José Júlio Gonçalves: pioneiro da sociologia da comunicação em Portugal[1]
Jorge Pedro Sousa
Universidade Fernando Pessoa e Centro de Investigação Media e Jornalismo
Texto publicado, com algumas alterações, na revista Comunicação & Sociedade, da Universidade Metodista de São Paulo (vol. 31, n.º 53, 2010).
Resumo
Neste
trabalho, procura resgatar-se a obra de José Júlio Gonçalves, um dos pioneiros
da sociologia da informação e da comunicação em Portugal. Recorreu-se
à pesquisa bibliográfica e à revisão de literatura. Conclui-se que o autor se
preocupou em diagnosticar o estado do jornalismo no mundo português, incluindo
as então colónias africanas e asiáticas, recuperando factos olvidados pela
história, nomeadamente a intervenção portuguesa na expansão da imprensa e da
tipografia. Também faz um diagnóstico jurídico-sociológico à situação do
jornalismo português de então, insinuando, sem emitir juízos de valor, que a
censura era um instrumento de propaganda do Governo, que, como todos os
governos, zelava pelos seus interesses através da política de informação
adoptada.
Palavras-chave: sociologia da
comunicação e da informação; José Júlio Gonçalves; jornalismo; Portugal.
Abstract
This paper seeks to
redeem the work of José Júlio Gonçalves, one of the pioneers of the sociological
study of information and communication in Portugal. The research is based in
literature review. We concluded that the author tried to made a diagnosis of
the state of journalism in the Portuguese world, including the African and
Asian colonies, retrieving facts hided by history, like the Portuguese
intervention in the expansion of the press and printing in the world. He also
made a diagnosis of the legal and sociological situation of journalism in
Portuguese explaining that censorship was a propaganda tool of the government,
which, like all governments, watched over their interests through the adopted
information policy.
Key-words: communication
and information sociology; José Júlio Gonçalves; journalism; Portugal.
Resumen
Este trabajo intenta rescatar
la obra de José Júlio Gonçalves, uno de los pioneros de la sociología de la
información y de la comunicación en Portugal. Lo método fue la revisión de literatura.
Llegamos a la conclusión de que el autor ambicionó diagnosticar el estado del
periodismo en el mundo portugués, incluyendo las colonias africanas y asiáticas,
y recuperar hechos olvidados por la historia, principalmente la intervención
portuguesa en la expansión de la prensa y de la tipografía. Gonçalves también
hace un diagnóstico de la situación jurídica y sociológica del periodismo portugués
de entonces, insinuando, sin hacer juicios de valor, que la censura era un
instrumento de propaganda del Gobierno, que, como todos los gobiernos, protegía
a sus intereses a través de la política de información que adoptaba.
Palabras-llave: sociología
de la información y de la comunicación; José Júlio Gonçalves; periodismo.
Introdução
Lendo-se
e vendo-se obras como Portugal: Um Retrato
Social, organizado por António Barreto e Joana Pontes (2007), pode dizer-se
que os anos sessenta foram uma década em que Portugal se
modernizou e abriu. A industrialização tornou uma sociedade predominantemente
rural numa sociedade predominantemente urbana. As mulheres, trabalhando ao lado
dos homens nas novas empresas, viram melhorar o seu estatuto e foram adquirindo
a sua independência. Salários regulares permitiram a aparição de atitudes
consumistas que rompiam com a lógica salazarenta dos “pobres, honestos,
católicos e rurais”. O turismo e a emigração contribuíam para arejar o país.
Esse ambiente renovado também se fez sentir na academia. José Júlio Gonçalves,
há que reconhecê-lo, foi um dos que contrariou a lógica bafienta e quase
escolástica da universidade portuguesa de então, em favor de uma atitude de
investigação no terreno e de produção intelectual em campos que, ao contrário
do que sucedia noutros países, eram, à época, bastante desconsiderados pelos
universitários portugueses – os campos da comunicação, da informação e do jornalismo.
