, sob o pretexto de que não lhe paga em dia. Também a lei da primeira décima traz a cláusula de que não se descontará quando o pagamento do ordenado estiver atrasado, e o Governo não a cumpre. Assim, a sorte dos desgraçados empregados não melhora, e o país tem de carregar com uns poucos de centenares de contos de réis mais, que é um brinde que se vai fazer à agiotagem (9 de Março de 1847)

A tranquilidade que se goza nesta cidade é a paz do despotismo, é a solidão dos sepulcros. O numerário escasseia, os géneros de primeira necessidade sobem, os indivíduos aparecem mortos dentro de sua própria casa, os hospitais têm o dobro dos doentes (...) e famílias que viviam na abundância acham-se reduzidas à miséria. (27 de Março de 1847)

Reagindo a um artigo publicado no Diário do Governo, sobre a libertação dos presos do Limoeiro, no fim de Abril, revela-se um Sampaio condoído com a má sorte dos condenados e revoltado com a diferença de tratamento entre ladrões populares que roubam pouco e os ladrões de colarinho branco que roubam muito (um enquadramento, aliás, recorrente no discurso sobre a Justiça, pois ainda hoje se encontra abundantemente presente na comunicação social e na conversação pública):

Viram-se presos com a palidez da morte (...), sem poderem andar, como se saíssem debaixo da campa do sepulcro, e é destes vegetais humanos que se finge tanto medo (...). Esses facinorosos nem se armaram nem fugiram, nem se esconderam. Começaram a passear vagarosamente pela cidade (...). E o Diário devia lembrar-se que os roubos daqueles ladrões todos somados não importam nos que têm feito alguns desses ministros a cujo serviço ele tem estado, nem os assassinos todos juntos derramaram tanto sangue como aquele que tem feito derramar o Saldanha (...) nos assassinatos (...) que praticam as hordas que ele comanda.

(...)

O que a civilização reprova é que esses infelizes, embora criminosos, fossem mortos aos tiros pelas ruas da cidade quando se achavam inermes (...). E essa cena de sangue louvou-a o Governo! (5 de Maio de 1847)

A impiedade e ferocidade dos cabralistas é, de resto, várias vezes vincada e contraposta à humanidade da Junta. Mas as vítimas, promete Sampaio, não se esquecerão dos seus algozes:

No Carmo estão-se dando tratos cruéis às vítimas que vão cair nas mãos de D. Carlos e do Sedvem. Diz-se que têm desaparecido algumas das pessoas que para ali são conduzidas (...). Parece que as matam às pancadas, e que depois as somem.

O Ministério da Paz sabe isto e consente-o. A Junta do Porto solta os seus presos, dá subsídio aos prisioneiros, e não oprime ninguém. A Corte faz do Carmo inquisição (...) e martiriza os súbditos da Rainha.

(...)

O Espectro empraza esses homens fracos para comparecerem brevemente nestes lugares de sangue onde hoje atormentam a humanidade. (14 de Maio de 1847)

Noticiam-se, também, no Espectro, os métodos pouco ortodoxos do Governo para financiamento da sua causa:

O Ministério roubou há dias 3200$000 réis das oblatas de Nossa Senhora da Conceição da Rocha. Este roubo cometeu-se a 14 do corrente, por ordem do Governo Civil de 10. Já havia empalmado 60 contos do depósito público. (Suplemento ao número 42, 24 de Abril de 1847)

Outras notícias dão conta da triste forma dos portugueses, ontem como hoje, deitam dinheiro ao lixo. Só lendo:

Chegou aqui há dias um vapor inglês fretado por conta do Governo de Lisboa. Este serviço custa (...) num ano (...) oitenta e um contos de réis.

O vapor foi fretado para navegar com bandeira inglesa. Chegado a Lisboa, o Governo quis meter-lhe artilharia, mas o comandante não consentiu, declarando que não viera para (...) intervir numa contenda doméstica. O Governo quis, então, embandeirar o barco à portuguesa (...), mas o comandante opôs-se dizendo que nesse caso corria o vapor os riscos da guerra (...).

Aí está, pois, inutilizado um vapor que tanto dinheiro tem custado. Diz-se que volta para a Inglaterra, mas está vencendo as 50 libras diárias até à rescisão do contrato. Para comprar o barco, faltam os meios; para o nacionalizar, era precisa a compra (...).

Também o Governo comprou o Royal Tar à companhia inglesa. Era um vapor que já não servia por estragado, e pelo qual os ministros (...) prometeram um dinheirão, dando já três mil libras. (7 de Abril de 1847)

Estranhamente, no suplemento ao número 42, datado de 24 de Abril, Sampaio noticia a captura do vapor Royal Tar atrás referido, “com mais de mil armas”.

Apesar das imprecisões, do crédito aos rumores, nem sempre confirmados, na aceitação pura e simples das cartas dos correspondentes como reportando informação verdadeira, em conclusão pode dizer-se que se nota que o Espectro, mesmo sendo um jornal doutrinário, procurava informar com verdade, apresentando e discutindo os sucessos e (menos) os insucessos da causa Patuleia, apesar de sucessivamente denegrir as acções do Governo e dos cabralistas. Não era, portanto, um jornal balanceado, longe disso, pois Sampaio era fiel a si mesmo e à sua versão do factos; mas era um jornal que pugnava pela verdade dos factos informados ou, pelo menos, por uma verdade.

4.2.1.3 A intervenção estrangeira e a atitude d’O Espectro

A mediação inglesa no conflito e a ameaça (concretizada) de intervenção militar estrangeira é outro dos temas em destaque nas páginas do Espectro, tentando este periódico ecoar as posições da Junta Provisória de Governo Supremo do Reino e, ao mesmo tempo, fazer pressão para que as negociações evoluíssem em torno dos princípios defendidos pelo próprio Sampaio.

A questão da intervenção estrangeira ao abrigo dos acordos da Quádrupla Aliança pôs-se quase logo após se iniciar a guerra civil da Patuleia. No número do Espectro de 19 de Dezembro de 1846, António Rodrigues Sampaio já alertava para essa possibilidade, ao mesmo tempo que se aproveitava para denegrir a Rainha e o marechal Saldanha e para questionar a legitimidade do Governo, que não se apoiaria em personalidades “ilustres”, isto é, na burguesia:

É constitucional o Governo que só tem o apoio dos soldados? Em que conta tendes os cidadãos, a massa do povo, tantos caracteres ilustres? (...) O poder moderador, impassível no meio da tormenta, dorme, passeia, diverte-se. O caso é que o valido esteja contente, que o Saldanha mate os campinos, embora o povo chore.

A Corte embala a Rainha com o tratado da Quádrupla Aliança, e ei-los aí descansados sobre a sua sorte futura.

Ilusão e desonra é essa esperança. Ilusão, porque o tratado morreu apenas se conseguiu o fim especialíssimo para que se contratara; desonra, porque a é, e grande, quererem que a Rainha reine por graça dos aliados! Risquem então dos diplomas a frase: “Rainha pela graça de Deus e da Constituição” e substituam-lhe “por graça dos aliados e vontade dos estrangeiros”.

Não, não será assim. O governo pertence à maioria; esta é liberal (...).

O coronel Wilde, primeiro mediador inglês, é várias vezes referido. Citando um jornal britânico de 28 de Novembro, por exemplo, Sampaio descreve, no Espectro de 26 de Dezembro de 1846, a visita desse intermediário britânico aos chefes dos exércitos em confronto, aproveitando o jornalista para realçar propagandisticamente o facto de os ingleses, insuspeitos, reparem no garbo das forças rebeldes, populares, similar ao do exército regular. A evocação da observação imparcial de um inglês funciona como argumento de autoridade:

O vapor Polyphereus chegou de Lisboa com despachos do coronel Wilde, que tinha regressado àquela cidade em 15 de Novembro, depois de ter visitado ambos os exércitos. Tendo estado no quartel general do duque de Saldanha, por quem foi recebido da maneira mais cordial, passou a Santarém, onde encontrou a mesma lisonjeira recepção por parte do conde das Antas, cujas tropas encontrou em tão boa ordem como as da Rainha.

Sampaio e a Junta vêem como insultuosa e uma ingerência inaceitável nos assuntos internos de Portugal a intervenção militar estrangeira, sendo sempre imputada à Rainha e aos cabralistas a responsabilidade pela mesma. O alegado auxílio espanhol ao Governo cabralista (os cabralistas são barbarizados pela aposição do adjectivo “hordas”), por exemplo, não é ignorado. Redigia Sampaio n’O Espectro de 23 de Dezembro de 1846:

Enquanto os braços populares combatem sobre o solo natal, (...) a camarilha implora o auxílio estranho!... Ayamonte e Vigo são os pontos onde as suas embarcações buscam abrigo. É ali onde vão buscar alguns aderentes escapados ao entusiasmo popular e à acção da justiça, é por ali que introduzem alguns socorros para as hordas do barão do Casal, é pela embaixada de Espanha que conspiram e alentam os seus desfalecidos caudilhos.

O número de 24 de Fevereiro de 1847 do Espectro é particularmente interessante para se perceber o entendimento dos rebeldes sobre o que estava em cima da mesa, pois, conforme explica, oportunamente, Ana Cabrera (2006, p. 15-16), é feito “para inglês ler”, já que resume as posições da Junta constitucionalista. Nele, Sampaio anuncia a chegada de um negociador plenipotenciário britânico, sir Hamilton Seymour, que teria sabido “que o partido cabralista (...) apelava (...) para a intervenção de Espanha”. Segundo o Espectro, o diplomata “vendo o grave comprometimento que tal interferência trazia à Coroa, ao País e talvez à paz na Europa” logo rumou ao Palácio Real, onde, avistando-se com o marido de D. Maria II, D. Fernando II, teria declarado que “a Inglaterra não consentiria (...) na intervenção estrangeira nos negócios internos de Portugal”. “Esta notificação” – escreve Sampaio no mesmo número de 24 de Fevereiro de 1847 – “criou um desengano (...) para essa minoria facciosa que pretendia chamar os batalhões de Castela a fim de avassalarem o Reino. O partido popular honra-se com o apelo dos seus adversários para essa intervenção, mas não a teme.” Continua o autor, para dissipar o alarme que, para as potências liberais da Quádrupla Aliança, constituía a ameaça miguelista:

O tratado da Quádrupla Aliança (..) caducou, e quando não caducasse, o causus fideris não havia chegado. D. Miguel foi expulso (...) e não voltará (...), os realistas (...) reconheceram a bandeira da Junta. Eis aqui porque a Inglaterra, ainda que considerasse em vigor o tratado, não poderia admitir a intervenção. (...) A nós, exclusivamente, pertence o arranjo das nossas coisas. (...) Mas, o Trono da Rainha? Aqui é que bate o ponto (...). O Trono da Rainha, ninguém atacou. A revolução não cometeu o menor desacato contra ele. Se a Corte se tornou facciosa, se o Rei quis vestir uma farda para se tornar o paladim (...) dos Cabrais, se a Rainha (...) dando (...) guarida aos conspiradores, se associou à sorte deles correndo às varandas para vitoriar o desastre de Torres Vedras (...), deixou prender e insultar na sua presença o presidente do seu conselho, se (...) lançou nos areais de África os seus súbditos mais fiéis (...), se pronunciou (...) contra a maioria da nação (...), não pode (...) ficar (...) à testa dela (...). A Sra. Dona Maria deve (...) abdicar.

A 3 de Março, o Espectro regista nova interposição de sir Saymour, desta vez colocado perante a ameaça de interferência de Espanha nos negócios de Portugal, a pedido dos cabralistas:

Diz-se haver uma carta de Costa Cabral em que se afirma que o gabinete de Madrid consente na intervenção, e que Luís Filipe, de quem ele é humilde servidor, não se lhe opõe. Esta notícia chegou ao conhecimento de sir G. H. Seymour, o qual se diz que fora imediatamente ter com el-Rei a fim de lhe certificar, como já fizera antes da entrega da sua credencial, que a Inglaterra não consentiria em semelhante interferência.

(...)

A nação portuguesa, que se riu das bravatas do Saldanha, receia pouco dos Cabrais de Madrid. E se o Espectro comemora o facto da intervenção, é só para mostrar que a nossa Corte se julga perdida, e que espera, em vão, por auxílio estrangeiro.

A 19 de Março, o Espectro noticia que a Rainha Vitória e o Rei da Bélgica tinham escrito a D. Maria II instando-a a acabar com o conflito, mas que esta “não quisera ouvir aqueles conselhos”, pois “o Saldanha lhe prometera vencer”. Nesse mesmo número de 19 de Março de 1847, Sampaio atribui as responsabilidades pela ameaça de intervenção estrangeira ao Governo cabralista:

Saldanha (...) resolveu-se a traçar umas bases em que se pedisse a mediação da Inglaterra, já que esta não consentia na de Espanha (...). A opinião (...) do Saldanha é que a intervenção da Inglaterra é necessária, muito mais acabando de entrar na Espanha o (...) Casal. (...) Acrescenta-se que instado o Governo inglês (...) para intervir nos nossos negócios, (...) se recusara, e que instado de novo para intervir em virtude do tratado da Quádrupla Aliança, respondera que esse tratado tinha caducado (...). Parece que sir G. H. Seymour já enviara uma nota a esse respeito ao nosso Governo, o que não satisfez os cabralistas (...).

No dia 27 de Março, anuncia-se no Espectro que o marechal Saldanha ameaçava demitir-se se não lhe dessem os recursos necessários para liquidar a revolta, declarando-se incapaz de “tomar o Porto pelas armas” com os que tinha no momento. No entanto, segundo o Espectro, Saldanha teria instado a Rainha a pedir a intervenção espanhola e a empenhar as próprias jóias pela causa Cartista:

É necessário (...) pedir a intervenção espanhola, e se esta não se puder conseguir directamente, será necessário tentá-la indirectamente, proponde-se o recrutamento de uma legião de seis mil homens espanhóis, entendendo-se Costa Cabral com o gabinete de Madrid (...).

É necessário que todos concorram com o que tiverem para o triunfo da causa. (...) Sua Majestade deveria dar o exemplo, dando as suas jóias particulares e ainda as da Coroa para serem empenhadas (...) e (...) precisava também de 400 contos (...).

Embora não diga directamente respeito à questão da intervenção estrangeira, mas denunciando a enorme dependência que Portugal tinha da Inglaterra, a 3 de Abril, citando o jornal francês Constitucionel de 11 de Março de 1847, o Espectro dá conta de um preocupante rumor: o Governo preparar-se-ia para vender possessões portuguesas na Índia em troca de financiamento. A notícia é ainda interessante por outro motivo. Acusam-se os portugueses de serem saudosistas e de viverem eternamente a olhar para o passado, recordando os tempos áureos dos Descobrimentos. O texto demonstra que essa percepção já vem de trás:

Portugal acha-se exausto e despedaçado por tantas lutas, mas ainda vive de suas antigas recordações. Entre as mais brilhantes devem contar-se as suas conquistas nas Índias, resto daquelas possessões que outrora tanta grandeza, nobreza e riqueza lhe deram. Mas que temos nós esta manhã nos jornais ingleses? A inaudita notícia de que o Governo de Lisboa trata de vender à Companhia das Índias bastante parte do território que Portugal ainda possui na península indiana!

A 13 de Abril, o Espectro, insinuando que no campo adversário grassava o medo e a ineficácia, referia que o mediador britânico, sir Hamilton Seymour, “depois (...) de exprobrar aos ministros os erros da sua política, e de notar o desprezo dos conselhos que o corpo diplomático lhes dera no interesse da causa da Rainha”, tinha mandado atracar um navio para “receber a Rainha e a sua família no caso de julgar necessário acolher-se à protecção estrangeira”. Mais à frente, no mesmo texto, indiciando a vontade cabralista e das potências estrangeiras de pôr termo à guerra civil, escreve que “É público que alguns agentes de S. M. B. têm dado passos para que a crise termine sem derramamento de sangue. (...) Os cabralistas (...) só querem que se lhes salvem as cabeças comprometidas.” Ainda no mesmo número, Sampaio declara, substituindo-se à própria Junta, que os rebeldes apenas poderiam aceitar negociações que colocassem “tudo no pé em que estava a 6 de Outubro” de 1846, data do golpe da Emboscada, e continua a exigir que a Rainha “seguindo o nobre exemplo de seu pai, abdique”, condição inaceitável quer para cartistas, cabralistas ou não, quer mesmo para a própria mediação estrangeira.

A 16 de Abril, Sampaio salienta que “pedir a intervenção é por si só um escândalo” e não significaria mais do que “subjugar a maioria com a minoria”. Nesse mesmo número, apregoa a existência de consonância entre as posições da mediação inglesa e as da Junta do Porto:

A Inglaterra (...) exige que a Corte de Lisboa entre na estrada da Constituição e da justiça. É isso que quer a Junta do Porto (...).

Exige que se nomeie um Ministério de gente séria e exclui a que concorreu para a Emboscada de 6 de Outubro. É isso que a insurreição quer.

Exige a convocação das Cortes. É isso o que nós queremos.

Exige a declaração de nulidade de todos os actos exorbitantes. É o que a Junta do Porto decretou.

Exige a restituição das patentes, honras e condecorações aos exautorados. É o que todo o país exige (...).

Exige que sejam soltos os presos, chamados os proscritos.

É o que todo o mundo reclama.

A 1 de Maio, Sampaio agita o sempre eterno fantasma da perda da independência para Espanha e, talvez intuindo que a sua posição radical estava em perigo, manda recados à Junta:

Se a mediação é (...) por motivos de humanidade, aceitamo-la. Se é uma ameaça, rejeitamo-la. A mediação inglesa é honrosa, a de Espanha, com esse aparato bélico, é desprezível. (...) Assim deve dizer a Junta: Portugal não trata quando é ameaçado. (...) As propostas da Inglaterra são o triunfo da nossa causa (...). A Inglaterra diz nas suas propostas que não há rebelião em Portugal, mas sim um esforço (...) contra o despotismo. (...) Os interesses nacionais não são os interesses de meia dúzia de indivíduos e por isso o povo só quer garantias de liberdade (...).

Quando o povo parecia ser levado de vencida, a diplomacia dormia (...). O governo espanhol municiava os nossos inimigos. Só a Inglaterra nos chorava. Quando (...) a vitória nos sorri, é que os humanitários dos fuzilamentos se compadecem das desgraças para que concorreram, e querem fazer sua uma mediação em que a Inglaterra os deixou entrar (...).

Pedem-nos que paremos. (...) Não disseram ao Saldanha que parasse quando nos ameaçava de entrar no Porto (...). (1 de Maio de 1847)

O fantasma da perda da independência é, de resto, várias vezes evocado e ilustrado com exemplos históricos que funcionam como prova. Leia-se, a título de exemplo, o que Rodrigues Sampaio escreveu no número de 1 de Junho de 1847 do Espectro:

Ficámos noutro tempo sem Olivença, e um pé que os espanhóis ponham agora no nosso território será assinalado como outra usurpação.

