Gamboa, H. (1822)

GAMBOA, Hipólito (1822). A Corcundice Explicada Magistralmente…

Autor: GAMBOA, Hipólito [Doutor Hipólito Gamboa, possivelmente pseudónimo.]

Ano de publicação/impressão: 1822

Título completo da obra: A Corcundice Explicada Magistralmente, ou Resolução de Dos Problemas Interessantes a Respeito dos Corcundas

Tema principal: Liberdade de Imprensa

Local de edição: Lisboa

Editora (ou tipografia, caso não exista editora): Oficina de Simão Thaddeo Ferreira

Número de páginas: 28

Cota na Biblioteca Nacional e eventualmente noutras bibliotecas públicas

Biblioteca Nacional

Cotas:

HG15081 P

Índice da obra

Preambulo: pp.3 - 9

Problema I. Que coisa seja um Corcunda: pp.9 - 15

Problema II. Quem são os verdadeiros Corcundas?: p. 15 - 28

Resumo da obra (linhas mestras)

1. Preambulo

Este livro começa por nos descrever o entendimento humano e a sua vontade e os direitos em descobrir as verdades ocultas, enriquecendo o mundo com descobertas mais úteis, cultivando as ciências e renovando a linguagem dos homens.

Ao longo do texto, são feitas referências aos Corcundas, Corcundinhas e Corcundíssimos. Segundo o autor, é sempre um mistério, uma alegoria, tentar definir o que é um corcunda, denominação pejorativa dada pelos liberais aos adeptos da Monarquia Absoluta. O autor conota os corcundas com o “pobre religioso” que “caminha da casa do moribundo para o seu convento” e com “homem sábio”, “homem sisudo”, “cidadão pacífico e cristão edificante”, “eclesiástico exemplar”, “religioso modesto”, “personagem de alta consideração e de conhecimentos luminosos”.

Não tendo o autor conseguido explicar tal significação, foi desabafar com um amigo. Considera, igualmente, que a conversa que então teve foi suficientemente proveitosa para ser comunicada aos seus compatriotas e para instruir os ignorantes.

O autor conta, também, que:

“Quis manter escrita a interessante conferencia a algum redactor, para inserir no seu Periódico, a título de Artigo Comunicado ou Noticias Nacionais: porem uma instrução esfarrapada, que tenho de químico, me faz temer a fermentação, que podia resultar da mistura de elementos heterogéneos, lembrei-me; que a curiosa Gazeta Universal aonde não entram os alcalinos, podia sem perigo satisfazer o meu empenho, mas não quis incomodar o meu Redactor, que no Tribunal do Publico anda em actual Livramento pelo horroroso crime, que cometeu em publicar a Pastoral do Patriarca, e usar no Preâmbulo da escandalosa palavra rebanho que por seu volume não pôde entrar pela goela de um pato ainda que tivesse saído pela delicada garganta de uma cândida pomba que voou do Coe. Ora Patates em lamentos: dizia directamente um Oficial de Estudante de Universidade com exercício do passeador das ruas de Coimbra.

Resolvo-me pois a dar eu mesmo ao prelo a corcundice explicada. Queira deus que não esteja a Imprensa ocupada com alguma babosice, como é de bico a rabo a célebre Resposta à Pastoral do ex-patriarca de Lisboa, assinada por J.A.F. Ouvi dizer, que o nome é suposto, e que a eloquente peça fora composto por um curioso Aguadeiro junto ao chafariz do Carmo, nos intervalos de esperar vez para encher o seu barril. Não se faz incrível a notícia a quem confrontar imparcialmente o carácter de um tal autor com o merecimento da obra”.

Tentando, responder, ao seu problema número 1, “Que coisa seja um corcunda”, o autor explica que o corcunda é um homem a sua imagem e semelhança, que comunica aos seus semelhantes as “afeições ocultas da alma”, porque a natureza reservou-lhe o regulamento de certos sons, para significarem perpetuamente as internas impressões ingratas.

A definição de corcunda tem uma “enxurrada de nomes”. Corcunda é como um diamante lapidado com valor desconhecido; é um bicho careta incluído numeroso exercito de mascarados cujas funções são bem patentes. No sentido próprio, corcunda é aquele desgraçado de elevação monstruosa com o corpo em linha curva. É no sentido metafórico oprimido pelo terror das próprias paixões, de alma curvada para o crime, para o vício. O corcunda em sentido abusivo é considerado ocioso, tolo, ou um rapaz de rua. A estas designações, a corcundice “só pode ser mensurável pelo ódio, raiva, furor, a loucura dos próprios inventores”.

O corcunda é um “cidadão pacífico composto ao insulto, à inocência dirigida com a calúnia”. É um religioso que usa um hábito podre, que vive recolhido, e gasta as suas manhas na igreja em desempenho do Mistério Santo. É um cristão devoto, um honrado militar, um sério português, um “cidadão temente a Deus, que não aplaude a frase incendiária de certos Periódicos, e não concorre com a bendita esmola, para ajudar a viver os seus piedosos Redactores”. Um homem pacífico se depara com a grosseria e maledicência que lhe é dirigida.

O autor continua dizendo que desde que o grito da liberdade suou, nasceu uma Constituição vantajosa ao homem sociável. O amanhecer da nação trouxe dias de felicidade. Para ele, “o equilíbrio entre as atribuições do Monarca, e da nação, defende o homem livre, planta a justiça, castiga o crime e protege o cidadão de todas as violências”.

Seguidamente, o autor tenta resolver o seu segundo problema: “Quem são os verdadeiros corcundas?”