A obra de José Júlio Gonçalves no campo da sociologia da informação é
persistente, sistemática e coerente, tendo-se desenvolvido ao longo da década
de sessenta e no início da década de setenta, em livros como Técnicas de Propaganda (1961), Sociologia da Informação (1963), Política de Informação (1963) e Os Meios de Comunicação Social à Luz da
Sociologia (1972), entre outros. Obviamente, todos esses são livros que devem
ser lidos tendo-se em consideração o contexto português da época. Ao tempo, os
jornais predominavam no panorama da comunicação social e o país estava amarrado
à ditadura do Estado Novo, que durante décadas tinha asfixiado o seu
desenvolvimento e mantinha colónias à custa de uma guerra colonial que ceifava
vidas. Aliás, vários dos livros de José Júlio Gonçalves são devotados ao estudo
do jornalismo nas então colónias portuguesas, casos de A Informação em Angola (1964), A
Informação em Moçambique (1965), A Informação
na Guiné, em Cabo Verde
e em São Tomé
e Príncipe (1966) e A Informação nas
Províncias do Oriente (1967). Mas, para além de darem pistas sobre o
entendimento que alguns sociólogos portugueses tinham dos fenómenos
comunicacionais nas sociedades de então, os livros de José Júlio Gonçalves também
demonstram o esforço empreendido por alguns académicos mais jovens, caso do
autor aqui abordado, para, nos anos sessenta, dotar de cientificidade os
estudos sociais e comunicacionais desenvolvidos em Portugal, sintonizando-os
com o que se passava no mundo desenvolvido. Essa era, de resto, uma atitude
revolucionária, pois em Portugal alguns espíritos ainda desconsideravam os
fenómenos comunicativos, quer a nível científico, quer mesmo a nível
profissional – a título de exemplo, Bramão (1899, p. 16), Veloso (1910/1911) e
Marques Gastão (1959) afirmavam que os jornalistas não careceriam de formação,
e muito menos de formação superior, pois exerceriam a sua actividade baseados
nas suas qualidades inatas.
Este
artigo, assente na pesquisa e revisão bibliográfica, tem assim por objectivo
resgatar o trabalho pioneiro do professor José Júlio Gonçalves na introdução da
sociologia da comunicação e do jornalismo em Portugal, determinando as linhas
mestras da argumentação do citado pesquisador. Por esse motivo, serão abordadas
apenas as obras mais emblemáticas do autor no campo da sociologia, até porque
várias das considerações que nelas ele faz se encontram reproduzidas noutras
obras.
1. Técnicas de Propaganda (1961)
Em Técnicas de Propaganda (1961), o autor
salienta a tendência do homem para viver em sociedade, que o leva a estabelecer
relações sociais e a trocar informações, opiniões, etc. Refere, abundantemente,
o sociólogo Juan Beneyto, para quem as comunicações que o homem pode
estabelecer com os seus semelhantes podem ser: comunicações individuais; comunicações
colectivas e comunicações
comunitárias. (Gonçalves, 1961, p. 15-16).
Esta classificação dos meios de
informação humanos corresponde, até certo ponto, à própria evolução da
sociedade humana desde o passado remoto (...) até nossos dias, desde o começo
da estratificação das sociedades primitivas até às contemporâneas, autênticas sociedades de massas que, não raro, as
elites e pseudo-elites arrastam a seu belo talante sob a influência de uma bem
norteada propaganda (...) obedecendo a estados emotivos provocados pela
anestesia da capacidade de deliberar e de decidir. (Gonçalves, 1961, p. 16-17).
Gonçalves
(1961, p. 18-19) relembra que a radiodifusão e a televisão permitem “levar
informações, ideologias, sugestões e ordens, quase instantaneamente, a grandes
distâncias e a todos os públicos” e que “os aperfeiçoamentos introduzidos na
imprensa” facultamm a publicação de grandes diários”. Estes, “beneficiando
(...) da aceleração dos transportes (...) chegam aos leitores a tempo de não se
desactualizarem ante os diários falados,
televisados e filmados” (Gonçalves, 1961, p. 18-19). Devido a isso, a
propaganda contemporânea, de acordo com Gonçalves, usa abundantemente os meios
de comunicação social.