Portugueses, às armas, à guerra!

(...)

Heróis de 1640, oh!, se surgísseis das vossas campas, e vísseis o que nós vemos

Segunda vez de pejo morreríeis!

No mesmo número de 1 de Junho, são evocadas as invasões napoleónicas (os exemplos históricos são sempre uma forma de produzir sentido num discurso de acordo com o enquadramento que se pretende dar a uma mensagem), para fazer nascer o receio de uma intervenção militar francesa: “chamaram outra vez as legiões da Gália (...). Pais, acautelai vossas filhas; esposos, tende conta em vossas mulheres; administradores de estabelecimentos pios, escondei as pratas, enterrai os vasos sagrados. Os jacobinos de hoje vêm profanar os vossos templos, talar os vossos campos, estragar as vossas searas.”

Diga-se, no entanto, que já desde o início de Maio se notava um certo desacerto entre as posições radicais de Sampaio e as da própria Junta, que, se as seguisse, provavelmente provocaria um impasse negocial. No número de 5 de Maio, por exemplo, Sampaio, numa tentativa de pressionar a Junta, escreve: “A Junta do Porto não rejeitará nenhuma mediação razoável, mas não firmará nenhuma transacção desonesta. Falamos com esta segurança porque são estes os sentimentos dos patriotas, que a Junta não há-de querer nem poderia contrariar”.

A 8 de Maio, Sampaio pretende que “a paz” com o Governo “é impossível” porque “A mediação pressupõe como preliminares (...) um Ministério que não seja de Cabrais, nem dos homens de 6 de Outubro, nem dos seus apoiantes”.

A 14 de Maio, erroneamente, o jornalista acalenta a esperança de que Espanha não interviria na contenda portuguesa:

Ninguém acreditou, seriamente, na intervenção espanhola. No que se acredita é no medo que os absolutistas de Espanha têm dos liberais de ambos os países. Todas aquelas fanfarronadas acabam por dizerem que nós, vingando a revolução, lhes poderemos fazer muito mal. Os invasores estão já com receio de serem invadidos.

Sosseguem. A Espanha tem patriotismo para se libertar. Os nossos irmãos do reino vizinho não carecem de auxílio estranho para vencerem os seus contrários. (...) Assim, as numerosas falanges podem retirar a quartéis (...).

A 24 de Maio, Sampaio dá conta de uma suposta trama do Governo para “incitando a uma sublevação miguelista” lograr a intervenção estrangeira para “cumprimento do tratado da Quádrupla Aliança”.

Entretanto, a intervenção estrangeira, tão temida pelos constitucionalistas radicais, materializa-se. A 28 de Maio, numa altura em que os britânicos já controlavam a barra do Douro e impediam uma ofensiva do conde das Antas, que prendem, enquanto o exército espanhol se preparava para avançar pelo Minho, Sampaio ainda diz que não espera que “a intervenção (...) se realize”. Mas já não hesita em hostilizar e ameaçar a posição dos mediadores britânicos, que anteriormente tinha enaltecido, e sugere mesmo a unidade partidária contra a intervenção estrangeira:

esses homens que se chamam de ministros são apenas os chanceleres de sir Seymour (...). Não nos admiramos da Corte, donde não esperamos senão tirania e baixeza, mas surpreende-nos que houvessem portugueses de tão pouco brio e carácter que assim menosprezassem a independência da Nação. (...) [O] coronel Wilde e sir Seymour tomaram as rédeas do Governo (...). E por desgraça deles tão à cabralista usaram e abusaram do poder que (...) adquiriram as antipatias de todo o Povo. (...) Assim, estes dois medianeiro quase que têm extinguido o ódio dos partidos, que esquecerão mútuas ofensas para repelirem um insulto que é comum a ambos. (28 de Maio de 1847)

A tentativa de Sampaio de influenciar a radicalização das posições rebeldes estava, no entanto, condenada ao fracasso, e daí que a prosa do jornalista se tenha tornado mais ressabiada e lamentosa.

A 1 de Junho, Rodrigues Sampaio, citando o Diário do Governo, dizia que ainda não acreditava “que uma força estrangeira viole o nosso território” e anuncia a celebração do acordo de Londres. Todavia, diz também que “a Junta aceitou a paz honrosa, mas repeliu o vilipêndio” pois apenas haveria no acordo duas disposições “desfavoráveis ao partido popular”: “Exclusão dos membros da Junta do Porto (mas não dos seus aderentes) do Ministério” e “Amnistia ampla”. Inversamente, sublinha António Rodrigues Sampaio, as potências mediadoras “viram que a Rainha se tinha proclamado absoluta e cometido crimes atrozes”, tendo-a coagido “mesmo a seu pesar”, a expulsar do Governo os cabralistas, declarar-se constitucional, reparar os danos feitos aos constitucionalistas e convocar eleições. Nesse mesmo número, porém, questiona directamente a Rainha, “que chama os estrangeiros contra os seus próprios súbditos”, realçando que “a Junta acata a realeza” e que “a invoca no meio do seu martírio”. E relembra-a dos perigos da intervenção estrangeira: “Rainha cega, que mete em sua casa quem a há-de expulsar dela”.

A 8 de Junho, sabendo já da intervenção estrangeira na sua globalidade, Sampaio reage:

A 29 de Maio assinou-se um decreto mandando receber com toda a benevolência e bom acolhimento os invasores. A Carta diz que às Cortes é a quem compete conceder ou negar a entrada de forças estrangeiras de terra ou mar dentro do Reino ou nos portos dele. O Governo, por conseguinte, violou a Carta, e (...) há-de responder perante a Nação por este crime.

A 11 de Junho, Sampaio noticia e transcreve no Espectro o protocolo regulador da intervenção de Espanha, Inglaterra e França, com o acordo do Governo português e refere que dois regimentos espanhóis, acompanhados de cavalaria, já tinham entrado em Valença, apesar da resistência portuguesa: “Quereis saber o que houve? Todos os nossos prisioneiros foram mortos (...). A esta barbaridade, o povo responde com um grito de indignação e morte. Os padres (...) pregam a guerra santa (...) para sustentar a independência nacional”. Nesse mesmo número de 8 de Junho, o jornalista ataca violentamente a Rainha, que “chamou os aliados para derramarem o sangue português” consumando o seu “divórcio (...) com o país”: “Maldito seja o Rei e a sua descendência (...). Amargurada seja a sua vida, afrontosa seja a sua morte”. E ameaça que “o povo não desarmará”.

No meio da situação confusa e indefinida criada pela intervenção estrangeira, revelada a partir do número de 14 de Junho, a 18 de Junho, António Rodrigues Sampaio, citando o Revelação, ainda sugere, falsamente, que a Junta “não só não aceitara a (...) amnistia” como também “cortara todas as comunicações com os aliados”. Por outro lado, ameaça que apesar da intervenção das potências da Quádrupla Aliança colocar um ponto final no conflito, “ficará subsistindo essa guerra latente, essa resistência surda (...), essa guerra donde surgem as revoluções”. Essa desconfiança já tinha, aliás, sido vincada anteriormente, pois a 24 de Maio, Sampaio dizia temer que “Passado o perigo, desarmado o povo, proclamar-se-ia o programa real de 6 de Outubro” e que os cabralistas voltariam a sustentar “a necessidade das deportações” e “a dos fuzilamentos”.

Obtendo a garantia de que os Cabrais não voltariam ao Governo sem eleições, a Junta dá o combate por findo, embora não desarme as tropas irregulares imediatamente. Sá da Bandeira e o conde de Melo, inclusivamente, recusam a capitulação e a amnistia e preferem ser presos, o que ocorre a 15 de Junho[6]. O radicalismo de Sampaio parece perdido e errático, mas o jornalista não desiste, ironicamente, de invectivar britânicos, cartistas e a Rainha:

Nomeie a Rainha... perdoem-nos o engano – nomeie o Sr. Seymour um Ministério (...) e (...) não correrá mais sangue, e esse jugo vergonhoso dos aliados parecerá menos pesado.

A administração é cabralista porque estão em pé todos os seus instrumentos. Os assassinos por aí andam armados. Costa Cabral representa a Rainha em Madrid, todas as suas criaturas são os que têm na mão a força pública, Saldanha (...) comanda a corte dos janízaros que assolaram o País e dizem-nos depois disto que o Ministério não é cabralista?

A 21 de Junho, acusa o vice-almirante Parker, comandante das forças de bloqueio britânicas, de ter tido o saque como objectivo:

Ao Governo fica-lhe somente a faculdade de mentir dizendo que (...) os vasos de guerra lhe foram entregues!

Portugueses! Quereis saber como isso é? Os vasos de guerra foram avaliados em (...) 400 e tal contos (...), que os nossos aliados nos roubaram. (...). Nesta gorda presa é que o Parker tinha o olho, e foi por isso que se apresentou em Setúbal. Queria as armas dos populares para as vender ao Governo (...).

No último número do Espectro, datado de 3 de Julho de 1847, Sampaio proclama o seguinte:

Respeitaremos sempre o Chefe inviolável do Estado, mas quando este (...) vende a Pátria ao estrangeiro (...), a inviolabilidade cessa, e principia a responsabilidade. Para os reis despóticos e perjuros, queremos o castigo condigno. Não somos livres hoje (...). Foi a Rainha, foram os Cabrais, quem nos vendeu, quem nos traiu, foram eles todos que pediram essa vergonhosa intervenção que nos avassalou. (...)

O partido popular fica fora dessa desonra. Cedemos (...) à força de três poderosas nações.

Ficou, pois, essa acusação final, cheia de fel e ressabiada, à Rainha, aos cartistas e cabralistas e às potências estrangeiras que intervieram em Portugal, pondo fim à revolta constitucionalista, que Sampaio, repetidamente, carimbava de “popular” e “nacional”.

4.2.1.4 A guerrilha miguelista, a sua aliança conjuntural aos constitucionalistas e a atitude d’O Espectro

Embora ocasional, um outro tema que merece ser destacado no Espectro é a acção da guerrilha miguelista, liderada pelo escocês McDonnell e combatida pelo conde de Casal em nome do Governo.

Logo no segundo número do Espectro (19 de Dezembro de 1846) surge uma referência à guerrilha miguelista:

O mesmo Diário conclui a sua parte noticiosa deste modo:

Também recebemos notícias do Minho, que dão a vila de Caminha em obediência ao legítimo Governo de Sua Majestade, e que na quarta-feira da semana passada tivera lugar um choque de uma guerrilha miguelista e uma força dos revoltosos (...).

Esta notícia é um dos factos com que comprovamos a doutrina do nosso artigo de fundo. Nós, os exautorados, morremos pela Rainha, e o Diário canta os triunfos dos miguelistas (...). Nós somos atacados pelas forças ministeriais e pelas de D. Miguel combinadas. (...) Fenómeno singular. Exautorados pela Rainha, somos maltratados pelos que lhe querem usurpar o Trono (...).

Uma de duas, ou esses homens que aclamam D. Miguel são cabralistas, ou as forças de Casal são miguelistas. O que não tem dúvida é que todos são absolutistas, e contra todos os absolutistas combatemos nós.

A questão miguelista foi regularmente colocada em evidência por Sampaio, inclusivamente por ter funcionado como um pretexto para o apoio espanhol ao Governo de Lisboa (relembre-se que Costa Cabral era ministro plenipotenciário de Portugal em Madrid) e, mais tarde, para legitimar a intervenção estrangeira:

Temos presente documentos autênticos e legais que mostram (...) a escandalosa intervenção do Governo de Espanha na entrega da praça de Valença (...) às forças navais do Governo de Lisboa (...), fundeadas em Vigo. Destes documentos (...) se evidencia que tendo-se manifestado na província do Minho a revolta miguelista (...), e tendo-se ela ateado até às raias do concelho e muros da praça de Valença, o seu governador (...) abrira a porta da Gaviarra, do lado de Tui, às referidas forças navais do Governo de Lisboa, sob o falso pretexto de não poder defender a praça das guerrilhas miguelistas e preferir entregá-la às tropas da Rainha. Mostra-se (...) que a guarnição e maruja dos navios de guerra do Governo de Lisboa fundeados em Vigo ali desembarcara, na força de 300 a 400 homens, e atravessara o território espanhol até à cidade de Tui, por onde fizeram a sua entrada na praça de Valença (19 de Dezembro de 1846).

Noutro caso, é questionado até que ponto o ressurgimento da guerrilha miguelista não se deverá ao cabralismo: “Acreditamos pois que os levantamentos miguelistas eram instigações dos Cabrais (...). Digam que a administração Saldanha fizera aparecer o McDonnell, que até aqui não ousara aparecer à luz do dia.” (23 de Dezembro de 1846).

Sampaio, obviamente, não morria de amores pelo miguelismo. Não apenas considera os miguelistas, entre outros epítetos, “desatinados” (6 de Janeiro de 1847), como também reforça a ideia de que existiria uma pretensa proximidade ideológica entre miguelistas e cartistas cabralistas, devido ao papel despótico que a Rainha, mal aconselhada pelo seu marido, D. Fernando II, teria tido no golpe da Emboscada:

A guerra entre McDonnell[7] e Casal é uma guerra de pessoas; o princípio proclamado é o mesmo. McDonnell, com os seus, é coerente e lógico; Casal é um traidor à liberdade que outrora defendeu. Ambos proclamam a escravidão do país. Só nós, só a Junta do Porto, proclama a liberdade.

O partido miguelista, que combate por um só homem, é irracional (...). O absolutismo (...) é anacrónico. (...) E para estabelecer esse princípio, é escusado haver guerra entre McDonnell e Casal. Ambos pugnam por ele; a diferença está na pessoa que o há-de exercer. (6 de Janeiro de 1847)

Nesse mesmo número de 6 de Janeiro, porém, é narrado, em duas peças separadas, quase reportagens, extraídas do periódico constitucionalista portuense Nacional, o devastador ataque das forças do conde de Casal aos miguelistas entrincheirados em Braga, quando estes apregoavam existir uma “combinação” entre eles (9 de Janeiro de 1847), ideia que é reforçada por várias cartas transcritas no Espectro de 23 de Janeiro de 1847:

Do Nacional de 22

À Última Hora – O barão do Casal seguiu anteontem a sua marcha para Braga, saindo de Vila Nova de Famalicão ao romper do dia, e tendo a sua força ali feito toda a casta de roubos e atrocidades (...), e chegou pelas dez para as onze horas às proximidades de Braga, onde encontrou as forças miguelistas de McDonnell mal entrincheiradas e decididas a fazer-lhe fogo. Avançou a cavalaria por uma viela e tomando-lhe a retaguarda passou à espada tudo o que encontrou. Entraram ao mesmo tempo forças por vários sítios da cidade e tornou-se geral o combate (...). Houve grande mortandade (...). O McDonnelll prometeu à sua gente tirar uma vingança (...) do Casal, que o enganara prometendo-lhe não fazer fogo. (6 de Janeiro de 1847)

Face aos ataques dos cabralistas contra os miguelistas, Sampaio só vê uma saída para estes últimos, a mesma que justificaria a sua adesão à causa constitucional: “abraçarem a bandeira popular (...), bandeira sem partido, (...) bandeira da Nação” (9 de Janeiro de 1847). Noticia, por isso, que vários miguelistas se tinham associado à Junta, casos dos “Póvoas, Velhos, Guedes e outros” (9 de Janeiro de 1847) e ainda de “alguns (...) chefes realistas” que reconheceram a Junta, sendo “notável entre eles o Costa Ribeiro, do Pardo, cujo exemplo foi seguido por outros e em breve o será por todos” (16 de Janeiro de 1847). É assim, portanto, que o redactor do Espectro justifica a incómoda aliança contranatura conjuntural entre miguelistas e constitucionalistas, incluindo os radicais setembristas: a bandeira da Junta seria, afinal, segundo Sampaio, a bandeira de todos os portugueses, a bandeira da Nação. No número de 18 de Janeiro, o jornalista acrescenta, ainda, que a união entre miguelistas e constitucionalistas é lícita, já que se trataria de uma união de auto-defesa:

Unimo-nos porque em Torres Vedras saquearam as nossas casas, desfloraram as nossas donzelas, violaram as nossas mulheres, degolaram os inocentes. E em Braga fizeram o mesmo às nossas, e às de nossos irmãos, que são irmãos todos os portugueses, qualquer que seja a sua crença.

(...)

Ainda não se viu em Portugal vandalismo semelhante. O saque e a desonra estavam reservados para este Governo.

Se estes flagelos pesavam sobre todos nós, por que não nos havíamos de reunir todos para esmagarmos os opressores? Pois havíamos de estar de braços cruzados a deixar fuzilar nossos irmãos para esperarmos pela nossa vez? E houve Governo tão estúpido que o esperasse?

A 9 de Fevereiro, o Espectro noticia que a Junta do Porto oferecia as bases para o entendimento entre miguelistas (“realistas”) e constitucionalistas (“liberais”), mas informa, igualmente, citando o Diário do Governo, da morte do líder miguelista McDonnell, “assassinado” por “uma grande coluna” que “derrotou uma força de cinco homens e matou-os todos”. No número de 19 de Março, noticia que “a Junta (...) expediu um decreto ordenando que os oficiais que pertenceram ao exército realista e que se têm apresentado ou apresentarem ao serviço da mesma Junta (...), sejam considerados (...) nos postos que tinham”, justificando esse gesto ao equipará-lo à reintegração plena dos oficiais miguelistas no exército nacional que se verificou em 1843. No entanto, apesar de todas as justificações, a aliança com os miguelistas foi causa de alarme entre os governos de Espanha, França e Inglaterra, tendo acabado por contribuir para a intervenção externa que pôs fim à Patuleia.

4.2.1.5 A economia n’O Espectro

Jornal feito para um público burguês liberal, interessado e envolvido na coisa pública e nos negócios, O Espectro não descura a informação económica, embora a enquadre sempre para tentar provar o sucesso da administração constitucional e “liberal”, contraposta ao insucesso da administração cabralista “despótica”, derivada em “agiotagem”. Por isso, essa informação raramente surgia como notícia autónoma e dado bruto; antes aparecia no artigo de fundo, devidamente contextualizada e analisada segundo a perspectiva do autor, e sempre que possível com base num elemento de prova, normalmente documentos dos adversários ou citações de jornais cabralistas. Leia-se, a título de exemplo, o seguinte excerto do artigo do primeiro número do Espectro:

Os erros da administração Cabral trouxeram-nos a crise financeira (...) – documentos dos nossos adversários são o fundamento das nossas asserções.

O conde do Tojal (...) consultava o banco sobre a necessidade de introdução da moeda estrangeira, porque o numerário escasseava, não obstante o alarde da afluência dos capitais. (...) Em 28 de Janeiro, (...) dizia a direcção da confiança nacional, ou antes, o Sr. Roma, alma e cabeça da agiotagem: (...) A Sociedade Folgosa, Santos, Junqueira & C.ª foi encarregada da conversão da dívida externa em títulos de 4 por cento. Esta operação pareceu à direcção danosa ao país (...).