Existem muitas definições de corcundas, e só é de lamentar e má aplicação deste nome alegórico. Estes “não merecem o nome de corcundas; e seria melhor honrá-los com o nome de crocodilos, pelas ternas lágrimas que derramam sobre a presa devorada”.

É um “verdadeiro corcunda, aquele que se afasta da rectidão da lei com uma tortura sistemática para o vício”. Mas qualquer que seja a lei, a religião católica é ordem de todas, auxilia e protege intimidando em nome de Jesus Cristo, e todas concordam com ela mesmo não gostando de tanta clareza por temor das consequências”.

O culto religioso da nação “quer, determina, e manda legalmente, que essa religião santa seja a religião dos portugueses, inclusive, reconhece, decreta essa mesma religião, num artigo bem claro, para ser base, fundamento, alicerce do majestoso e edifício da Constituição. A religião católica existe há dezoito séculos e reconhece no bispo de Roma jurisdição verdadeira, ordenando aos fiéis o respeito aos seus, obediência, devoção”.

Que coisa é essa de nação Portuguesa? É a união moral, constitucional, um pacto espontâneo, voluntario, solene que resulta num ajuntamento de todos os indivíduos debaixo de uma forma de governo, com sujeição de novas leis. Todos os cidadãos portugueses têm a plena fruição dos direitos do homem livre, a eleição da vontade para aderir aos sistema constitucional., mas ser católico não é um título honorário de impostura, viver sem religião é desobedecer à lei, por impedimentos à união da grande família Portuguesa”.

O autor fala, mais à frente, do papel calunioso dos jornais políticos do Portugal vintista:

“Mas, que vejo praticado notoriamente à face de toda a nação Portuguesa na brilhante aurora da sua regeneração politica? uns homens que a titulo de instruir o público pegam a pena para arremetrem um furioso com uma espada na mão; e depois corta aqui, corta ali, corta acolá: estocada neste, cutilada naquele, golpe mortal naqueloutro: fere, mata, degola: queixa-se quem se queixar, perca a honra quem a perder, seja difamado quem for. Ande embora o nome do inocente arrastado pelo pavimento dos botequins, pelo chão inundado das tabernas, pelas estações lamaçais das praças, em volta da infâmia, e calcado aos pés de homens indignos. Triunfante a calúnia, o ódio, a vingança, com o auxílio eficaz dos periódicos, que sem distinção de factos verdadeiros, ou falsos, certos ou duvidosos, sinceros ou exagerados estão prontos a ser os instrumentos da malevolência, e trombetas sonoras da rival mordacidade.

Diga agora Portugal, falem os habitantes do globo civilizado; pergunte-se às mesmas feras a quem a natureza imprimiu declarações amigáveis para os seus semelhantes, se já mais aconteceu um procedimento, que seja tão irregular e escandaloso! Acaso realizou-se a vida selvática sonhada pelo Ímpio Hobbles com a aparição desse homem fera, que foi criatura imaginária do seu delirante cérebro? Perdeu a humildade, as essenciais atribuições que lhe designou o sábio criador do Universo? Trocaram-se em armas ofensivas todos os vínculos da vida social, o amor, a compaixão, a beneficência, a ternura, a urbanidade? Extinguiu-se a brilhante luz, que até resplandeceu nos descer dos mais incultos e medonhos para que os homens todos lessem o eterno código da Natureza: quod tibi non vis, alteri ne facias? Riscou-se do evangelho a segunda parte do grande perceito da caridade: diliges proximum tuum sisut te ipsum? Cidadãos contra cidadãos invadindo os bens mais apreciáveis do homem honrado com desprezo da Constituição regeneradora que os mantêm? Com o abandono de todas as leis? Com a ofensa do glorioso epíteto de homem sociável? Que respondem os senhores redactores?

Responderam talvez uns com riso de mofa, outros com uma olhadura medonha, mas alguns dirão com mais humanidade que a lei faz responsável os autores dos artigos comunicados. Não o nego. Porém, dar armas ao matador, e ser participante do seu crime, ajudar o ladrão e concorrer para a injustiça, dar à estampa a acusação do impostor e ser instrumento de calúnia. Dirão também, que o cidadão invadido nos seus direitos pessoais pela liberdade da imprensa, acha na mesma imprensa o meio eficaz de uma completa indeterminação. É falso. O vestígio precioso lavado da nódoa perde o lustro, a ferida corada deixa a fidelidade da cicatriz. A fama que uma vez foi manchada, fica sendo na opinião popular indemonstrado”.

No final, o autor dá concelhos aos redactores de periódicos:

“Senhores Redactores, outro oficio ou emendar os erros do oficio. Gozem da liberdade da imprensa, mas finjam de cooperar para o sei abuso. A mãe pátria ama ternamente os seus filhos, não quer a amargura dos seus filhos, não consente o desperdício do seu bom-nome, se não quando a justiça o manda por meios legítimos, e autoridades competentes. A segurança do sistema constitucional exige que se acabe por uma vez essa impolítica guerra civil, em que as penas de escritores públicos servem de espadas para levar a dor até o coração de tantos portugueses beneméritos. A nossa Constituição política fundada sobre a base da religião católica Apostólica Romana, jamais poderá aprovar uma praxe, que a mesma religião condena. Outro oficio, ou emendar os erros do ofícios. Aliás; estão tortos, inconstitucionais, corcundas e corcundíssimos”.

Autor: Gustavo Frias Pollmann

E-mail: GustavoPollmann@gmail.com