Beneyto,
citado por José Júlio Gonçalves, explica que a propaganda pode dividir-se em: propaganda política, propaganda comercial e propaganda religiosa. Os meios
jornalísticos desempenham, de acordo com Gonçalves, um papel de relevo em todos
esses tipos de propaganda, mesmo quando não o pretendem e quando não o fazem
intencionalmente.
O
autor relembra, para finalizar o ensaio, várias técnicas de propaganda através
dos meios de comunicação social, como sejam a repetição, a simplificação da
mensagem, a orquestração, a desfiguração, o sobredimensionamento, a individualização
do inimigo, etc.
2. Política de Informação (1963)
Em Política de Informação: Ensaios, José
Júlio Gonçalves (1963) começa por esclarecer que conceito está por trás da
expressão “política de informação”. Para isso, primeiro diz que por Informação [com
maiúscula] se deve entender o conjunto dos meios informativos, nomeadamente os
meios jornalísticos; em segundo lugar, recorre a Dovifat, para sustentar que a política
de informação, conjunto de medidas aplicadas por Governos e outras entidades em
prol do controlo da informação produzida e disseminada num determinado
território, tem efeitos ao nível da formação da opinião pública.
Discorrendo
sobre as definições de Dovifat, o autor concorda que, em boa parte, elas giram em
torno da “ideia de que a Política de Informação é preocupação essencialmente
assinada pelos Governos” (Gonçalves, 1963, p. 17). No entanto, José Júlio
Gonçalves explica que o prosseguimento de políticas informativas se verifica,
também, nas organizações em geral, como as empresas. Mesmo indivíduos com
determinados estatutos e papéis sociais, salienta Gonçalves (1963, p. 18),
também podem prosseguir políticas de informação, que são, para ele “uma força
e, ao mesmo tempo, um instrumento poderoso de penetração psicológica”.
Tendo
em conta a amplitude da política de informação e o peso da notícia na marcha da
história, percebe-se, lembra o autor, o interesse por parte dos Estados e
respectivos Governos e de outras instituições na intervenção, negativa ou
positiva, sobre a informação, condicionando-a, muitas vezes, apenas de acordo
com os seus interesses, e percebe-se, também, a preocupação dos pesquisadores em
estudar os meios de informação e a sua conduta perante a atitude dos Governos
(Gonçalves, 1963, p. 19-21).
José
Júlio Gonçalves considera, basicamente, a existência de dois tipos de política
de informação: a capitalista e a comunista.
Diz
o autor que são três os aspectos essenciais comuns à política informativa nos
dois modelos principais, o capitalista e o comunista: (1) a preocupação de
informar e de fazer propaganda; (2) a ideia de informar e educar, porque a
informação conduz à educação que cada um dos regimes considera útil; e (3) a
tendência para informar e “desinformar”. Em qualquer dos casos, a informação, salienta
Gonçalves (1963, p. 21-23), é usada como meio eficaz de difusão de ideias
políticas e como arma psicológica.
No
seguimento do que anteriormente afirmou, o autor esclarece que as informações
transportam uma carga ideológica que se destina a influenciar as populações,
provocando mudanças de opinião e atitudes políticas. Salienta, igualmente, que
educação e informação estão intimamente ligadas, visto que a primeira é o “mais
eficaz obstáculo que pode opor-se à difusão das ideias que se deseja não
penetrem no espírito da população” (Gonçalves, 1963, p. 21-23). Finalmente,
explica que a “desinformação” desprende os indivíduos da antiga perspectiva
ideológica, substituindo ou mesmo eliminando a velha formação. O objectivo da
desinformação é, de acordo com Gonçalves, proteger uma ordem política que se
considera adequada ou discriminar outra diferente. José Júlio Gonçalves (1963,
p. 23) considera, ainda assim, que por muito relevante que a Política de
Informação possa ser, esta nunca fica alheia à influência “das correntes
interiores, dos grupos de pressão, dos mitos, etc.”.