O Banco de Lisboa foi sempre um banco de agiotagem, e os seus admiradores tiveram a imprudência de censurar pela imprensa o banco do Porto, por não querer contratar com o Governo, e levavam o seu cinismo a ponto de notarem que os discípulos do Sr. Roma davam 13, 14, 15 por cento de dividendo, enquanto os do Porto repartiam apenas 3 por cento! A consequência (...) foi que o Banco do Porto tem conservado o valor das suas acções (...), enquanto o de Lisboa vende por 300$000 réis o que não há muito dava mais de 835$000 réis. (16 de Dezembro de 1846)

Os números, tal como acontece com as referências a fontes, funcionam como elementos de prova e, ao mesmo tempo, geram um efeito melodramático ao discurso e intensificam a noção de crise. Eis um outro exemplo:

As acções do Banco de Lisboa caíram, mas conservaram-se durante a administração liberal em 450$000 réis (...). O desconto das notas do banco de Lisboa andou de 320 a 420 réis (...), mas isso deve-se a jogo da agiotagem. (...) Enquanto a fábrica do Tojal fizer papel, podem emprestar dinheiro, que não emprestam senão uma tira de trapo! (16 de Dezembro de 1846)

A 9 de Janeiro de 1847, Sampaio denunciava os sucessivos empréstimos bancários contraídos pelo Governo:

Exigiu do antigo Banco de Lisboa trezentos contos de réis (...). Gastaram-se prontamente.

Feita a junção do antigo banco com a companhia Confiança, passando a denominar-se Banco de Portugal, (...) desde logo se estipulou (...) o seguinte: O Banco de Portugal fará um suprimento ao Governo de trezentos contos de réis.

(...)

Também estão gastos os 300 contos.

E ultimamente exigiram-se mais uns cinquenta contos (...).

A informação económica não se ficava, inclusivamente, pelo que acontecia nas praças nacionais: “Em Londres (...), a 39 ficaram esses fundos, que chegaram quase a 70” (16 de Dezembro de 1846); “os fundos portugueses na praça de Londres tinham aumentado 2 por cento na sua cotação” (9 de Janeiro de 1847). Este aumento dos títulos portugueses no mercado britânico, porém, merece de Sampaio a seguinte leitura:

este ligeiro aumento de valor naqueles títulos de crédito provinha de asserções inexactas (...) do Governo de Lisboa (...), dando como certo que o pagamento dos dividendos se realizaria (...) no princípio do ano. O Diário do Governo (...) procura fazer acreditar que o pagamento do dividendo se efectuará por intervenção da casa Baring de Londres, que para fim análogo mandara aqui pessoa da sua confiança (...), mas será bem provável que o resultado da sua missão contradiga plenamente o artigo do Diário. (9 de Janeiro de 1847)

O que se passava na praça de Londres, principal financiadora externa da economia portuguesa, tinha profundos reflexos em Portugal, e daí que o tema seja recorrente:

Mandaram-se pagar os fundos em Londres, fez-se um empréstimo para isso, e os fundos desceram! Lá ficaram a 33 por cento no dia 26 do passado. Assim asseverámos há dias que havia de acontecer. A criação das 600 mil libras em apólices de 4 por cento produziu imediatamente o seu resultado natural. (...) E qual é a razão deste fenómeno? É porque ali não se crê na estabilidade do Governo (...), é porque se sabe que a criação dos meios para o pagamento do juro compromete o próprio capital, é porque se compreende que esta administração é essencialmente devorista e dissipadora. (...) E (...) fala-se em derrogar o decreto que impôs duas décimas sobre os juros da dívida externa! (...) Ou tirem ou ponham décimas, a sua posição não melhora. Os credores ingleses curam menos do maior ou menor juro do que da segurança dos capitais, e essa segurança fica comprometida quando se promete pagar o que de forma nenhuma se pode fazer.

Conforme é indiciado pela prosa de Sampaio, a alta finança internacional operava muito – conforme talvez ainda opere – com base na confiança e credibilidade pessoais:

O conde do Tojal, quando se achava em Londres, diligenciou encontrar os fundos para pagamento dos dividendos, visto que de Lisboa se não esperavam saques. Propôs um empenho de bonds no valor de quatrocentas mil libras, que garantiu com a sua própria pessoa e crédito pessoal e político, por se dizer vir entrar para o Ministério da Fazenda, o que não se verificou. (9 de Janeiro de 1847)

A resistência à introdução do papel-moeda, em detrimento da moeda metálica, também é documentada pelo Espectro: “vão obrigando o pobre povo a dar esse resto de metal que ainda tinha, por um papel que nada vale.” (16 de Dezembro de 1846). Ou ainda: “Diz-se que se vai fazer dinheiro (...). Em troco dos belos cruzados novos e cruzes (...), os órfãos e as confrarias receberão o floreado papel do Banco de Portugal”. A 4 de Janeiro de 1847, a propósito do mesmo assunto, e também da depreciação da moeda, Sampaio dava conta, revoltado, de uma disposição do Governo Civil de Lisboa:

Apareceu uma circular do Governo Civil que excede tudo o que há de estúpido na história do comércio. Queixa-se do desprezo que a capital faz das notas do banco e quer que todos recebam como metal um papel depreciado, que o banco não paga, nem há-de pagar, nem quer pagar, nem tem com que pagar (...).

Todas estas providências são o resultado do programa de rapina que a administração adoptou. Para pagar aos filhos predilectos da conspiração arranjam metal, para o público dão-lhe papel.

O banco emprestou ao Governo trezentos contos. O Saldanha manda que todos recebam as notas, mas para o exército exige prata.

O tema da crise financeira e da depreciação da moeda é, de resto, recorrente no Espectro. A 6 de Janeiro, por exemplo, insere-se no jornal a seguinte notícia:

as vitórias do Governo não aumentam o crédito das notas de banco. (...) As notas, segundo a folha comercial transcrita no Diário, têm corrido com os seguintes descontos:

Em 11 de Dezembro: 900 réis.

Em 18: 1$100 réis.

Em 25: 1$000 réis.

Em 30: 1$000 réis.

Estes são os preços cotados oficialmente, a verdade é que o desconto é sempre maior.

(...)

Quando em Paris se soube da batalha de Waterloo, os fundos franceses subiram. É porque essa derrota militar não foi a derrota do princípio popular, foi a derrota do princípio militar. Assim, em Lisboa os fundos descem depois da vitória, porque triunfou em Torres Vedras o princípio despótico e sucumbiu, posto que temporariamente, o popular.

A 20 de Janeiro de 1847, prossegue-se no mesmo tom:

As notas vão subindo a um preço ao qual nunca se venderam. Os papéis de crédito não valem nada, e os que não sofrem alterações são as acções do Banco do Porto (...). Vamos dar os preços das notas depois que se decretaram penas contra quem não as quisesse aceitar (...):

Em 11 de Dezembro: $900 réis

Em 18 de Dezembro: 1$100 réis

(...)

Cada triunfo que o Governo obtém é uma enxadada no crédito (...) e os fundos descem.

No número de 25 de Janeiro, mais achas são lançadas para a fogueira, sendo sintomática, e quiçá também aplicável aos dias de hoje, a frase: “a ilegitimidade de um poder mede-se pela extensão dos recursos que esgota”:

A miséria é extrema. Não se paga por falta de dinheiro aos empregados públicos. As notas, ninguém as quer (...). O mal cresce por via dos repetidos empréstimos, e como não há metal, torna-se indispensável a criação de mais notas. (...) Não faltará agora dinheiro – é quanto se puder imprimir e o Augusto Xavier da Silva assinar.

A (...) ilegitimidade de um poder mede-se pela extensão dos recursos que esgota.

(...)

A agricultura está perdida, o comércio paralisado, a indústria morta (...).

No número de 6 de Fevereiro, explora-se a revolta popular e a comiseração contra a introdução de papel-moeda não ancorado às reservas de metal sonante:

Pagam a um pobre pensionista 3$000 réis (...), dão-lhe 3$600 em notas, e obrigam-no a dar 600 réis de troco em metal. E se o infeliz quiser depois pagar a sua contribuição de 3$000 réis, não lhe dão troco (...). Isto é (...) um roubo descarado.

Se mandais considerar as notas como metal, se lhes deste curso forçado, se lançaste no mercado tantas quantas cada director do banco pode assinar, pedia a boa fé (...) que tais notas fossem aceites como dinheiro, e que as repartições públicas dessem por elas o troco competente. (...) E isto é uma violência tanto maior quanto as parcelas de cada prestação menores de 1$200 réis são mais numerosas. É (...) o pobre que vai sofrer!

Cidadãos! Faz-se com a vossa fazenda um jogo terrível. Sabe-se que o banco (...) joga na depreciação das notas. Sabe-se que dando-se por falido, emprega o metal que tem na compra das suas próprias notas, e depois torna a lançá-las no mercado!

Um outro tópico igualmente recorrente na informação económica do Espectro é a oposição entre a alegada boa gestão da Junta Provisória do Governo Supremo do Reino e a gestão ruinosa do Governo. Leia-se, por exemplo, o seguinte excerto do artigo de fundo do Espectro de 20 de Janeiro de 1847:

A Junta do Porto, no meio de todas as dificuldades da guerra, diminui os tributos que a rapacidade da Corte de Lisboa aumenta. A diferença é palpável, o contraste é saliente.

Cidadãos! Não sabeis que o porte dos jornais foi abolido?

Não sabeis que foi diminuído o direito sobre o chá?

Não sabeis que foi diminuído o imposto das sizas?

Não sabeis que foi diminuído o imposto do pescado?

(...)

Não sabeis que se triunfar o Ministério tereis de pagar o imposto do sal, o do subsídio e a contribuição de repartição que o Ministério popular aboliu?

Não sabeis que tereis de pagar o cruzado e os 20 por cento adicionais para as estradas, sem terdes estradas?

(...)

Não vedes como correm as notas do banco? Não vedes que (...) vão roubar-vos a vossa prata e o vosso ouro com esse papel que ninguém paga nem há-de pagar?

(...)

Vedes que além das notas do banco de Lisboa ides ter as do Banco de Portugal? Dizem-vos que são pagáveis à vista. Dizei-lhes que assim o eram as do Banco de Lisboa, e que foi com esse engodo que vos espoliaram.

No entanto, o Espectro mergulha mais fundo na tentativa de endereçamento das responsabilidades pela crise financeira – evidenciada pela iminente falência do Banco de Lisboa, atribuindo-as à gestão do próprio Costa Cabral:

Os accionistas do Banco de Lisboa e da Companhia Confiança Nacional entregaram os seus cabedais ao Estado e (...) até grandes somas pertencentes a particulares tomadas a juro por notas promissórias (...). Fora dois mil e tantos contos, (...) tudo são quantias dadas para despesas públicas desde 1835. Mais de nove mil contos (...) foram entregues desde os fins de 1844 (...). Mais de 3600 contos recebeu o Governo em dinheiro desde o princípio de 1845 até Maio de 1846. (...) Não foi a revolução (...) quem criou a crise, foi a imprudência do Banco entregando ao Costa Cabral a fortuna dos seus accionistas e a dos particulares. Mais de 9 mil contos desde os fins de 1844. Mais de 3600 desde princípios de 45 até Maio de 1846.

Com toda a clareza, a 9 de Março de 1847 o Espectro acusa Costa Cabral de ser o culpado pela situação: “Treze mil contos emprestados pelo banco ao Costa Cabral desde os fins de 1844 até Maio de 1846 levaram as coisas a este estado”.

Outra questão abordada pelo Espectro é a da concretização do pagamento da dívida externa. Assim, no número de 25 de Janeiro, Sampaio cita o Diário do Governo, no qual surge um relatório que explicita que a alfândega do Porto deveria contribuir mensalmente com 57500$000 réis para pagamento dos juros da dívida externa, o que tinha deixado de ser possível porque essa alfândega era controlada pelos rebeldes. Continua o jornalista:

Em virtude deste relatório, mandou-se criar em Londres até à quantia de (...) uns dois mil e seiscentos contos de réis em apólices com juro de 4 por cento. (...) É uma falsidade (...) que a Junta do Crédito devesse receber da alfândega do Porto (...). Se o Ministério lançou mão dos dinheiros destinados para o pagamento dos juros da dívida externa (...), seja franco (...). É escusado imputar à revolução as tranquibernias dos inimigos dela.

Os juros da dívida externa importam na soma de 1532552$453

Para o pagamento dela, estão consignados os seguintes rendimentos:

(...) Tabaco, sabão e pólvora: 109090$909

(...) Alfândega grande de Lisboa: 820000$000

(...) pela do Porto: 270000$000

(...) pela das sete casas: 100000$000

Suprimento pela sociedade Folgosa & C.ª: 265846$152

O que importa nuns 1564937$061

(...)

Daqui se vê que a alfândega do Porto, segundo a lei do orçamento (...), só concorre para a dívida externa com 270 contos anuais, ou com a consignação mensal de 22500$000 réis.

O pronunciamento popular começou no Porto há três meses (...) e, por conseguinte, o desfalque no rendimento destinado para o pagamento da dívida externa foi somente de 67500$000 réis. Eis aqui a grande soma que deu lugar à criação de um fundo de dois mil e seiscentos contos!

O excerto de texto anterior é interessante não só porque mostra como se combinavam receitas para prover ao serviço da dívida como também que a dívida externa e o seu pagamento já apoquentava fortemente os portugueses de oitocentos, tanto quanto apoquenta os de agora.

Eis outro exemplo relacionado com o mesmo tema e também com a emissão de papel-moeda sem respeito pelas reservas de metal sonante, desta feita extraído do Espectro de 3 de Março:

De nada servem os esforços do Governo para levantar aí um empréstimo enquanto persistir no curso forçado das notas de banco. Como pode ele empreender pagar integralmente 4 por cento quando as notas do banco, em que a Junta do Crédito Público recebe as suas rendas, estão numa depreciação tão enorme que produzem um deficit de 30 por cento.

(...)

O Ministério aumentou assim o nosso encargo anual em mais de trezentos contos (...). A Junta do Crédito Público, recebendo em notas e sendo obrigada a pagar em metal, (...) tem ainda de perder nas notas mais de 450 contos (...). Isto é, temos um acréscimo de despesa anual de mais de 760 contos.

A presença abundante de informações de ordem económica no Espectro é relevante não apenas para documentar a importância histórica da informação económica nos jornais portugueses, mas também, interessantemente, a constância do tema da corrupção financeira.

4.2.1.6 Os ataques políticos e pessoais

O Espectro consome-se em abundantes ataques políticos e pessoais. Os inimigos são repetitivamente rotulados com adjectivos como “assassinos”, “hordas”, “monstros”, “bandidos” ou “bando”. A Rainha é visada politicamente, por vezes com ferocidade e crueza, como ocorre no número de 5 de Maio, em que classifica a sua política de “pessoal”, “mesquinha” e “toda de raivita”, mas António Rodrigues Sampaio nunca a desrespeita, embora a acuse de ter perdido a oportunidade para se declarar acima dos partidos:

Os partidos podiam guerrear-se, e o Rei, impecável, podia estar longe dos seus tiros. Não quis. Quis embonecar-se, quis acirrar os ódios (...). Por estes factos, a inviolabilidade e a impecabilidade, a coacção acabaram-se – as ficções desapareceram, porque desapareceu o estado de graça que as criara. (16 de Janeiro de 1847)

Eis outro exemplo, no qual sugere que a Rainha é vítima de más influências, mas também cúmplice delas:

Vemos uma Coroa arrojada ao chão e calcada aos pés por aquela que a devia guardar, vemos um ceptro de paz convertido em vara de ferro, o alcácer dos Reis tornado espelunca de conspiradores, o que devera ser anjo tutelar dos povos feito seu flagelo. Vemos o Primeiro Funcionário da Nação levantar-se contra ela, usurpar-lhe os seus foros, manietá-la e tapar-lhe a boca para não denunciar o seu crime. (13 de Janeiro de 1847)

Noutros casos, Sampaio comenta a alegada indiferença de D. Maria II perante a revolta:

A Rainha viu a sua Coroa em perigo e quis salvá-la. (...) Do sangue derramado não se importa ela (...). As lágrimas das vítimas não a comovem, que nem sequer as quis ouvir, ou não as atendeu depois de ouvidas. Declarando-se inimiga dos seus súbditos pelo acto de mandar seu marido fazer a guerra, divorciou-se deles. (1 de Maio de 1847)

Uma acusação comum e ressabiada contra a Soberana tem a ver com aquilo que a Monarquia custava aos contribuintes portugueses (argumento que também viria a ser abundantemente usado pelos republicanos), que já se tinham endividado aquando das lutas liberais para restituir o Trono a D. Maria II:

Empenhámo-nos para te pormos no Trono, assinámos-te uma dotação com que não podemos. Tu e teu marido comeis a maior parte das nossas rendas, e nós morremos de fome. E tu nem sustentas teus filhos, que vais pedir às Cortes alimentos para eles.

Cria uma pobre mãe o seu filho, uma mãe que só tem de seu os carinhos, a ternura do seu coração e o suor do rosto de seu marido, e tu, com trezentos e sessenta e cinco contos de réis, com cem do teu homem, com imensos palácios, com a Casa de Bragança, ainda vens pedir a essa pobre mãe um farrapo das mantilhas em que embrulha o filho para te ajudar a cobrir e sustentar os teus. (13 de Janeiro de 1847)

Apesar do tom pedagógico de vários escritos de Sampaio, muitas das investidas contra a Soberana são expressão do ressentimento profundo de quem lutou por ela, sob o comando de D. Pedro, para afastar D. Miguel, e depois a vê como uma déspota absoluta, por ter suspenso a Carta Constitucional e nomeado um primeiro-ministro sem eleições. Eis um exemplo:

A Corte, suspendendo a Carta em 6 de Outubro, não podia esperar do Povo senão a guerra. (...) A lei fundamental do Estado autoriza o poder moderador a suspender algumas (note-se bem, algumas) das garantias individuais, mas só no caso de rebelião, ou invasão de inimigos. Nenhum dos casos se dava, e assim o poder moderador infringiu a Carta. A insurreição contra a infracção da Carta é a observância da mesma Carta.

Fez-se mais – suspendeu-se toda a Carta, e a Rainha assumiu o poder absoluto. Rasgando-se assim a Carta, não se podem hoje invocar as disposições dela que são favoráveis. A inviolabilidade não pode subsistir depois da destruição da lei que a estabelece.

(...)