Analisando
o que mais representativamente caracteriza as políticas de informação
capitalista e comunista, o autor afirma que a primeira se qualifica a si
própria como livre, aberta e democrática, atribuindo à segunda os epítetos de
condicionada, fechada e ditatorial (Gonçalves, 1963, p. 24).
A
estrutura da propriedade da mídia também seria um factor diferenciador da política
de informação nos blocos capitalista e comunista. A indústria cultural nos
países capitalistas tende, relembra o autor, a ser propriedade de entidades
privadas, enquanto nos países comunistas é propriedade do Estado (Gonçalves,
1963, p. 25-27).
Objectivando
o assunto em questão, José Júlio Gonçalves (1963, p. 28-32) adverte que não há,
em nenhum lugar, uma informação isenta de controlo directo ou indirecto, mesmo
no estado mais representativo do mundo capitalista, os Estados Unidos.
Inclusivamente, para ele, o condicionamento legal da informação nas democracias
capitalistas seria mesmo admitido pelos cidadãos, nomeadamente por razões de
protecção jurídica da pessoa humana. Além disso, haveria outros tipos de
controlo exercido pelos grupos de pressão e pelo poder económico sobre a
informação, à margem do Estado, para satisfação de interesses individuais
(Gonçalves, 1963, p. 27-30).
O
autor realça, no entanto, que nas democracias capitalistas, em concreto nos
Estados Unidos, não há evidência de que a informação seja um instrumento do
Governo, embora alguns meios possam servir os propósitos governamentais. José
Júlio Gonçalves também não duvida que a propaganda técnica e cientificamente
organizada é, depois da intervenção dos grupos e dos proprietários dos meios de
comunicação, o fenómeno que mais alterações causa na objectividade da
informação nos EUA. Para ele, a informação pode ser quer um meio de que se
servem quer os particulares para atingir o poder, quer um meio do poder para
subsistir, impor-se e convencer (Gonçalves, 1963, p. 29).
José
Júlio Gonçalves (1963, p. 30) explica, no entanto, que pode dizer-se que a
propaganda no bloco capitalista nem sempre tem a capacidade de confundir,
dominar e orientar as pessoas, uma vez que é impossível impedir os cidadãos de
receber notícias fidedignas e verídicas de outras fontes. Para ele, nas
democracias a informação é relativamente livre, aberta e democrática, apesar de
o controlo económico e social de natureza privada poder condicioná-la.
Seguidamente,
José Júlio Gonçalves (1963, 27-30) passa à análise da informação no bloco
comunista, tomando como paradigma a Informação na ex-URSS, que caracteriza como
sendo condicionada, dado que era governamentalizada e partidária e tinha como
objectivo principal a “educação” política e cultural do povo. Para Júlio Gonçalves,
a informação na ex-URSS era fechada e ditatorial, o que decorreria do controlo
que os órgãos políticos exerciam sobre ela.
Segundo
o autor, na URSS informação e propaganda eram fenómenos que se confundiam, uma
vez que quem informava promovia “directa ou indirectamente, a doutrinação dos
indivíduos” (Gonçalves, 1963, p. 27-30). Mais, nos estados comunistas, sustenta
Gonçalves (1963, p. 30), existem mecanismos de controlo que impedem os cidadãos
da receber informações que não interessem ao poder.
Refere
ainda José Júlio Gonçalves, a propósito do carácter fechado da informação no
bloco comunista, que a imprensa permitia que os seus colaboradores e leitores
se ocupassem de problemas políticos, possibilitando-lhes pequenas
discordâncias. Quando se queria mostrar neutro, o Partido Comunista chegava a
fomentar críticas na imprensa aos responsáveis particulares por quaisquer
fracassos e deficiências. Isto leva José Júlio Gonçalves a considerar
tendenciosos os que afirmavam que a informação da URSS era livre,
classificando-a, ele, de “poderosa arma psicológica, que habilmente explora
todas as fraquezas do adversário interno e externo” (Gonçalves, 1963, p. 31-32).