Um Rei que não respeita os direitos do Povo não pode exigir que o povo respeite os ele. Um Rei que deporta sem sentença, que fuzila sem processo, que suspende a Carta, não pode invocar nenhuma das disposições do código que infringiu. (11 de Maio de1847)

Outro tema que surge no Espectro, embora só no final da publicação, é o de quanto a Monarquia custava ao delapidado Estado português, servindo isso para mais um ataque à Rainha (tanto quanto haveria de servir aos republicanos para proclamarem a República, em 1910):

Portugal está exausto, não pode com o luxo dessa realeza gulosa e sibarita. (...) Portugal não pode pagar tanto a uma Rainha que não sabe ser rainha. Trezentos e sessenta e cinco contos de réis para ela, cem para seu marido, que não tinha 400$000 réis de seu, vinte para o príncipe real, que ela se envergonha de sustentar, dez para cada um dos outros filhos e para os que vierem nascendo como se Deus quisesse flagelar com uma descendência que é um raio do Céu, é muito para uma Nação sem liberdade, para uma Nação cuja maioria morre de fome, para uma Nação que não é independente. (1 de Julho de 1847)

Ressabiado com a assinatura do tratado de Londres que legitimava a intervenção estrangeira, no número de 1 de Junho do Espectro Sampaio dirige à Rainha um dos mais lamentosos textos que inclui no seu periódico. Mas, conforme ele próprio revela, o texto não é seu, mas sim de José Cabral, decerto revoltado com a ordem de saída do Reino que tinha recebido da Rainha, tendo surgido no periódico deste, o Revelação:

Vós, Senhora, que no dia 6 de Outubro quebrastes o laço que vos unia ao Povo português, vinde confessar perante a revolta vosso enorme crime (...). Vós, Senhora, que ofendestes na sua base o pacto fundamental da sociedade portuguesa, tendo ministros que ousaram aconselhar-vos a assumir todos os poderes políticos e a tornar-vos assim absoluta para oprimir e perseguir, vinde confessar-vos deserdada dessa herança gloriosa que na Carta vos legou o vosso generoso pai (...). Vós, senhora, que desviastes da caixa da Nação 146 contos de réis para os meter nas algibeiras dos contratadores do tabaco, (...) respondei perante essa quantia à custa do vosso património – porque destruída (...) a vossa inviolabilidade e imunidade constitucional vos tornastes como vossos ministros solidária e conjuntamente responsável. Vós, senhora (...) que (...) levastes à fome 20 mil famílias, que sob a fé dos contratos públicos (...) tinham concorrido a sustentar as companhias por vós levantadas e autorizadas pelos legítimos poderes do Estado – acabai a obra da destruição.

Diga-se que a Soberana teria razões para temer o radicalismo de alguns constitucionalistas. Sampaio, por exemplo, sugere repetitivamente que o Trono de D. Maria II estaria em perigo, por ela se ter tornado partidária de um dos lados em confronto: “A Coroa da Rainha está jogada aos dados porque a Corte a compromete”, escreve, no número de 16 de Janeiro de 1847. E no número seguinte, datado de 18 de Janeiro de 1847, volta a carga, tal como fará repetitivamente até ao fim da publicação do jornal:

Não somos nós quem tem a culpa de se afundar esse Trono que levantámos. Saudades dele não as temos, e se chorássemos, seria o sangue que por ele derramámos. Deixamo-lo entregue aos Manueis de Portugal, aos Farinhos, aos Sousas Azevedos, aos Trigueiros e a todos esses que mostraram outrora que a Princesa do Grão-Pará, filha de um imperador estrangeiro, não podia ser Rainha de Portugal. Mandou-nos fuzilar a nós que a aclamámos, defende-se com os que lhe disputaram a Coroa.

Já a Corte, no seu conjunto, é alvo de encarniçados e repetitivos ataques:

Abandonada por Deus, amaldiçoada pelos homens, essa Corte erra de monte em monte, de precipício em precipício, e se vive ainda é porque a vingança celeste não está por ora satisfeita, é porque a vontade suprema ainda não está cumprida. (13 de Janeiro de 1847)

São inúmeros os ataques pessoais do Espectro aos políticos adversários. O Rei consorte, D. Fernando II, por exemplo, é profusamente insultado e alvo de corrosivo gozo:

Se há príncipe inteiramente idiota é este D. Fernando. Basta um facto para o qualificar. Ouviu falar em furos artesianos, e cuidou que eram como a vara de Moisés, que tirava água dos rochedos, ou que a fazia borbulhar onde não a houvesse. Saiu com o Dietz, parou no largo de São Paulo, e ordenou que se abrisse naquele sítio um poço artesiano. Toda a gente disse que ali não havia água, mas os dois alemães teimavam que era essa a virtude daqueles poços – tirar água donde não a havia. O povo riu-se e esperou. O visconde de Porto Covo já havia feito uma proposta para o largo de São Paulo e o poço se chamarem de D. Fernando. Mas não apareceu água, e os charlatães ficaram assobiados e conhecidos como tais.

Ora, dum talento destes, que se pode esperar?

Que os miguelistas queiram proclamar um homem, pode ser um (...) erro político, mas que o marido de uma Rainha revolucionária e constitucional queira o despotismo, é uma tolice (...), é um contra-senso, é uma vergonha. (4 de Janeiro de 1847)

El-Rei partira (...) para além do Tejo. Ouvimos dizer que ia fazer um piquenique. Esta versão condizia com o trem que levava – eram caçadores sem conto, almofias e todos os arranjos de cozinha. O imperador [D. Pedro IV de Portugal e I do Brasil], quando ia para a guerra, não ia assim. Levava a sua espada, um coração generoso, peito às armas feito. E o marido da Rainha marchava sem dúvida para os arraiais cabralistas. Ninguém viu a sua armadura, salvo se um tacho era o seu escudo, um espeto o seu montante, uma rodilha a sua saia de malha. O imperador vestia a cota de armas, o seu genro vestia o avental do cozinheiro; aquele cuidava do seu braço, este do seu estômago. (28 de Abril de 1847)

O ataque verbal de Sampaio à figura do Rei consorte chega, por vezes, às ameaças directas:

Se o povo respeita essa frágil mulher [D. Maria II] que não tem de augusto senão a sua desventura e a indiferença ou o desprezo com que tem reinado sobre esse Povo que devia ser seu, lembramos ao marido dela que tome conta em si, porque o seu corpo não é mais inviolável que o do Folgaza ou que o do menino gordo do Rossio. (13 de Abril de 1847)

Vários outros sujeitos ligados ao regime cabralista e até a D. Miguel também não são poupados. Saldanha, que alguns anos mais tarde viria a dar a Sampaio o seu primeiro cargo governativo, por exemplo, é um alvo rotineiro:

Do Saldanha não nos admiramos nós, que já em 1820 deu coices no laço azul e branco, nem do Sousa Azevedo, que foi colega do padre Lagosta, nem do Farinho, que aclamou D. Miguel, nem do D. Manuel de Portugal, que é dos convencionados de Évora Monte, e (...) todos perseguem liberais e realistas honrados como então perseguiam os constitucionais. (4 de Janeiro de 1847)

quando Saldanha, por ignorância e velhacaria, atribuiu num ofício àquele comissário inglês palavras que ele não tinha proferido, o coronel Wilde exigiu imediatamente uma satisfação, que Saldanha logo deu, pedindo-lhe somente que não a fizesse pública para lhe poupar a vergonha desta humilhação. (8 de Maio de 1847)

Eis outro exemplo das diatribes pessoais de Sampaio, que, inclusivamente, chamam a atenção para a normalidade com que, na altura, se encarava o compadrio, e também para as exigências, ontem como hoje, de moralidade na política:

O Diário contém partes oficiais muito interessantes: (...) As ilhas dos Açores estão pronunciadas a favor da causa popular menos a ilha Terceira, onde o Sr. Nicolau Anastácio Bettencourt decidiu (...) não abrir os ofícios das juntas de São Miguel e do Porto. Este Sr. Nicolau andou por aí a chorar pelas portas de todos os patriotas, dizia que se ia atirar dos Arcos das Águas Livres abaixo se não o empregassem, jurou que morria de amores pela Maria da Fonte, e depois liga-se aos inimigos seus protectores!

Ora que importava (...) que o Sr. Nicolau morresse de fome ou arrebentasse de fartura? Que tem a fome a ver com a honra?

É preciso moralizar os partidos. É infame o homem que vai lançar-se aos pés de Mouzinho e Palmela, e que depois se liga aos que os assassinam e deportam. O Sr. Nicolau é um servilão igual ao Abreu do Casal, ao José Maria de Sousa e alguns outros caracteres sujos e safados que renegam as suas crenças na hora da angústia, que se fazem cortesãos sob o império do despotismo (...). (6 de Janeiro de 1847)

Sampaio era efectivamente um ácido crítico social. Assim, no número do Espectro de25 de Janeiro de 1847, escreve este texto demolidor:

Temos a satisfação de anunciar que (...) a Rainha nomeou mais quatro barões – são o Leão da artilharia, o Velez Barreiros não sei de onde, o Sola dos granadeiros e o Lapa das Lezírias. Como não vemos senão a designação do título, julgamos que ficarão barões do Reino, ou dos seus narizes. Graças a Deus, já podemos contar com tantos barões como a Alemanha conta com príncipes, e até, por desgraça nossa, uns não valem mais do que os outros.

Já não há cão nem gato que em Lisboa se não chame barão, e os garotos, quando querem apanhar algum rafeiro, começam a afagá-lo com estas palavras: «Tó barão – tó barão»

Esta criação contudo foi uma necessidade. A aristocracia abandonou a Corte ou foi perseguida por ela. Tornou-se, por isso, necessário fazer fidalgos, ainda que não fosse senão do lixo das ruas.

Ao longo de todo o período de publicação do Espectro, Sampaio recorre muitas vezes, quase como que invocando a autoridade de um observador imparcial, a apreciações externas daquilo que se passava em Portugal. Fá-lo para atacar a Rainha e os seus adversários políticos, mas também para valorizar a sua própria perspectiva e a da Junta do Porto. Eis um exemplo, extraído do número do Espectro de 28 de Junho, no qual se transcreve uma intervenção do parlamentar britânico Lord Bentick perante a Câmara dos Comuns, a 14 de Junho:

[A Rainha] Jurou manter a Carta, e violou (...) as suas disposições só porque receou que o resultado provável das eleições seria virem às Cortes deputados que exigissem a (...) acusação dos Cabrais, cujo Governo de venalidade e corrupção destruiu a fazenda de Portugal e (...) nos impostos (...) recorreu a opressões inauditas. Orçava a despesa do exército e pedia dinheiro para 19 mil homens, quando só tinha 10 mil! É notório que vendia todos os empregos em Lisboa (...) e escambavam-se os contratos públicos, a fim dos Cabrais aumentarem os seus emolumentos. O Cabral (...) não tendo mais de 800 libras do seu ordenado (...), apareceu de repente um dos homens mais ricos de Portugal (...). O fim de uma lei era criar 5000 empregos para os vender. (...) O povo foi assassinado e roubado por todas as formas – fez-se uma agiotagem vergonhosa com o tabaco, sabão e pólvora. Trinta leis diversas passaram sem ser aprovadas em Cortes, e nas eleições (...) as listas eram de cores para revelar o segredo do escrutínio. Segundo a Carta, a força militar não devia interferir nas eleições, mas os eleitores foram fuzilados em muitos lugares. Lançou-se um pesadíssimo imposto para as estradas, que não eram senão meios de agiotagem. Estas estradas eram entregues a companhias cabralistas. Obras que deviam custar cem, custavam três ou quatro vezes mais. Existem provas (...) de que José Cabral (...) levou 50 mil libras pelo contrato das obras públicas entre Lisboa e Porto.

Nenhuma personagem cabralista estava a salvo da prosa de Sampaio. Mesmo os sujeitos mais abaixo na hierarquia podiam ser vítimas da pena do jornalista: “O vapor Porto saiu (...) sem uma só peça. Comanda-o o fanfarrão Soares Franco que um dos dias passados esteve (...) a desenvolver os seus planos de ataque na presença duns poucos de garotos.” (9 de Fevereiro de 1847).

4.2.2 Que fontes usa O Espectro para falar do que fala?

Analisando-se as referências às fontes do Espectro, pode ficar-se com uma ideia de como um jornal português oitocentista obtinha informações, para além do que era proporcionado observar directamente a Sampaio, que permanecia em Lisboa[8].

A imprensa era, desde logo, uma das principais fontes dos jornais. Os jornais citavam-se uns aos outros, por muito que depois transformassem e enquadrassem as informações. As notícias dadas pelos periódicos lisboetas sobre o que sucedia no Porto, por exemplo, eram, frequentemente, extraídas dos jornais da Cidade Invicta. O inverso também era verdadeiro.

Os jornais recorriam, afinal, a um sistema de obtenção de informações instalado desde os primeiros periódicos da Modernidade (SOUSA, 2008b; 2008d). Na falta de agências noticiosas, eram as redes de correspondentes (os correspondentes são responsáveis por muitas das notícias d’O Espectro), as notícias soltas captadas aqui e ali e ouvidas a marinheiros e viajantes e as citações da imprensa, nacional e estrangeira, que supriam as necessidades de informações. Os fluxos de informação eram verdadeiramente internacionais, graças aos sucessivos aproveitamentos e traduções de notícias que se realizavam à escala europeia e não só, num fenómeno de intertextualidade e interdiscursividade sem fim.

O Espectro cita, assim, jornais como o Diário do Governo, de Lisboa, cartista, controlado pelos cabralistas e frequentemente usado contra o próprio inimigo, bem como, do Porto, o Estrela do Norte (setembrista) e o Nacional (também setembrista), de onde são recolhidas a maioria das notícias sobre o que se passava no Norte de Portugal e no Porto. Atente-se nos seguintes exemplos, extraídos do número de 19 de Dezembro do Espectro:

O Diário de hoje diz que lhe consta achar-se o barão do Casal próximo dos muros da cidade do Porto, e que (...) havia tomado todas as disposições para atacar a cidade. (...) O Nacional de 8 diz o seguinte: (...) Temos dentro (...) do Porto força mais do que suficiente para o derrotar (...). Por conseguinte, pode estar descansado o Diário que o assassino da Agrela não ousa atacar ou vai receber uma severa lição.

A imprensa estrangeira também era citada amiúde[9], inclusivamente como fonte de apreciação sobre as perspectivas que se tinham externamente do conflito em Portugal e das personalidades portuguesas. O Courrier Français, por exemplo, é citado por causa da sua apreciação de Saldanha: “c’est fou” (21 de Dezembro de 1846). Também são citados, de França, a Revue des Deux Mondes (referida, familiarmente, como Revista dos Dois Mundos, provavelmente porque tinha aceitação e circulação entre as elites burguesas portuguesas), o Journal des Debats e o Constituccionel e, de Inglaterra, o inevitável Times, o Daily News e o Morning Chronicle. Por exemplo, no dia 21 de Dezembro de 1846, O Espectro cita o francês Journal des Debats, que por sua vez cita o Nacional, quer para reforçar autoritariamente a ideia de ameaça à Coroa de D. Maria II, devido à cumplicidade desta com Saldanha, quer para destacar as ameaças à liberdade decorrentes da suspensão da Constituição:

Foi por isto que o Journal des Debats, órgão de Luís Filipe, se viu forçado a enjeitar a obra do seu senhor (...). Eis aqui como aquela folha, em data de 29 de Outubro, se explica. (...) A Rainha entrou num jogo que lhe pode custar a Coroa. O Nacional parece até acreditar que esse jogo pode sair mais caro àquela imprudente princesa. (...) Uma constituição suspensa é uma constituição destruída. A liberdade de imprensa e a liberdade individual não existem em Portugal. Eis o que é claro para nós no golpe de Estado de Lisboa (...).

No dia 20 de Janeiro de 1847, já é o Daily News a ser citado, como pretenso observador imparcial do que se passava em Portugal, e cujo juízo interessava à causa constitucional: “No Daily News de 5 do corrente, lê-se, a respeito de Portugal, o seguinte: “Não obstante o (...) golpe de Torres Vedras, a confiança daqueles que promovem e entram no movimento do partido setembrista não se abalou”.

Em alguns casos, a imprensa estrangeira é referenciada, mas pouco explicitamente: “Num dos jornais ingleses de 28 de Novembro lê-se o seguinte: «O vapor Polymephemus chegou de Lisboa com despachos do coronel Wilde (...)” (26 de Dezembro de 1846).

São variados os casos em que a imprensa estrangeira é citada como observadora independente do que se passava em Portugal, sendo de relevar o interesse com que a revolta Patuleia era seguida no Velho Continente, pelo menos em França e na Inglaterra, mas também a desconsideração com que as virtudes militares nacionais eram vistas “lá fora”:

O correspondente do Times, em 8 de Fevereiro, escrevia para Londres o seguinte:

O conde das Antas foi dar um passeio (...) em direcção a Viana. As últimas notícias dão-no em Barcelos, a três léguas daquela vila, onde o Casal está entrincheirado. Não acredito que o presidente da Junta tenha a ousadia de o atacar, mas será de estranhar que o Casal, que tem força superior, não o vier procurar e oferecer-lhe ataque (...). Será também ainda mais estranho se Saldanha não envia uma forte divisão a marchas forçadas para atravessar o Douro, lançar-se entre Antas e o Porto e assim apanhá-lo entre dois fogos. Mas estas operações são rápidas para a inércia dos portugueses (...). (6 de Março de 1847)

Com os jornais cabralistas, em especial com o Diário do Governo, Sampaio entra num diálogo, contribuindo, dessa forma, para alargar o espaço público à imprensa política, conforme sustentou Habermas (1984). No entanto, por vezes, a discussão obedecia mais a ditames emocionais do que racionais: “E com isto respondemos a esse Diário idiota e pedante que ousa acusar-nos de desconhecermos os princípios constitucionais” (21 de Dezembro de 1846); “cada folha do Diário é uma prova da sua demência” (23 de Janeiro de 1847).

São muitos os ataques ao Diário. Leia-se, por exemplo, o que surge, cheio de maliciosa ironia, no número de 30 de Dezembro de 1846, interpelando até, retoricamente, o leitor:

O Diário (...) atirou-se ao manifesto da Junta do Porto (...). Os comentários da folha oficial são admiráveis. (...) A primeira maravilha é que a soberania nacional reside na Rainha, e daí conclui o Diário que o Rei pode suspender ou destruir a Carta. A segunda maravilha é que a heróica resistência do Porto é fonte de corrupta imoralidade e de desnaturada infâmia.

Já se viu uma pequice destas?

(...)

Já vistes um argumento desta laia?