O
autor explica, também, que um dos mais importantes aspectos da vida e sociedade
contemporâneas que a URSS parecia apostada em condicionar, gastando para tal
somas astronómicas (objectivo a que se oporia a contrapropaganda
anticomunista), era o impacto da informação-propaganda comunista no mundo não comunista, e conclui que tanto nos EUA como
na URSS a informação parecia exprimir, devido aos condicionamentos que sobre
ela pesavam, uma tendência crescente para o aviltamento da sua essência, da sua
estrutura, da sua ética e dos seus objectivos (Gonçalves, 1963, p. 33-35).
José
Júlio Gonçalves (1963, p. 37-39) refere-se, igualmente, à questão do preço da informação, obstáculo à livre propagação
e circulação das notícias. No entanto, segundo ele, têm maior aceitação as
notícias pagas do que as oferecidas (por exemplo, através de press-releases), pois o custo das
primeiras resulta dos dispositivos de verificação da informação, que permitem
ganhar a confiança dos destinatários. No entanto, isso tem como revés uma
acrescida dificuldade na difusão da informação.
Ao
preço, José Júlio Gonçalves (1963, p. 39-40) acrescenta outros obstáculos à
difusão e circulação de notícias, dando os exemplos da carência de meios
técnicos, da falta de quadros, dos entraves burocráticos e do analfabetismo.
Contudo, o pesquisador não duvida em dizer que as maiores dificuldades a vencer
pela informação “autêntica” são as inerentes aos aspectos negativos da política
de informação seguida pelos governos e outras entidades, nomeadamente o recurso
à censura, que existia, à época, em Portugal, e a outros instrumentos eficazes
e poderosos de controlo informativo.
José
Júlio Gonçalves (1963, 41-42) explica, ainda, que a evolução das mentalidades e
das práticas gerou o direito à Informação (direito a informar, informar-se e
ser informado) e mesmo a obrigação de
informar. Para ele, da informação como dádiva concedida pelos líderes (em que o
veículo por excelência das informações era a “viva voz”), evoluiu-se, com o
advento da imprensa e dos modernos meios electrónicos de comunicação social,
para um sentido de responsabilidade perante a informação. O autor refere, inclusivamente,
que, através dos serviços de informação
pública, os governos dos estados democráticos levam a cabo uma missão social institucionalizada que se
exprime na obrigação de proporcionar informações relevantes aos cidadãos dos
vários estratos sociais. Daí decorre a ideia, sustentada pelo autor, de que
todos os membros da sociedade têm o direito de serem informados livremente e,
por consequência, o direito de opinar, de comunicar e informar livremente os
outros.
O
autor relembra, finalmente que o princípio da liberdade de Informação tem preocupado diversos organismos
internacionais, nomeadamente a ONU, que, por imposição do artigo 19ª da
Declaração Universal dos Direitos do Homem, tem proclamado amplamente a sua
adesão a esse princípio com tripla forma – liberdade de informar, de
informar-se e de ser informado (Gonçalves, 1963, p. 58-60). José Júlio
Gonçalves (1963, p. 59) refere, finalmente, que também através da UNESCO se tem
procurado obter a cooperação internacional com o fim de melhorar os meios de
comunicação, de os tornar mais livres e de alargar as áreas que abrangem, para
atingirem um número de pessoas cada vez maior.
3. Os Meios de Comunicação Social à Luz da
Sociologia (1972)
Em Os
Meios de
Comunicação Social à Luz da Sociologia, José Júlio Gonçalves (1972a),
propõe uma análise sociológica, em termos genéricos ou recorrendo a um exame da
realidade empírica, aos problemas (étnicos/multiculturais) inerentes aos meios
de comunicação social, tema que também aborda na obra Efeitos dos Modernos Meios de Comunicação nas Sociedades Plurais (Gonçalves,
1972b) e nas obras consagradas à recuperação da história do jornalismo colonial
português, nas quais enfatiza o papel que Portugal teve na difusão da
tipografia e do jornalismo pelo mundo (Gonçalves, 1964; 1965b; 1966; 1967).
Retrata, em especial, múltiplos problemas que podem surgir devido a uma
comunicação intercultural deficiente.