Um outro excerto ainda mais elucidativo do diálogo mantido entre O Espectro e o Diário do Governo aparece no número de 11 de Janeiro de 1847:

O Diário teve licença, ou dignou-se, de falar no Espectro. Verdade é que se referiu ao Nacional, do Porto, que nos copiou; mas isso mesmo no Diário é bom gosto (...). O Diário é um grande publicista constitucional. O próprio Jornal dos Debates o tem por um bom petisco, e nota a cada passo os erros de doutrina que nos seus discursos pululam (...). Mas é fé que o jornalista francês é quem se engana. Isto no Diário não é erro, é propósito – não proclama o despotismo por ignorância, é de caso pensado e rixa velha

A escola constitucional abstrai da pessoa do Rei (...). Desde 6 de Outubro, inverteu-se esta ordem (...) e o Diário prestou homenagem à verdade. A responsabilidade ministerial acabou, ninguém ouviu falar senão no programa real, na vontade do Rei, no comando do Rei, nos cigarros que o Rei distribuiu aos soldados como caixeiro de José Maria Eugénio na carta burlesca ao Solla, nos fios que a Rainha manda aos seus feridos e nas cordas que faz para os pulsos dos prisioneiros (...). Assim, o Diário horroriza-se com o som da doutrina constitucional. Eis aqui o que ele escreveu (...): “Ouvi o que disse o Espectro em um dos seus números (...). Horrorizai-vos, mas não o temais – que é só Espectro. «O trono da Rainha só pode ser sustentado pelos liberais: a sua Coroa é condicional (...). A um trono despótico, o direito de D. Miguel é melhor.» Eis aqui a religião política desse partido modelo do liberalismo.”

Ouvi (...) povos e ouvi reis. A Coroa da Rainha é condicional, segundo a Carta. (...) Não há senão o direito divino e a soberania nacional. Nós não admitimos o primeiro, e a segunda, que a Carta reconhece, firmou um contrato sinalagmático que se rompe quando uma das partes falta às condições estipuladas. (...) A que vem, pois, o princípio heróico, blasfemo, despótico, que o Diário proclama?

Há, de facto, variadíssimos exemplos, ao longo do Espectro, do duelo verbal entre este periódico e o Diário do Governo. Eis outro excerto, recolhido do número de 13 de Janeiro de 1847:

“Mas perguntamos nós ao fantasma (é ao Espectro): Por onde subiram ao Trono da Rainha os clamores do povo do Minho em Maio passado? Despreza-se a via legal e recorre-se à revolta. Perturbou-se a paz e desacatou-se a autoridade. Violou-se a lei, e a imprensa progressista clamou «cede».”

O Diário pergunta bem, e nós vamos responder: Os clamores do povo do Minho subiram pela boca das espingardas, subiram pela exposição do general paisano que fugiu do Porto declarando que vinha informar Sua Majestade, subiram pela demissão que pediu Costa Cabral e seus colegas, subiram pela representação da maioria parlamentar que prometeu apoiar todo e qualquer Ministério.

(...)

Respondei a isto, publicistas de tarraxa, homens de mais caras do que as de Jano.

Servindo-se da imprensa adversária, alguns ataques de Sampaio são corrosivamente irónicos e até pessoais (note-se, inclusivamente, o irónico recurso ao termo inglês speech):

Também não faremos especial menção das reverendíssimas que fizeram um ao outro o marquês de Fronteira e o Sr. José Castilho – foi a história de dois leigos que disputavam entre si qual deles era o mais asno. O que nos arrebata, o que nos extasia, é o speech do Joãozinho do Peixe. Ei-lo aí, copiado do Diário: “(...) que se fosse mister o seu contingente para ir escalar os muros de Santarém, todos queriam ser escolhidos, levando à sua frente o nobre e valente marquês.” Então? Não é o nosso Joãozinho um perfeito escala muralhas e não fica Santarém um verdadeiro Escalado?

Este brinde acha-se no Diário de 18 do corrente, página 2, coluna 4ª. Tomamos estas precauções, porque do contrário ninguém o creria. (21 de Dezembro de 1846)

Os jornais constituíam, verdadeiramente, abundantes fontes de informações: “Temos periódicos do Porto até dia 9, pelos quais consta que aquela cidade foi declarada em estado de sítio” (16 de Dezembro de 1846). Eis outro exemplo, relevante pelo seu carácter interdiscursivo e pela recolha de argumentos de autoridade junto da imprensa europeia:

Todos viram o que o Diário escreveu sobre o Morning Chronicle de 27 de Novembro, que tem a mania de não acreditar na folha oficial, nem no duque de Saldanha, nem nos seus agentes (...). Mas que diz o Morning Chronicle? (...) Seja qual for a posição exacta das operações militares em Portugal, o certo é que o movimento capitaneado pelo conde das Antas é que tem as simpatias do País. (...) Ora, eis que aí ficam as expressões (...) verdadeiras que fizeram irritar o Diário (...). Na determinação em que estamos de informarmos os nossos leitores do modo por que a nossa presente situação é avaliada lá fora, far-lhes-emos conhecer muito resumidamente as considerações com que alguns dos mais acreditados jornais franceses acompanharam a notícia da contra-revolução (...) de 6 de Outubro. (...) La Semaine (...) diz assim: “A imprensa francesa é unânime em estigmatizar essa política de salteadores (...). O Jornal dos Debates chama-lhe contra-revolução (...). O Nacional duvidou (...) que o Saldanha (...) pudesse vir a ser o instrumento de uma contra-revolução em Portugal. A Reforma sente “que o povo português parasse no meio da sua marcha revolucionária.” (...). O Courrier Français denuncia como primeiro autor da contra-revolução essa camarilha de que o Rei Fernando é chefe, de que o Cabral tinha sido instrumento, e cuja alma é o preceptor Dietz. (...) O Siècle assenta que “o gabinete inglês fará todas as diligências para tornar a pôr Palmela no Ministério. (...) A França (...) assevera que “a opinião pública em Portugal é manifestamente oposta a esse partido que se alcunha de moderado”. (...) Por último, a Ilustração usa de uma linguagem (...) violenta contando os acontecimentos de Portugal (...). (30 de Dezembro de 1846)

São, apesar de tudo, variadas as fontes do Espectro: viajantes, marinheiros, correspondentes, entre outras. Eis vários exemplos, entre muitos que poderiam ser dados:

– “Um indivíduo chegado de Valença informa que aquela praça se achava sitiada pelas forças populares” (16 de Dezembro de 1846);

– “Por pessoa bem informada do que se tem passado em Guimarães consta que as forças miguelistas marcham sobre Braga” (9 de Janeiro de 1847);

– “Por carta de Vila Franca de ontem (15) consta que as forças nacionais entraram em Rio Maior” (16 de Janeiro de 1847);

– “Dizem da mesma vila de Santarém: o conde do Bonfim pernoita hoje nas Caldas da Rainha” (16 de Janeiro de 1847);

– “Escrevem-nos de Santarém em 18 do corrente o seguinte: A coluna do general conde do Bonfim devia sair hoje das Caldas para Torres Vedras (...). O conde de Vila Real segue para Sintra. Saldanha tem as suas forças concentradas no Cartaxo (...). Vimos uma carta de Samora pela qual somos informados ter chegado ali uma força popular (...).” (21 de Dezembro de 1846);

− “Chegou sábado à noite o paquete do Norte. Tivemos por ele várias cartas do Porto” (16 de Fevereiro de 1847).

É interessante notar como, por vezes, entre um acontecimento e a publicação da notícia sobre o mesmo mediava pouco tempo (para a época) ou como Sampaio conseguia receber cartas do Porto pelos navios que, apesar da contenda, continuavam a ligar esta cidade a Lisboa.

Em muitos casos, conforme também se nota pelos exemplos acima transcritos, a identidade da fonte é encoberta pelo anonimato, talvez menos por uma questão de protecção da mesma (sem que se exclua a hipótese) e mais porque, possivelmente, não seria visto como relevante identificá-la. Noutros casos, as informações são imprecisas: “Vão os batalhões para as linhas, segundo dizem” (21 de Dezembro de 1846).

A imprecisão e a falta de confiança nas fontes eram comuns, até quando se citavam outros jornais: “Da Estrela do Norte, periódico do Porto, de 15 do corrente, copiamos o seguinte: (...) Ontem, se bem informados somos, uma dúzia dos nossos bravos (...) pôde escapar-se das trincheiras, e (...) foi desafiar o piquete inimigo (...)”.

Na ausência de repórteres de guerra, as informações da frente de batalha chegavam “por ouvir dizer” ou por correspondência. Muitos desses relatos são facciosos. As cartas da frente, por exemplo, eram escritas pelos próprios protagonistas das acções militares, que desejavam ocultar os seus fracassos e justificar e engrandecer os seus feitos. Entre os vários exemplos, pode recolher-se o seguinte. Trata-se de uma carta publicada no primeiro número do Espectro, de 16 de Dezembro de 1846:

Exército de operações – 2ª coluna

Ill.mo e ex.mo sr: Na forma do que ontem comuniquei a V. Ex.ª, marchei sobre esta vila pelas 5 horas da tarde. Os facciosos retiraram ontem à noite, e eu não tendo tido essa notícia no caminho, só entrei hoje, depois de dia claro. O ilustre conde de Vila Real e os bravos sob o seu comando sustentaram Ourém como dignos defensores da causa em que nos achamos empenhados. Constou-me no caminho que vinte e dois homens de cavalaria que abandonaram as fileiras do inimigo marcharam na direcção de Torres Novas, para se apresentarem. Não os encontrámos. Asseverou-me pessoa digna de crédito que marcharam nessa direcção. Acabo de ordenar que visto o inimigo ter cavalaria bastante, viessem imediatamente unir-se-me, e com efeito vieram para aqui. Conservo comigo o conde de Vila Real e os bravos do seu comando. (...) Quartel general em Vila Nova de Ourém, 5 de Dezembro de 1846 – Ill.mo e ex.mo sr. Conde das Antas – Conde do Bonfim

Para além dos aspectos já referidos, em matéria de fontes é interessante notar, na missiva escolhida como exemplo, que os próprios correspondentes se referem a outras fontes, como as pessoas dignas de crédito.

O telégrafo também era usado, mas parcamente, e as notícias que se obtinham por essa via, regra geral, eram fruto da actividade militar:

Do Nacional de 19 de Dezembro

P.S. – Boletim do telégrafo do quartel-general do Porto 19 de Dezembro de 1846 – A S. Ex.ª o ministro da Guerra – Do administrador do concelho de Oliveira de Azeméis. – Esta noite aclamaram D. Miguel em Oliveira de Azeméis, mas os revoltosos foram batidos e se retiraram, deixando três mortos e 14 prisioneiros (...).

Os próprios documentos do Governo servem de fonte. Por exemplo, no número de 2 de Janeiro, para relembrar que a derrota de Torres Vedras não tinha derrotado a rebelião, cita-se um relatório do Governo para a Rainha, datado de 24 de Dezembro, no qual se lê que “em uma grande parte das povoações do Reino, a revolta e a anarquia têm de tal modo transtornado a ordem pública, que os meios ordinários de repressão são ineficazes (...)”. Noutros números, cita-se a correspondência apreendida ao inimigo, como acontece no número de 23 de Janeiro de 1847. Da carta transcrita nesse número constata-se que os cabralistas tinham “escassez de meios” no Alentejo.

4.2.3 Como fala O Espectro das coisas de que fala?

O Espectro foi um jornal político, partidário do “grande partido constitucional” e legitimador da acção militar “das forças constitucionais do conde das Antas” (Espectro, 11 de Janeiro de 1847) na sua luta contra a ilegítima suspensão da Carta Constitucional e contra a nomeação directa, pela Rainha, de um Governo (o de Saldanha) não legitimado pelo sufrágio “popular”[10] (coisa que, apesar de tudo, Costa Cabral tinha buscado), Governo este que teria “só o apoio dos soldados” (19 de Dezembro de 1846). Essa situação, em que “o povo é calcado” (9 de Janeiro de 1847), configuraria a perversão do sistema constitucional e era vista por Sampaio como um regresso ao despotismo e à tirania, algo inaceitável para os liberais, para quem, inclusivamente, o “direito” de D. Miguel a um trono com essas características seria “melhor” (19 de Dezembro de 1846). E acrescenta: “Se o despotismo há-de imperar, o seu ceptro pertence a D. Miguel. A Rainha pela Carta deixa de o ser apenas destrone a Carta.” (6 de Janeiro de 1847). Razão, portanto, para António Rodrigues Sampaio acusar o Governo de Saldanha de “não ser dos nobres nem do Povo” (26 de Dezembro de 1846) e de resultar de um acto ilícito e anticonstitucional (“a Carta não foi só violada, foi destruída” – 26 de Dezembro de 1846) de uma Rainha que, ao praticá-lo, teria acabado por “hostilizar a nação” e por se declarar “absoluta” (9 de Janeiro de 1847). “O Povo respeita a Rainha, respeita o Trono, mas engana a Rainha e é inimigo do Trono quem conclui daí que, declarando-se a Rainha em coacção, a Sua coroa está segura”, escreve Sampaio, no número de 19 de Dezembro de 1846, sugerindo a possibilidade de afastamento da Soberana devido aos ardis que lhe teriam sido armados pelos cabralistas. E apela directamente aos cidadãos: “Cidadãos! Sois da Pátria e não do Ministério. Viva a causa nacional” (23 de Dezembro de 1846).

As comparações entre o despotismo assumido de D. Miguel e o alegado despotismo encapotado de D. Maria II são feitas amiúde por Sampaio e servem para denegrir sistematicamente a Soberana, acusada de ser ingrata para os liberais que lutaram por ela para pôr fim ao reinado de D. Miguel. A 4 de Janeiro de 1847, por exemplo, o jornalista escreve o seguinte no seu Espectro:

D. Miguel atulhou as prisões; sua sobrinha atulha as prisões e as presigangas.

D. Miguel enforcou; sua sobrinha fuzila.

D. Miguel aniquilou a representação nacional; sua sobrinha fez o mesmo.

D. Miguel reacendeu a guerra civil; sua sobrinha também.

D. Miguel criou alçadas; sua sobrinha criou juízes de comissão, que significam alguma coisa de pior.

Se a comparação é favorável para alguém, é para D. Miguel.

D. Miguel foi perjuro como a sobrinha – jurou a Carta para a rasgar, aceitou a mão dela para a repudiar. Mas (...) não foi ingrato.

Enforcou, sim, mas os seus inimigos; sua sobrinha fuzila e enforca os que a colocaram no Trono.

A guerrilha miguelista, por seu turno, é acusada de ter por chefe “um estrangeiro, porque não acha no País uma espada para o defender” (6 de Janeiro de 1847).

Sendo O Espectro um jornal político, destinado a mobilizar a Nação e a apoiar as “armas nacionais” contra os “exércitos ministeriais” (16 de Dezembro de 1846), nele informação, análise e opinião mesclam-se, estando a primeira ao serviço das últimas. É, portanto, um jornal assumidamente doutrinário. As informações são sempre enquadradas, por vezes com ironia, outras vezes com acusações pessoais, sugerindo-se significados para as mesmas, conforme se nota logo no primeiro número, de 16 de Dezembro de 1846:

Os erros da administração Cabral trouxeram-nos a crise financeira e com ela a Revolução. (...) Não falamos por conjecturas – documentos dos nossos adversários são o fundamento das nossas asserções. O conde do Tojal, em Dezembro passado, consultava o banco sobre a necessidade de introdução de moeda estrangeira (...). Esta consulta e a resposta do banco no sentido afirmativo caracteriza o estado daquela época de delícias.

A 28 de Janeiro deste ano, dizia a direcção (...), ou antes, o senhor Roma, alma e cabeça da agiotagem: «A direcção via o país caminhando nesta estrada (na do crédito), mas circunstâncias que não se poderiam evitar e outras que eram consequência de erros cometidos, vieram opor uma barreira a este progresso (...).»

A doutrinação política constitucionalista, pedagógica, ocasionalmente também transparece das páginas do Espectro. Por exemplo, referindo-se ao papel do Rei numa Monarquia Constitucional, António Rodrigues Sampaio esclarece: “nesse governo, o Rei não governa, não faz programas; os ministros é que os fazem.” (4 de Janeiro de 1847) Ou ainda, entre muitas outras passagens que poderiam servir de exemplo: “A Constituição é o modo de ser da sociedade. Estão ali consignados os direitos e deveres recíprocos de governantes e governados.” (11 de Janeiro de 1847) Ou até, citando Montesquieu:

Ao despotismo, convinha-lhe ser silencioso. Montesquieu escreveu: “Num estado livre, é indiferente que se pense bem ou mal. O caso é que se pense.” O famoso publicista acreditava, com razão, no sentimento da maioria e no poder da discussão. (Espectro 13 de Janeiro de 1847)

O valor central do Espectro é a defesa da Liberdade, enquanto “valor conjunturalmente ameaçado” (CARMO REIS, 1997, p. 467), tal como se explicita nesse mesmo primeiro número, de 16 Dezembro de 1846, quando se anuncia que o jornal se baterá pela “justiça”, “liberdade” e “igualdade”. É a defesa desse valor que leva Sampaio a ter de explicar a contradição que resultava da coligação conjuntural, mas contranatura, entre setembristas e miguelistas nas forças patuleias: “não vai além da necessidade instintiva em que ambos se vêem colocados de guerrear o inimigo comum” (9 de Fevereiro de 1847).

Escreveu António Rodrigues Sampaio numa “Advertência” inserida no primeiro número do Espectro:

O Espectro vai substituir o Eco de Santarém. (...) O Espectro é a sombra das vítimas que acompanhará sempre os seus assassinos e opressores (...), esse fantasma que não deixa o rico no seu palácio nem o pobre na sua cabana (...).

Apesar do tom contemporâneo de alguns dos seus textos, nesse excerto, como em muitos outros, é interessante notar que Sampaio não hesita em misturar, metafórica e liricamente, às vezes comparativamente, o sentimento e o melodrama, a beleza e o horror, apelando às emoções, fazendo, portanto, a ponte com os ideais literários do Romantismo e quase excluindo a razão, a calma, a seriedade e a ponderação próprias do Classicismo. É assim que se justifica a passagem “O Espectro é a sombra das vítimas” e, igualmente, a própria epígrafe do jornal: “Hórrido espectro me atormenta em sonhos.” Logo no primeiro número, de 16 de Dezembro de 1846, a abertura do artigo de fundo documenta a asserção anterior:

A populosa Lisboa apresenta o aspecto da morte. As suas ruas como as de Sião, acham-se desertas, os seus templos vazios, os seus espectáculos interrompidos, as suas transacções comerciais paralisadas, os seus habitantes entristecidos, e um murmúrio longínquo, anunciando algum grande abalo social – esta confusão, esta celeuma que precede os grandes furacões, e que no sauve qui peut exprime o estado de consternação em que jaz submergida.

Outro exemplo que poderia ser dado surge no número 6 do Espectro, datado de 28 de Dezembro de 1846. Sampaio redige o seguinte:

O Espectro! Oh! Não será um só, serão muitos. Levantar-se-ão todas as vítimas, a muitas das quais nem lhe terá sido concedida uma sepultura, essas ossadas dispersas em tantos campos de batalha, esses mártires de todas as crenças, e farão as suas imprecações. Entrarão, primeiro, os espectros de Torres Vedras, e dirão: Morremos todos por via de ti, que te dizes Rainha. Éramos populares e defendíamos as prerrogativas da Coroa, os interesses do Povo a quem chamas teu. Morrendo te aclamámos e tu exautoraste-nos e tu mandaste-nos assassinar. Ave Caeser, morituri te salutant!

O texto anterior, lardeado da famosa expressão latina que os gladiadores dirigiam ao Imperador de Roma tem, como outros, aquilo que Oliveira Martins (1979, p. 192) classificou como “um tom de sermão” e que Carmo Reis (1997, p. 470) justifica com a necessidade de permitir a leitura pública do jornal perante assembleias de analfabetos a quem era necessário insuflar ânimo. Escrito no rescaldo da mal sucedida batalha de Torres Vedras, ecoando algum desespero, o texto também é politicamente bastante agressivo para com D. Maria II, algo que é constante no jornal, já que a Soberana é sucessivamente acusada de ser co-responsável pelo golpe da Emboscada de 6 de Outubro, de dar cobertura a Saldanha e aos cabralistas e, já no final da guerra civil, de permitir a ingerência estrangeira nos assuntos internos do Reino. No número de 24 de Fevereiro de 1847, Sampaio sugere mesmo a abdicação da Soberana por ter abandonado a sua inviolabilidade e se ter imiscuído “na arena dos partidos”.

As expressões em latim e francês que ornamentam muitos dos textos de António Rodrigues Sampaio, incluindo os anteriores, são uma expressão da sua erudição, que ele teria prazer em propagandear, e que indicia, indirectamente, que também eruditos, ou pelo menos instruídos, seriam os seus leitores.

Como estruturava Sampaio os seus textos? Usava, sobretudo, um recurso. Partia do caso geral, de uma ideia geral, para depois incidir no particular, quase como uma pirâmide, ao contrário do que normalmente se faz na reportagem contemporânea, em que se parte do caso particular para se abrir para o caso geral. Recorre, também, persistentemente, a toda a já referida panóplia de recursos expressivos da figurativa oratória romântica (metáforas, comparações, hipérboles, adjectivação, exclamações, expressões populares...). Leia-se o seguinte exemplo, extraído do Espectro de 19 de Dezembro de 1846:

Falai em tudo verdade (...). Nestas horas tremendas (...), nestes momentos críticos em que se decide a sorte das nações, nestas crises assustadoras em que ninguém sabe o que será no dia de amanhã, é preciso ser franco e leal, é preciso falar como se estivéssemos na presença de Deus a dar-lhe conta de todos os nossos pensamentos e acções. (...) Portugal está retalhado em bandos – aqui aclama-se o governo de Lisboa, ali a Carta e a Rainha, acolá o proscrito de Itália. O Governo de Lisboa representa uma facção insignificante, devassa e perdida; a Junta do Porto representa o País em massa, todas as suas ilustrações, a reunião de diversas classes, a colecção de todos os grandes interesses. D. Miguel representa o cadáver do velho despotismo com a opa rota e ensanguentada, erguendo-se a custo do seu túmulo e agarrando-se à lousa que lhe vai para sempre servir de campa.

O excerto anterior demonstra, igualmente, o apego à ideia de verdade. Sampaio vê-se a si mesmo, apregoa-se a si mesmo, como a voz da verdade, que encara como missão (“O Espectro não tem paixões mundanas – a sua missão é dizer a verdade”, 28 de Dezembro de 1846). Quiçá, vê-se a si mesmo como verdadeiro, cumprindo nas suas palavras todo o ideal de verdade da historiografia clássica. No mesmo excerto, nota-se, em acréscimo, o recurso de Sampaio, que dominava algumas das técnicas discursivas da propaganda, a outra arma retórica: o inimigo é sempre diminuído e caluniado. Pouco mais é do que uma “facção insignificante” e ainda por cima “devassa”.

Em vários outros textos de Sampaio, nota-se que o autor parte de conceitos universalizáveis, como a ideia de liberdade, para depois se posicionar sobre eles, em oposição aos cabralistas. Fá-lo recorrendo amiúde, conforme já se referiu, a linguagem figurativa: metáforas, comparações, hipérboles, adjectivação, exclamações, expressões populares... E não raras vezes, chega ao insulto:

O despotismo (...) é uma realidade. Hipócrita e humilde antes da peleja, ergue-se desaforado depois dela (...). Estúpido e feroz (...) não nos deixa adormecer! Ainda bem, que não nos ameiga com esperanças falazes! Não promete, ameaça. Foi muito cedo que largou a máscara. Iludiu-se o fanfarrão. (2 de Janeiro de 1847).

A depreciação simbólica do inimigo é, assim, usada como uma arma de propaganda. Essa depreciação ocorre, paradoxalmente, mesmo quando o inimigo sai vitorioso:

Em 6 de Outubro ameaçou; a resistência armada deixou-o indeciso. Pediu forças (...) e decretou fuzilamentos. Mais tarde, envergonhava-se dos seus actos (...). Vencida a acção de Torres Vedras, ei-lo aí se pavoneia ufano com todas as suas galas, com toda a sua índole sanguinária. (2 de Janeiro de 1847)

Também é vincada permanentemente no Espectro a oposição entre o “bando faccioso que domina Lisboa” e a “Nação Portuguesa” ou “o Povo” (a revolta é “popular”), conforme surge no número de 28 de Abril de 1847. Obviamente, Sampaio vê-se a si e à sua facção como verdadeiros e únicos intérpretes do sentir da Nação e garantes da sobrevivência da mesma. Perspectiva, igualmente, a Junta patuleia como a instituição que “representa o País, todas as suas ilustrações, a reunião das diversas classes, a colecção de todos os grandes interesses” (19 de Dezembro de 1846). Esta é, igualmente, uma táctica discursiva de propaganda. Nós somos mais, temos a razão pelo nosso lado, somos pela unidade nacional, somos o Povo, somos a Nação; eles são os outros, são poucos, um bando, e desafiam a unidade nacional. Os “outros”, diga-se, são cumulados de injúrias em todos os números do jornal.

Outro recurso retórico usado abundantemente por Sampaio é o relato de situações concretas, capazes de funcionar como prova corroborativa de princípios gerais previamente referidos. O relato de situações concretas consegue, ainda, emprestar ao discurso a marca da veracidade, da verosimilhança, quando não mesmo a da verdade, embora, por vezes, seja aposto a cada situação concreta que é relatada um enquadramento susceptível de validar o ponto de vista que o autor quer fazer passar no texto, e que, no caso citado, reside na depreciação e denúncia do inimigo pela evidência provada da sua injustificada crueldade.

A tirania tem ostentado todos os seus furores contra os desvalidos. Os prisioneiros de Torres Vedras foram metidos no pontão (...). O Saldanha concedeu aos oficiais o saírem de Torres Vedras com as suas bagagens. Esta concessão foi irrisória (...). Metidos no porão dum navio, estiveram uns poucos dias a feijão e água suja – não se lhes deixava entrar nada de fora!!! (2 de Janeiro de 1847)

Em matéria de denúncia com prova, nada melhor, inclusivamente, do que transcrever ou citar os documentos do inimigo, a correspondência que lhe era apreendida e os jornais que lhe eram afectos, virando o que é dito contra quem o profere. É o que acontece, por exemplo, no número do Espectro de 11 de Maio de 1847, numa altura em que se discutia a intervenção estrangeira na guerra civil, combatida energicamente por Sampaio, que defende vigorosamente a Independência Nacional e a acção revolucionária da Junta do Governo Supremo do Reino (para ele, deveriam ser os portugueses a resolver os seus diferendos internos). O jornalista escreve:

Vamos transcrever alguns trechos de um papel que por aí corre, espalhado pela gente do Governo, no qual se lêem algumas coisas curiosas. Diz ele: «Tratou-se com a Inglaterra uma intervenção que a serem exactas (como cremos) as informações que temos dela, não pode ser aprovada (...). E tratou-se com a Inglaterra (...), rejeitando-se (...) o auxílio (...) que nos oferecia a Espanha. (...) Finalmente, é de absoluta necessidade que, se os rebeldes se sujeitam, tudo esteja prevenido para que não possam subtrair-se à execução das condições a que foram obrigados, e se não se sujeitam, que estejam definitivamente reguladas as convenções estipuladas com a Inglaterra, para os reduzir, imediatamente, à obediência da Rainha.»

Seguidamente, com profunda ironia, Sampaio oferece a interpretação enquadrante da transcrição dos jornais afectos ao Governo cabralista: “Eis a conclusão dos valentes – venha a Inglaterra. Antes os liberais, já que os cabralistas não pedem! E apesar de serem desonrosas as propostas, aceitam-nas!” (11 de Maio de 1847).

Noutro exemplo, a 4 de Maio de 1847, transcreve-se uma carta entre o coronel Wilde e o ex-conde de Vinhais, transcrita por um jornal cabralista. De facto, interessantemente, ao lutar pelas suas causas, o jornal de Sampaio não hesita em “dialogar” com o Diário do Governo e outros jornais cabralistas. Vira o que eles escrevem contra eles mesmos. A discussão política tornava-se cada vez mais pública ao transferir-se para o palco da imprensa. Daquela missiva, diz Sampaio: “não contém coisa que seja verdade”. E acrescenta, acidamente: “põe em dúvida a capacidade intelectual do signatário”. Seguidamente, o jornalista diz que tentará repor a verdade dos factos, narrando a sua versão, a qual enquadra com nitidez e sem admitir réplica: “a história passou-se assim”. E apresenta, seguidamente, documentos de prova, virando o feitiço contra o feiticeiro: “Aí ficam os documentos oficiais confrontados”.

Os ataques verbais de Sampaio ao inimigo cabralista incluíam, amiúde, ataques aos próprios jornais afectos ao Governo. Por exemplo, a 14 de Maio de 1847, o Espectro refere com ironia e profunda comicidade os exageros do Diário do Governo, periódico ao serviço do cabralismo cartista:

O Diário quer restabelecer os factos (...) e para isso desmente o conde de Vinhais. Este dissera (...) que havia tomado uma peça de artilharia; o Diário tomou duas no escritório da redacção; e fez bem; que ali tomam-se com menos risco.

A adjectivação, que impregna de subjectividade e desmesura muitos dos juízos e das avaliações de Sampaio, também pode ser lida no âmbito da imersão nos valores individualistas românticos a que atrás se fez referência: “o ex-duque carbonário, republicano, absolutista, beato e hipócrita, (...) tudo isto tem sido em diferentes tempos”, escreve, por exemplo, referindo-se ao marechal Saldanha, no Espectro de 13 de Fevereiro de 1847.

As sentenças, os juízos, as avaliações, por vezes sintéticas, contribuem, igualmente, para, enquadrando os textos, propor ao leitor um ponto de vista pronto a consumir, justificativo da causa Patuleia: “A insurreição contra um poder ilegítimo é legítima. A Corte suspendendo a Carta em 6 de Outubro, não podia esperar do povo senão a guerra.” (11 de Maio de 1847) O mesmo princípio subjaz, igualmente, ao comentário enquadrante que se mescla em certas informações, como acontece no seguinte exemplo, que dá conta da adesão da Madeira à revolta: “A ilha da Madeira pronunciou-se a favor da causa constitucional. A Flor do Oceano não podia ficar indiferente nesta luta de sangue, não podia deixar de correr a quinhoar do seu contingente de glória na restauração das liberdades pátrias.” (8 de Maio de 1847)

As comparações, nomeadamente aquelas que acentuavam o contraste entre o inimigo e os rebeldes também foram profusamente usadas por Sampaio. Logo no primeiro número do Espectro, de 16 de Dezembro de 1846, existem numerosos exemplos, entre os quais, a título ilustrativo da tese anterior, se escolheu o seguinte:

o despotismo já não ataca, recua, tomou a ofensiva e retira na defensiva. Os exércitos ministeriais, bem municiados, bem providos de tudo, tremem diante das forças populares, que alcunham de rotas, a quem escasseiam todos os meios, e às quais somente sobra entusiasmo, galhardia e amor à Pátria.

Diga-se que “O Espectro, escrito quando a guerra civil andava mais acesa (…), não era nem podia ser um jornal de paz e conciliação. A sua linguagem era violenta, apaixonada, enérgica, severa, talvez mesmo injusta, às vezes.” (TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859, p. 96). Afonso Praça (1979, p. 44) diz dele que era “militância pura, servida pela imaginação e pela coragem de um guerrilheiro (...), a voz mais destemida em defesa dos princípios democráticos e a mais enérgica acusação às forças reaccionárias (...), a voz clandestina de A Revolução de Setembro”.

Em concreto, o jornal propunha-se ser voz “de todos os corações generosos em que estão radicados os princípios da justiça, da liberdade, da igualdade” (16 de Dezembro de 1846), o que revela a sua feroz filiação na ala esquerda do liberalismo. De alguma forma, era um jornal que apregoava uma causa popular, visível nas múltiplas invocações do “povo” – embora na realidade o povo que Rodrigues Sampaio teria em mente, conforme a interpretação já referenciada de Victor de Sá (1984, p. 37), seria o burguês, base dos seus leitores. É com base nesse enquadramento que devem ser lidos os apelos de Sampaio à revolta popular contra o despotismo: “O Espectro (...) anunciará aos povos da terra a ressurreição dessas leis bárbaras e obsoletas (...). Povos, considerai-vos todos culpados, entregai o pescoço ao cutelo do algoz! (...) Povo, em tais casos, a insurreição é o mais santo dos deveres” (2 de Janeiro de 1847). A questão, registe-se, é mesmo colocada em termos universais – a luta do “Povo” português seria uma luta apoiada pelos “povos” do mundo. Essa é, aliás, uma das regras da propaganda: o “nosso” lado tem amigos, não está isolado; os “outros” não os têm ou, quando os têm, não são recomendáveis.

A revolta anticabralista dos portugueses patuleias seria, assim, perfeitamente justificada, conforme apregoa Sampaio: “A insurreição não é conquista – rebenta espontaneamente apenas o povo fica desafrontado da força opressora.” (Espectro, 16 de Dezembro de 1846).

A insinuante evocação do povo burguês é notória, inclusivamente, na enorme fulanização do discurso de Sampaio: muitas das matérias que redige são individualizadas, referindo-se a outros burgueses e nobres da cena política e militar e ainda à Soberana. Leia-se, por exemplo, a seguinte passagem: “A Rainha deve muito ao conde de Melo; o conde de Melo não deve nada à Rainha. (...) Podia aclamar quem quisesse sem cometer um acto de ingratidão para com aquela que o exautorou. Se não o faz, se não o fez, é porque a sua honra o obriga a ser sempre liberal.” (Espectro, 21 de Dezembro de 1846) Ecoando valores liberais, mas, simultaneamente, um conceito da honra ainda ancorado ao Portugal Velho, a passagem anterior, como muitas outras, evidencia, efectivamente, o sentimento individualista de Sampaio e a sua crença nas pessoas como sujeitos da história.

Há que dizer, no entanto, que Carlos Carrasco, Cecília Cunha e Joaquim Pintassilgo (1983, p. 63) oferecem uma interpretação alternativa sobre os apelos de Sampaio ao “Povo”:

as inúmeras referências ao “Povo” são direccionadas para evocações de “causa”, “vontade”, “sentimento”, “generosidade”, “virtuosidade”, “moralidade”, etc. O facto de se defender uma “causa popular” tem sobretudo a ver com a grandeza dos princípios subjacentes a uma luta imediata, presente [a Guerra Civil da Patuleia], por si só justificativa e válida. A aderência de um povo (o português) à guerra da Patuleia é integrada naquilo a que podemos chamar uma visão universal dos povos, sem o recurso a motivos intrínsecos.

Na sua ânsia revolucionária, o Espectro chegou a atacar politicamente a Chefe de Estado, a Rainha, e a Corte, embora também a tivesse defendido noutros momentos. Por muito tempo, já mesmo depois da situação ter normalizado, isso valeu a António Rodrigues Sampaio a oposição da Casa Real, incluindo dos Sucessores de D. Maria II, D. Pedro V e D. Luís, à sua nomeação para cargos políticos. Paradoxalmente, n’O Espectro, Sampaio condenou o uso da linguagem desbragada do mais violento dos jornais clandestinos da Patuleia, O Popular, e chega a elogiar a conduta moral da Soberana, embora não a política. Escreve, efectivamente, Rodrigues Sampaio no Espectro de 26 de Fevereiro de 1847:

Apareceu (...) O Popular. O Espectro faltaria à sua missão se ficasse silencioso à vista da linguagem que nele se emprega. Magoou-se-nos o coração ao lê-lo. Quiséramos que a mais santa das causas fosse também a mais generosa e a mais pura e que a soberania da nação não aprendesse nos delírios da soberania da corte o exercício dos seus direitos. (...) O Paço dos Reis é um foco de corrupção política, mas não o é de corrupção moral. Não há Rainha mais virtuosa como esposa, nem como mãe de família. A Sua casa pode servir de exemplo a todas da Europa! (...) Assim pudéssemos achar que louvar no funcionário como achamos no indivíduo.

Noutro número do Espectro, o de 24 de Junho, também defende a Soberana, vincando, interessantemente, a necessidade de defesa da reserva da vida privada e familiar:

Lemos no Brado da Lealdade uma acusação que nos cobriu de vergonha. Diz o papel cabralista que a família do Rei está devassando o paço, que o esposo da Rainha se vai enchendo de vícios (...). Os ministros espalham a mãos largas estes infames papéis.

O partido popular, a quem a Rainha persegue, contra o qual mandou vir forças estrangeiras, respeitou sempre a vida privada da Real Família. Não merece ser Rainha depois que chamou contra nós os aliados, mas não merece ser caluniada. O Espectro não a pode amar, porque não pode amar a tirania. Mas é preciso ser justo e clamar que o Brado da Liberdade é um infame e que os ministros que o espalham são uns traidores e aleivosos.

Aliás, de acordo com Teixeira de Vasconcelos (1859, p. 97-98), a Chefe de Estado teria compreendido as manifestações de Sampaio em alguns artigos que veementemente lhe diziam respeito, mas que o autor d’O Espectro teria restrito às considerações de ordem política:

Nesses tempos, a injustiça e a raiva (…), não sabendo separar a entidade política da Rainha das suas qualidades pessoais, atacaram com violência o que nela havia de mais digno de respeito. Sampaio, sem atenção à sua situação de foragido e à sorte com que ele e os seus amigos podiam contar se fossem vencidos, não hesitou em tomar a defesa da Soberana e em proclamar suas (…) virtudes (…). Muitos o acusaram depois por ter escrito contra a Rainha. Ninguém contudo se lembrou mais das palavras justas, mas generosas, com que ele a defendera, senão a própria Soberana.

Diga-se, inclusivamente, que aquando da morte da Rainha, a 15 de Novembro de 1853, Rodrigues Sampaio, que já tinha abraçado a causa da Regeneração e moderado o seu posicionamento político, não hesitou em incorporar-se no cortejo fúnebre da Monarca.

A 30 de Junho de 1847, a Convenção de Gramido, imposta pela acção da Quádrupla Aliança[11], pôs fim à guerra civil. A intervenção estrangeira não era, porém, do agrado de Sampaio, que, sendo nacionalista, a combateu energicamente, culpando o poder – incluindo o poder Real – pelo que tinha sucedido. Por isso, pressentindo o desenlace da Patuleia, escreve o seguinte no Espectro de 7 de Junho de 1847: “Heróis de 1640, oh! Se surgísseis das vossas campas e vísseis o que nós vemos. Segunda vez de pejo morreríeis!” A 3 de Julho de 1847, escreve, ainda, controversamente, no jornal:

A Corte, o Ministério, o Rei, oh, tudo isso desapareceu. Não caíram às nossas mãos que no-las ataram, mas sumiram-se na voragem de um protocolo. Isso que aí se chama Rei é um espantalho, os ministros são os lacaios de Lord Palmerston.

3 de Julho foi, efectivamente, a data em que António Rodrigues Sampaio deu O Espectro por findo, nele inserindo o seguinte e polémico comentário, no qual parece antever o fim da Monarquia – embora, na realidade, apenas quisesse interrogar-se sobre os reais propósitos da intervenção estrangeira e culpasse a Monarca por esta interferência externa nos negócios do Reino, o que, na prática, tinha retirado o poder à Soberana:

A missão do Espectro está por agora concluída. Não que o sol da liberdade nos aquente, não que o despotismo exalasse o último arranco, não que a luz da verdade alumie o tecto da habitação dos tiranos, não que o povo seja livre e contente, mas entrando numa situação nova, caindo à roda de todos nós tudo quanto nos cercava, vendo desaparecer um trono de sete séculos, uma nacionalidade tanto ou mais antiga do que ele, já não temos objecto que defender, nem inimigo a quem atacar.

Sat patriae priamoque datum.

Refira-se que Carlos Carrasco, Cecília Cunha e Joaquim Pintassilgo (1983, p. 63) explicam, interpretando o mesmo excerto de texto, que a concepção de Sampaio sobre o conceito de nação já não é Romântica, mas sim contemporânea:

Sampaio, ao utilizar o conceito de nação, fá-lo, sobretudo, a partir de questões de ordem política, em torno de valores (...) contemporâneos, como a Liberdade, o Constitucionalismo, o Sistema Representativo, etc., enquanto a maioria dos autores românticos recorre a aspectos de ordem etnográfica e tradicional.

Registe-se que no editorial desse número final, Sampaio promete que o Espectro renasceria se os aliados da Quádrupla Aliança não fizessem retornar o país à normalidade constitucional: “Dizem que tudo vai entrar na ordem regular. Esperai. Se os aliados forem sinceros, podereis ainda reconquistar a vossa liberdade. (…) Se ficarmos eternamente sem garantias, o Espectro ressurgirá”.

Poder-se-á, feita esta leitura ao Espectro, considerar Sampaio um produto do Romantismo? Carrasco, Cunha e Pintassilgo (1983, p. 64-65) respondem, pertinentemente, assim:

O que importa reter é que mais do que um intelectual empenhado em defender e difundir um sistema de valores taxativo, o autor d’O Espectro se torna um receptor perante esse sistema emitido; ele recebe todo um conjunto de influências e, como militante empenhado num combate, cunha uma forma de se dirigir a um público, e assim se transforma, por sua vez, em emissor, adoptando um género literário. O jornalismo é a sua maneira de expressão, mas é também parte integrante duma vasta maneira de expressão do nosso Romantismo (...).

Pode asseverar-se, face ao que foi dito, que Sampaio, autor do Espectro, é, efectivamente, produto do meio, embora, enquanto sujeito histórico, tenha sido também um dos seus principais produtores, desde logo devido à relevância da sua acção política através do jornalismo. No Espectro e no Eco de Santarém, ele conseguiu fazer passar o ponto de vista dos patuleias, ao enquadrar os assuntos do ponto de vista que interessava aos revoltosos, recorrendo aos discursos retóricos próprios do Romantismo, decerto instilando ânimo nos seus correligionários – mesmo nas horas de infortúnio (como a derrota de Torres Vedras) – e irritação, desconforto e quando não desânimo nos seus adversários.

É interessante notar, ainda, a forma como Sampaio aplica enquadramentos aos acontecimentos, não hesitando em recorrer, forçadamente, a argumentos históricos:

Coincidência histórica

No reinado de D. João II de Portugal, são bem sabidas as mortes de D. Fernando, duque de Bragança, de D. Diogo, duque de Viseu, e as prisões de muitos fidalgos.

Na última cena desta tragédia teve um distinto lugar de quadrilheiro o capitão de ginetes Fernão Martins Mascarenhas, ascendente da actual Casa de Fronteira.

No século XVIII, D. José I, descendente do duque de Bragança, D. Fernando, mandou estrangular o duque de Aveiro, descendente de D. João II, e no século XIX o marquês de Fronteira é intendente-geral da polícia em Lisboa!!! Acaba por onde começou, porque não tem sucessão masculina. (19 de Fevereiro de 1847)

Finalmente, há que atentar na informação. Apesar de doutrinário, continuadamente o jornal traz notícias. Algumas são enquadradas. Outras, não. São secas e objectivas e, por vezes, curtas, como um lead. Nada mais concreto, claro e sintético do que dizer, por exemplo, conforme surge no número de 2 de Janeiro de 1847: “A brigada do sr. César de Vasconcelos está em Abrantes”; ou: “os miguelistas arrebataram, em Barcelos, o cofre onde estava depositado o dinheiro dos órfãos, entre outros dinheiros mais. Foi uma avultada quantia em contos de réis” (6 de Janeiro de 1847); ou ainda: “Desertaram da praça de Valença e vieram apresentar-se às autoridades de Viana cinco soldados do batalhão naval.” (6 de Janeiro de 1847). Muitas notícias, porém, eram imprecisas, e o tom do discurso do Espectro indicia, precisamente, essa incapacidade de atestar que o que se diz é verdade: “Ao conde das Antas tem-se reunido uma grande parte das forças de Torres Vedras. Há quem eleve este número a 19 mil. Não sabemos a certeza.” (2 de Janeiro de 1847)

Em alguns casos, as notícias do Espectro assemelham-se a reportagens, pelo seu carácter vivido das situações relatadas. Mas esses textos provêm maioritariamente de correspondentes. Sampaio reservava-se para o artigo de fundo e para os comentários às informações. De qualquer modo, dado o interesse testemunhal do advento da reportagem nos jornais portugueses oitocentistas, eis um exemplo, que começa, conforme Sampaio também fazia, por um “nariz de cera” generalista, a partir do qual se relata a situação, seguindo uma ordenação cronológica dos factos, e que encerra com um juízo, que funciona como conclusão, e que, mais uma vez, denigre o inimigo cabralista. Deve notar-se, ainda, no mesmo exemplo, o significativo aproveitamento do rumor como matéria informativa, comum na época:

Do Nacional de 23

Braga nunca viu uma cena tão horrorosa como aquela que hoje se lhe apresenta.

Foi no dia 18, já muito tarde, quando aqui constou da marcha do Casal sobre esta cidade. Espalhou-se logo que McDonnell não se batia porque o barão de Agrela lhe assegurara que o não hostilizava, e parece que o medianeiro entre estas notabilidades fora o cabralista Freitas Costa. Mas esta esperança cedo desapareceu porque os chefes das turbas miguelistas pediram altamente combate, e McDonnell não teve remédio senão ceder aos desejos do seu povo e mandou logo recomeçar o entrincheiramento de algumas ruas, tanto do lado do Porto como de Guimarães.

Seriam 11 horas, aproximaram-se as forças do Casal, e um vivíssimo fogo rompeu de ambos os lados. Os miguelistas batiam-se com muito valor e não teriam cedido o seu terreno se não houvessem sido cortados pela cavalaria, que tendo tomado por uma quelha, foram sair a São Pedro de Maximinos, e então apanhado os seus contrários pela retaguarda, não só lhes causou grande confusão e desordem nas fileiras, mas também lhes fez uma mortandade espantosa. Depois deste rompimento, o fogo tornou-se geral nas ruas da cidade, e os efeitos deste fogo mortífero viam-se a cada passo. As ruas apareceram cheias de mortos, porém mais haveriam se um denso nevoeiro não impedisse de parte a parte as pontarias.

Foi um verdadeiro dia de juízo, e para que a cena fosse mais medonha, o nevoeiro veio cobrir a cidade, que, por assim dizer, nadava em sangue!... Todavia, pôs termo à carnagem, e à sombra dele retiraram os miguelistas, uns para o Senhor do Monte, outros para a Falperra e Prado.

Calcula-se que os mortos da parte dos miguelistas excedem 200, e da força do Casal 80!!!...

(...)

As tropas do Casal começam a praticar aqui o que têm praticado pelas mais terras por onde têm transitado. Os roubos que cometem são imensos. É mesmo um bando de salteadores. (6 de Janeiro de 1847)

Conforme já se referiu acima, nem todos os textos do Espectro eram da autoria de Sampaio e o exemplo atrás relatado demonstra-o. No entanto, na generalidade, imergem na estética romântica, e esse exemplo não é excepção, graças à exploração da emoção (incluindo o expediente dos pontos de exclamação), do recurso à metáfora (“nadava em sangue”) e a outros elementos de estilo, como a adjectivação.

Algumas notícias relatavam os actos atrozes cometidos durante o conflito. A fuga das tropas do conde de Casal para a Galiza, pelo Minho e Trás-os-Montes, por exemplo, mereceu várias notícias, como a seguinte, também ela extraída de correspondência enviada para o jornal Nacional, transcrita por Sampaio no Espectro:

Na sua marcha (...) cometeram as maiores violências, roubos e extorsões (...), não só os soldados, mas também os oficiais (...). Na freguesia de São Miguel, roubaram todas as galinhas, carne de porco e roupa (...), algum gado (...) e ao reverendo Manuel Sachola só lhe deixaram a roupa que trazia vestido. Nesta freguesia, e na de Lindoso (...), pouco ficou, nem os mais insignificantes panos de cozinha lhe escaparam (...), e no lugar de Parada do Lindoso queimaram quatro casas, que são de Agostinho Carneiro, Joana Rodrigues da Cruz, Francisco Dias Ribeiro e Manuel José Vaz Novo (...). Além de outras muitas mulheres que pretenderam forçar, foram à de A. T., do lugar da Igreja desta freguesia (...); M., mulher de J. dos S., e na mesma presença do marido; C., mulher de F. A. da C., a qual tem mais de 60 anos, todos do lugar de Cidadelhe; J. V., mulher de M. da V.; A. P., viúva de 50 e tantos anos; A. A., filha de M. G. A., de 15 anos, que para salvar a sua honra e virgindade da fúria de três libidinosos soldados, foi preciso toda a força de três tios e a de um sargento (...). (31 de Março de 1847)

Embora se trate de uma carta transcrita, e não de um texto de Sampaio, o relato documenta que já naquele tempo se protegiam as vítimas de violações, não revelando a sua identidade, apesar de se citarem as iniciais dos nomes como elemento de prova. Por outras palavras, não terá sido o Diário de Notícias, como às vezes se pretende[12], a introduzir o hábito de se ocultar a identidade das vítimas dos crimes, mencionando-as apenas pelas iniciais.

Em suma, através da leitura do Espectro é possível observar uma multiplicidade de estratégias discursivas usadas por Sampaio para fazer incorporar a sua visão do mundo no universo simbólico das elites politizadas portuguesas de oitocentos, sendo de destacar a sua elevada plasticidade adaptativa, resultante da necessidade de ajustamento desse discurso às múltiplas instâncias do jornalismo político – transmissão de informações, interpretação de factos, comentário de problemáticas, etc.

4.2.4 Uma comparação estrutural entre O Eco de Santarém e O Espectro

No que à estrutura diz respeito, que comparação pode ser estabelecida entre O Eco de Santarém e O Espectro? Para se responder a esta questão, optou-se por realizar uma análise quantitativa do discurso, ou análise de conteúdo, já que, conforme explica Berelson (cit. in KRIPPENDORFF, 1990, p. 29), é “uma técnica de investigação para a descrição objectiva, sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto da comunicação”. Por outras palavras, a análise de conteúdo visa explicitar a substância de um discurso, com rigor e universalidade, encontrando as suas invariantes estruturais. Expor objectivamente a substância de um discurso permite ao analista tecer inferências válidas e fiáveis sobre as relações entre esse discurso, enquanto fenómeno objectivo, e os fenómenos objectivos que lhe deram origem ou que provocou, conforme aclara Sousa (2004).

Wimmer e Dominick (1996, p. 174-191), tal como Sousa (2004), explicam que uma análise de conteúdo implica a definição de um universo de análise (para o caso, O Eco e O Espectro), a selecção da unidade de análise (as matérias presentes nestes jornais), a definição das categorias de análise (nas quais serão contabilizadas as ocorrências dos fenómenos passíveis de se inserirem nas mesmas) e o estabelecimento de um sistema de quantificação. Só depois é possível proceder à codificação e categorização do conteúdo.

A informação dos jornais estudados foi, assim, classificada da seguinte maneira:

1) Para determinação da estrutura temática, contabilizou-se a ocorrência dos temas, conforme definidos nas categorias, independentemente do número de matérias. Considerou-se, portanto, que uma matéria poderia ter vários temas.

2) Para determinação da localização geográfica das informações, foi contabilizado o número de referências a cada lugar, mas por peça. Isto é, no caso hipotético de uma matéria ser, por exemplo, sobre um acontecimento ocorrido em Lisboa, apenas se contabilizou uma vez Lisboa, independentemente do número de vezes que Lisboa tivesse sido referida na matéria.

3) Para aferição das fontes citadas, contabilizou-se o número de referências a cada fonte, até porque é um indicador relevante do maior ou menor recurso às mesmas.

4) Finalmente, para descrição da estrutura dos jornais analisados relativamente aos géneros jornalísticos empregues por Rodrigues Sampaio, a unidade contabilizada foi a matéria individual.

Usaram-se as seguintes categorias[13]:

Temas das matérias

Guerra – Nesta categoria contabilizaram-se as matérias sobre guerras e batalhas, preparativos para as mesmas, rixas e escaramuças menores, descrição de estratégias, nomeações para cargos militares e exonerações dos mesmos, actividades militares terrestres e marítimas, defesa das frotas, espionagem, recompensas a militares por acções em combate, etc.

Exemplo:

19 de Março de 1847

O conde de Mello estava no dia 8 em Portalegre com 1.200 infantes, 200 e tantos cavalos, e três peças de artilharia. Brevemente se lhe deviam reunir mais 1.400 infantes, 66 cavalos e meia brigada de artilharia das forças que marcharam do Algarve.

No dia 5 o ex-general Shwalback tinha dormido em Veiros com 500 infantes e 110 cavalos. Gil Guedes estava em Montemos com 400 infantes, e 30 cavalos, e o Salazar em Estremoz com a infantaria que tinha antes, e 20 cavalos.

Economia – Matérias relacionadas com a actividade económica e financeira. Assim, classificaram-se nesta categoria as matérias referentes à actividade bancária, às indústrias, a taxas, impostos e outras contribuições, aos movimentos nos portos (partidas e chegadas de navios comerciais), a empréstimos pessoais, a actuações dos funcionários das instituições bancárias, etc.

Exemplo:

16 de Dezembro de 1846

Com a revolução caiu a fantasmagoria do crédito. A crise existia, e não a criámos nós. O banco declarou-se falido no mesmo dia em que a revolução começou a governar. A bancarrota não foi obra nossa, foi um legado da administração Cabral.

(…)

O Banco de Lisboa foi sempre um banco de agiotagem, e os seus admiradores tiveram a imprudência de censurar pela imprensa o Banco do Porto por não querer contratar com o Governo, e levaram o seu cinismo a ponto de notarem que os discípulos do Sr. Roma davam 13, 14 e 15 por cento de dividendo em quanto os do Porto repartiam apenas 3 por cento. A consequência desta doutrina estulta e egoísta foi que o Banco do Porto tem conservado o valor das suas acções sem alteração sensível enquanto o de Lisboa vende por 300 mil réis o que não há muito lhe dava mais de 835 mil réis.

(…)

As acções do Banco de Lisboa caíram mas conservaram-se durante a administração liberal em 450 mil réis – as da Confiança de 20 por cento (prémio) caíram a menos de metade do seu valor, do qual não tem subido apesar das alterações que tem havido na forma da cotação para iludir os simplices – as das obras públicas, já haviam morrido há muito.

Crítica política e ataques pessoais e situação política e social em geral – Matérias relacionadas com a política e a administração do País, bem como ataques a indivíduos ou grupos de indivíduos de algum relevo na sociedade. Incluíram-se nesta categoria notícias de nomeações e exonerações para cargos exclusivamente políticos, celebração de Cortes, visitas de Estado (quando o tom é essencialmente político e não social), promulgação de legislação, etc. Igualmente se incluíram comemorações de cariz político, como, por exemplo, festas relacionadas com visitas reais.

Exemplo:

5 de Maio de 1847

Ainda não houve causa que tivesse mais simpatias do que a nossa, do que a que representa a Junta do Porto.

(…)

Paz havia-a em 6 de Outubro, e essa paz apareceu perturbada no dia seguinte. O statu quo ante bellum é o triunfo do partido progressista, e tudo o que não for isso contraria todo o acordo. Se nós temos razão queremos os proveitos dela; se o povo praticou um esforço generoso cumpre que depois dele não fique de pior condição do que estava dantes.

A Junta não pediu auxílio estrangeiro, nem mediação, porque tem força para resistir; os fracos é que cometeram essa baixeza; foi a corte despótica quem se humilhou. Se ela pois confessou a sua fraqueza, o governo dos estados não convém aos fracos, e a mediação só pode servir para nós lhe perdoarmos as custas da demanda; que a soma pedida no libelo, que são as liberdades publicas, devem ser confinadas á nossa guarda e protecção.

Intervenção estrangeira – Nesta categoria, foram contabilizadas todas as matérias onde figurasse qualquer tipo de intervenção, directa ou indirecta, de um país estrangeiro em Portugal, em questões políticas, sociais, etc.

Exemplo:

3 de Julho de 1847

O tenente general D. Manuel de la Concha, conde de Cancellada, e o coronel Buenega como representantes da Espanha, o coronel Wilde como representante da Grã-Bretanha, o Marquez de Loulé, par do reino, e o general César de Vasconcellos como representantes da Junta provisória, reunidos em Gramido com o fim de concertar as necessárias medidas para dar pacífico cumprimento às resoluções das potências aliadas, concordaram em que a cidade do Porto se submeteria à obediência do governo de S. M. F. com as condições estabelecidas nos oito artigos que vão escritos no fim da acta.

Por esta ocasião, os comissários da Espanha e Grã-Bretanha declararam que a honra militar do exército da Junta e da antiga, muito nobre, e sempre leal, e invicta cidade do Porto estava completamente salva, e que eles folgavam de fazer esta declaração em favor da honra e valor dos soldados portugueses.

Proclamações – Texto, que embora ultrapassando o carácter jornalístico, surge nos periódicos analisados, explorando as emoções para levar os destinatários do mesmo a desencadearem determinadas acções ou assumirem certas atitudes.

Exemplo:

4 de Junho de 1847

Soldados! É tempo de terminar esta memorável campanha com um feito digno de vós, digno do exército nacional, que liberte a capital da escravidão, e a rainha da abominável coacção em que a tem os inimigos da pátria! Tive sempre em vista, bravo 2 de caçadores, valente 7 de infantaria, conduzir-vos ao vosso quartel de Lisboa: a melhor estrada para lá chegar, é a que fizerdes com a ponta da baioneta: a veterana, e aguerrida municipal do Porto, e o intrépido 7 de caçadores nos coadjuvarão; a vitória vos abre os braços, e as bênçãos da Pátria vos esperam! À vossa frente irá para vencer ou morrer convosco, entoando vivas à Pátria, à Sr.ª D. Maria II, e à Carta reformada. – O general, conde das Antas.

Decretos – Texto de natureza normativa, legal, que embora não sendo jornalístico, aparece nos jornais analisados.

Exemplo:

6 de Fevereiro de 1847

Tendo-se formado na capital do Reino uma vasta conspiração com o fim de destruir a liberdade e independência do País, apoderando-se da direcção dos negócios públicos, e continuando a mesma facção, não obstante a resistência formal da maioria do País, a sustentar e promover uma guerra civil avassaladora, e não podendo a Junta Provisória deixar de estigmatizar semelhantes atentados na pessoa de seus principais autores e fautores; decreta em nome da Nação e da Rainha o seguinte:

Artigo único. São considerados como traidores à Pátria, e ficam exautorados de todos os seus postos, empregos, honras e títulos, os membros do actual Ministério de Lisboa, e todos os generais e comandantes de brigadas e corpos, e mais oficiais ao serviço do mesmo Governo, sem prejuízo da responsabilidade em que por seus actos particulares tenham incorrido, ou hajam de incorrer.

Situação Política e social estrangeira – Matérias relacionadas com a política e administração de um país estrangeiro (europeu).

Exemplo:

7 de Abril de 1847

O Ministério espanhol caiu. Não temos podido comemorar a crise violenta porque tem passado os nossos vizinhos, nem ainda agora o podemos fazer como cumpria, mas diremos em resumo o essencial para avaliar a situação.

Estava ali à frente dos negócios uma facção que se chamava moderada e não era senão absolutista, a qual tinha a Rainha numa perfeita coacção. Esta pandilha assemelhava-se aos nossos saldanho-cabralistas – tinha os mesmos princípios, mostrava as mesmas tendências, e empregava os mesmos meios para se sustentar no poder. (…) Foi esse Ministério que acaba de morrer. Pesada lhe seja a terra; maldita a sua memória.

Géneros jornalísticos das matérias:

Considerando-se por género jornalístico uma moldura em que se podem classificar determinados textos, definiram-se as seguintes categorias:

Artigo de opinião simples – Enunciado onde o autor expõe o seu posicionamento perante um determinado tema ou assunto, do domínio público e de interesse geral, interpretando factos e as implicações ou consequências destes.

Exemplo:

1 de Junho de 1847

O Espectro é inocente aos olhos de Deus e à luz da razão; mas sabe que é reputado criminoso perante a corte. Se é perseguido não se queixa; sofre resignado e nunca acusará o Governo por procurar vencer o seu adversário pela força já que o não pode convencer pelo raciocínio. O que sente, o que lamenta é a perseguição dos inocentes. Discordamos na base do direito: nós julgamos ser o que é justo, o governo quer que o seja a sua vontade. Se ficarmos vencidos entregamos a cabeça ao carrasco, se triunfarmos havemos de ser generosos.

Notícia breve comentada – Enunciado onde, para além de se narrarem factos, se comentam, interpretam e/ou analisam esses mesmos factos. Incluem-se na categoria breve, todas aquelas que não possuem mais de oito linhas.

Exemplo:

28 de Maio de 1847

Terça-feira esteve no Governo Civil, e parece que recebeu mais dinheiro, o agente do Ministério encarregado de ir fazer a aclamação miguelista. O Governo quer capote. Parece que um diplomata estrangeiro não é estranho a este plano que aconselha a fim de se desculpar dos passos imprudentes que tem dado.

Notícia breve não comentada – Enunciado em que se narram factos com ambição de verdade e objectividade, sem serem feitos comentários e/ou análises aos mesmos. Incluem-se na categoria breve, todas aquelas que não possuem mais de oito linhas.

Exemplo:

1 de Julho de 1847

Corre como certo que os aliados aceitaram as propostas que a Junta do Porto oferecera para a sua entrega, uma das quais era não entrar no porto a força do Saldanha.

Notícia desenvolvida comentada – Enunciado onde, para além de se narrarem factos, se comentam, interpretam e/ou analisam esses mesmos factos. Incluem-se na categoria desenvolvida, todas aquelas que possuem nove ou mais linhas.

Exemplo:

3 de Março de 1847

O Diário compraz-se em noticiar imaginárias desinteligências no Porto. Podemos asseverar-lhe que reina ali a mais completa harmonia.

Aonde lavra a desinteligência é nos cabralistas de Lisboa, e para fazer desviar dela a atenção é que o Diário se afadiga nas suas ridículas invenções.

(…)

Diz o mesmo ministro que não colocará as coisas no pé em que estava, mas que é forçoso que a amortização seja de 50 mil réis mensais em lugar de 18 mil, e que as notas sejam recebidas na terça parte dos pagamentos em vez de o serem na totalidade.

Notícia desenvolvida não comentada – Enunciado em que se narram factos com ambição de verdade e objectividade, sem serem feitos comentários e/ou análises aos mesmos. Incluem-se na categoria desenvolvida, todas aquelas que possuem nove ou mais linhas.

Exemplo:

9 de Janeiro de 1847

Cartas do Alentejo dizem que o barão de Estremoz fora bater Jeromenha, e que retirara acusado pelos populares que a guarneciam. Acrescentam que as povoações daquela província correm em massa a unir-se a Évora às forças do conde de Mello.

Uma carta de Coimbra de 30 diz que a maior parte das forças do conde de Bonfim se tinha reunido ao conde das Antas, e que revês de Torres Vedras fora menor do que ao princípio parecia.

Artigo de opinião com matéria informativa – Enunciado onde o autor expõe o seu posicionamento perante um determinado tema ou assunto, do domínio público e de interesse geral, interpretando factos e as implicações ou consequências destes. Incluem-se na categoria “com matéria informativa”, aqueles artigos em que, para além do posicionamento do autor, existe, também, narração de factos.

Exemplo:

2 de Janeiro de 1847

O despotismo já não é uma indução é uma realidade. Hipócrita e humilde antes da peleja, ergue-se desaforado depois dela apenas lobrigou o sintoma do mais ligeiro triunfo.

Não nos apanhou despreparados. Sabíamos as suas inclinações, conhecíamos todas as suas tendências – vimo-lo na barriga da mãe, observámos o sustento que o alimentava.

Estúpido e feroz é esse despotismo. Ainda bem, que não nos deixa adormecer! Ainda bem que não nos ameiga com esperanças falazes! Não promete, ameaça.

(…)

Se nos faltam costumes porque não no-los deram? E se nos faltam agora, não nos faltavam em 1832 quando derramámos o nosso sangue? Então éramos um Povo virtuoso, estava o terreno preparado. Hoje ainda não se lhe podem lanças as sementes da liberdade! Ter-nos-emos corrompido? A culpa não é do povo, é da administração que nos deixou corromper.

Assim, a tabela 3, que regista os temas abordados pelo Espectro e pelo Eco (podendo cada matéria ter mais do que um tema), mostra, primeiramente, a estabilidade entre um e outro periódico no que respeita à estrutura temática. As percentagens, por categoria, são similares ou até idênticas em ambos os jornais.

Tabela 3

Temas das matérias

A mesma tabela documenta que o Eco de Santarém e o Espectro falam, principalmente, da guerra civil – em mais de metade das ocorrências (51% no Eco; 54% no Espectro), esse foi o assunto principal. Num país em luta, nenhum outro tema seria de maior importância, em especial para alguém tão engajado nos tumultuosos acontecimentos como Rodrigues Sampaio. Além disso, as pesquisas sobre teoria do jornalismo mostram que a guerra, enquanto acontecimento anormal, dramático, negativo, mortífero, com os seus “heróis” míticos, as suas “figuras de elite”, é um tema de forte valor noticioso. Traquina (2002, p. 186-196), por exemplo, destaca que a morte e o conflito são critérios de noticiabilidade que orientam a selecção dos acontecimentos dignos de serem transformados em notícia, referindo, ainda, outros critérios que podem ser invocados para explicar a dominância da guerra entre os temas dos jornais clandestinos da Patuleia, como a proximidade (a guerra estava à porta) e a notabilidade – nomeadamente o número de pessoas envolvidas (no caso da guerra civil, toda a população portuguesa).

Ligado à guerra, surge o tema da intervenção estrangeira no conflito, com idêntica percentagem em ambos os jornais (5%). O nacionalismo de Sampaio, expresso repetidamente no Eco e no Espectro, e a aversão setembrista a uma intervenção militar estrangeira, que poderia liquidar de vez as aspirações da esquerda liberal à restauração da Constituição de 1838 (BONIFÁCIO, 1993), conluiem-se para explicar a presença do tema entre os abordados pelos jornais. Interessantemente, apesar de a ameaça da intervenção estrangeira se ter intensificado, gradativamente, até à sua efectiva materialização, o certo é que, estruturalmente falando, não há um aumento percentual da ocorrência do tema do Eco para o Espectro.

O potencial atractivo do conflito e o dramatismo resultante da possibilidade da personalização do texto ajudam a explicar, por seu turno, a forte presença da crítica social e dos ataques pessoais enquanto tema forte em ambos os periódicos analisados (33% dos assuntos do Eco e 27% do Espectro). Esse resultado confirma, aliás, a tese, sustentada, entre outros, por Tengarrinha (1989, p. 153), de que os jornais românticos portugueses, eminentemente doutrinários, agiam como porta-estandartes partidários no espaço público, enrolando-se em combates simbólicos que, para o caso, prolongavam, pela palavra, a guerra que ocorria no terreno. Revivia-se, afinal, a tradição aberta pelos pasquins do vintismo, tão bem descrita por Nelson Werneck Sodré (1999, p. 85 e p. 157): “Eram vozes (...) bradando em altos termos (...). Não encontrando a linguagem precisa (...), derivavam para a vala comum da injúria, da difamação (...).”

Mauro Wof (1987, p. 180) relembra que existem critérios de noticiabilidade relativos ao produto. Esse facto contribui para justificar a relevância dos temas económicos no Eco e no Espectro (9 e 8% dos temas, respectivamente). Num país maioritariamente analfabeto, que só então começava a dar tímidos passos para a massificação do ensino primário (e aí também António Rodrigues Sampaio, já como governante, teve uma acção decisiva), os jornais – mesmo os clandestinos – eram lidos, principalmente, pela burguesia (TENGARRINHA, 1989, p. 151), que tinha o interesse próprio da classe nos negócios e na economia do Reino. Destinados à burguesia e escritos por um pequeno burguês, como era Sampaio, o Eco e o Espectro, para terem sucesso, tinham de abordar os temas económicos.

Finalmente, no que respeita à tabela 3, cumpre realçar a transcrição de decretos e proclamações pelos jornais analisados, provando o seu enquadramento funcional como porta-vozes oficiosos, na capital, Lisboa, da Junta Patuleia, instalada no Porto.

Analisando-se, por outro lado, a tabela 4, observa-se, a dimensão nacional da revolta da Patuleia: há referências à generalidade do território nacional e não só.

Tabela 4

Localização geográfica das matérias

Os dados da tabela 4 documentam, ainda, que as notícias do Eco e do Espectro dizem respeito a lugares onde a “geração de acontecimentos” parecia suceder a um ritmo mais intenso. O Porto, por exemplo, era a sede do poder patuleia, pelo que o que lá se passava tinha sempre eco nos jornais redigidos por Sampaio. Por outro lado, as variações de notícias sobre determinados espaços geográficos entre um e outro jornal mostram, também, que os periódicos clandestinos de Sampaio acompanhavam a intensificação, ou travagem, do processo de produção de acontecimentos com valor noticioso no todo nacional. Por exemplo, a ocupação miguelista de Braga e a sua tomada pelas forças governamentais, já durante a publicação do Espectro, gerou um maior número de notícias sobre o Minho neste jornal.

Finalmente, os dados da tabela 4 ajudam a compreender os da tabela 5 e ambos contribuem para se perceber o funcionamento dos jornais clandestinos da Patuleia. Num país em guerra civil, como é que António Rodrigues Sampaio, apesar de instalado na capital, conseguia informações em bruto para poder alimentar os jornais que redigia com notícias? Só beneficiando de uma rede bem organizada – a dos rebeldes patuleias.

Tabela 5

Fontes citadas

As notícias são o principal elemento de interesse de qualquer periódico, já que são respostas a uma das eternas perguntas dos seres humanos: O que há de novo? Para além da sua própria observação e relato do que se passava em Lisboa, como observador ou (alegado) conhecedor dos factos, o dispositivo de captura de informações a que recorria Sampaio para alimentar os seus jornais e responder a essa pergunta – independentemente de depois poder enquadrar e comentar estas informações a seu bel prazer – assentava, observamos pela tabela 5, em três vectores fundamentais: (1) os jornais estrangeiros e portugueses (incluindo o Diário do Governo, porta-voz oficioso do Governo, com quem trava um combativo diálogo ao longo do tempo (os jornalistas liam-se, como hoje se lêem, uns aos outros); (2) a correspondência, incluindo, interessantemente, a correspondência interceptada ao inimigo, o que o obrigaria a ter uma rede organizada para as forças no terreno lhe fazerem chegar as cartas; e (3) fontes pessoais (indivíduos em geral), incluindo-se aqui contactos na rua e fontes regulares. O telégrafo, num país tecnologicamente pouco apetrechado, era jornalisticamente pouco usado – e quando o era, merecia referência especial.

Tabela 6

Géneros jornalísticos

A tabela 6 permite entender que, apesar de eminentemente doutrinários (muitas das matérias do Eco e do Espectro são comentadas – 42% no Eco e 62% no Espectro), os jornais políticos, mesmo os clandestinos, também davam informações, sinal de que, portanto, o afluxo de notícias era regular e significativo e também de que, obviamente, os periódicos não conseguiam sobreviver sem elas: no Eco, 58% das matérias são informativas e não comentadas; no Espectro, essa percentagem baixa para 38%, ainda assim um percentual relevante. O aumento percentual das matérias sujeitas a interpretação, enquadramento e comentário do Eco (42%) para o Espectro (62%) pode corresponder à própria dramatização simbólica – ainda que não militar – do conflito civil.

Finalmente, os resultados da análise de conteúdo parecem sustentar a hipótese de que deve ver-se como mito a ideia de que O Espectro e O Eco de Santarém são a obra de um homem só. António Rodrigues Sampaio redigiu esses jornais, sim, mas beneficiou, certamente, de uma rede de indivíduos identificados com a causa Patuleia que o apoiaram com dinheiro, na distribuição e, para o caso, que também lhe terão feito chegar doses abundantes de informações.

[1] A “Parte Oficial” era uma secção comum nos jornais portugueses da época. Por exemplo, o próprio Sampaio transcreve frequentemente no Espectro notícias e outros textos inseridos nas partes oficiais de outros jornais. Leia-se o seguinte exemplo: “O Diário contém partes oficiais muito interessantes (...).” (6 de Janeiro de 1847)

[2] António Rodrigues Sampaio confessa-o no último número. Na colecção disponível na Biblioteca Nacional (cota RES 302//3A), este último número está assinado com as iniciais A.R.S., mas noutras colecções, nomeadamente naquela que foi digitalizada pelo projecto Google Books e na reprodução de 1880 disponibilizada on-line pela Hemeroteca Municipal de Lisboa, isso não acontece, o que não é de estranhar, pois o periódico seria muitas vezes reimpresso, conforme Rodrigues Sampaio revela, identicamente, no último número.

[3] Sampaio assumiu sempre a condição de crente. Inclusivamente, conforme se diz neste trabalho, foi contra as Conferências do Casino Lisbonense, precisamente por ver nelas um desafio à religião.

[4] Diga-se, no entanto, que os jornais governamentais também faziam o mesmo. Por exemplo, Sampaio escreve no Espectro informações militares retiradas do próprio Diário do Governo, como a seguinte: “o major Ilharco vai postar-se em Palmela” (6 de Janeiro de 1847)

[5] Mediador inglês.

[6] Sampaio noticia o seguinte no número de 18 de Junho: “À Última Hora – O visconde de Sá, marquês de Melo e conde da Taipa foram intimados pelos ingleses para saírem de Portugal. A lealdade britânica sofre cada dia mais. Sir Seymour e o vice-almirante Parker estão-se cobrindo de infâmia. Atraíram aqueles cavalheiros por uma traição e perfídia (...). Sirva este exemplo de lição aos populares.”

[7] Sampaio escreve Mac-Donell, mas preferiu-se, conforme se tem feito ao longo do trabalho, a grafia contemporânea. McDonnell tinha sido comandante do exército miguelista durante as lutas liberais, mais concretamente a partir de Setembro de 1833 até à convenção de Évora Monte, em 1834. Mas por cá ficou, alimentando uma guerrilha miguelista relativamente inconsequente a Norte do país.

[8] Várias notícias são fruto da observação directa de Sampaio daquilo que se passava em Lisboa. Só a título de exemplo, leia-se a seguinte: “Três vapores temos agora à vista, que parece serem um espanhol, o Phenix, e outro talvez inglês. Contudo, não impedem a entrada nem a saída da barra aos navios, que agora mesmo está entrando um.” (1 de Junho de 1847)

[9] Normalmente, os títulos dos periódicos estrangeiros eram traduzidos quando se citavam. O Journal des Debats, por exemplo, passava a Jornal dos Debates, o Constituccionel a Constitucional.

[10] “Popular” entre aspas porque, há que reconhecê-lo, o sufrágio universal não era defendido por Sampaio. O voto a que ele estava habituado, e certamente preconizava, era um voto baseado em critérios censitários – burgueses com dinheiro e/ou propriedades podiam votar, a arraia-miúda não.

[11] Quádrupla Aliança é a designação dada ao tratado de 1834 entre os governos do Reino Unido, Espanha, França e Portugal, que visava impor regimes liberais nas monarquias ibéricas, mesmo que isso obrigasse a intervenções militares estrangeiras em Portugal e Espanha, o que veio efectivamente a suceder quer para derrotar as tropas miguelistas, em 1834, quer para pôr fim à guerra civil da Patuleia.

[12] Erradamente, dissemo-lo no artigo “Diário de Notícias: A revolução de Eduardo Coelho no jornalismo português oitocentista” (Sousa, 2009a), embora baseados em fontes da época, designadamente nos livros de Alfredo da Cunha.

[13] Não se definiram categorias para as fontes e para a localização geográfica porque a nomeação das mesmas é equivalente a uma descrição.