Segundo
o autor, há três tipos de sociedades: 1) modernas,
2) tradicionais (também designadas primitivas ou arcaicas) e 3) pluralistas ou plurais. Uma sociedade pluralista resulta da interacção entre as
duas primeiras, conjugando características de ambas mas caminhando no sentido
de se transformar numa sociedade moderna. A sociedade tradicional é
heterogénea, apresenta imobilismo tecnológico e resistência à mudança, bem como
solidariedade de tipo tribal. Evolui lentamente. A “moderna”, caracterizada
pela “europeidade”, é homogénea e culturalmente coesa e não apresenta entraves
à mudança. A sociedade tradicional estaria em “processo de desagregação”; a
moderna, de figurino ocidental, em expansão (Gonçalves, 1972a, p. 63).
Na
perspectiva de José Júlio Gonçalves (1972a, p. 66), o crescente contacto das
sociedades tradicionais com as modernas leva a mais rápidas transformações nas
primeiras. A mídia é, segundo o autor, uma peça chave nesse fenómeno:
as populações ainda
tribalizadas, com o advento da televisão completarão o salto iniciado com a
imprensa, o cinema e a radiodifusão sonora, de um sistema de comunicação de
base marcadamente biológico-mecânico para, sem completo desaparecimento deste,
um outro caracterizado pelo recurso a meios
de comunicação de massa convenientemente estruturados e pelo aparecimento
de novos líderes formais e informais,
em que estes últimos tenderão a ceder o passo àqueles.
Por
que é que a mídia tem esse poder transformador? Segundo José Júlio Gonçalves
(1972a, p. 66):
quando dois ou mais sistemas de
comunicação se põem em contacto, o mais avançado tecnologicamente (...) acaba
(...) por exercer uma espécie de dominância
que produz (...) efeitos sociológicos que vão desde a concessão e alteração de status até à modificação dos padrões de credibilidade e das pautas sociais, morais ou religiosas, etc., aproximando a cidade do
campo, a riqueza da pobreza e, naturalmente, a própria sociedade moderna da
sociedade tribal.
A isso
acresce que:
Em geral, os mass media acumulam-se nas zonas citadinas, permitindo a formação,
ali, de uma elite de proximidade, sem
que o mesmo aconteça nas áreas rurais, não obstante estas constituírem
verdadeiras reservas de valores que
os meios de comunicação não revelam com
a frequência com que o fazem em relação a quem está mais próximo. (Gonçalves,
1972, p. 66-67).
Os
valores das sociedades tradicionais, difundidos pelos respectivos sistemas
comunicativos (simples, assentes em meios bio-mecânicos), mesmo quando
arcaicos, funcionam, porém, explicita o autor, como travões aos processos de
socialização e aculturação promovidos pelos media tecnologicamente avançados
(sistemas comunicativos complexos) próprios das sociedades modernas. Mesmo
assim, defende o autor, devido à acção da mídia moderna sobre as sociedades
tradicionais, notam-se nestas últimas alterações nos estilos de vida, nas
hierarquias sociais, nas relações entre as pessoas, nos padrões de conduta e,
em suma, nas mentalidades. Mais, a imposição de sistemas mediáticos modernos às
sociedades tradicionais põe o domínio sobre os sistemas comunicativos nas mãos
de profissionais, quando antes estava nas mãos dos líderes tradicionais
(Gonçalves, 1972a, p. 68).
Segundo
José Júlio Gonçalves (1972a, p. 68-69), as mensagens geram efeitos verticais
(entre indivíduos de classe social diferente) e horizontais (entre indivíduos
da mesma classe). No entanto, de acordo com o autor, quanto mais complexo e
mutável é um sistema social, mais complexos e difíceis de detectar são os
efeitos da comunicação social. Para ele, nas sociedades africanas, cada vez
mais plurais (no sentido de misturarem traços modernos com traços arcaicos), é
também cada vez mais difícil detectar e prever os efeitos da mídia, até porque,
nelas, o sistema comunicativo moderno coexiste com o sistema comunicativo
tradicional. Contudo, o autor admite a existência de fenómenos de resistência cultural aos valores, modos
de vida e atitudes propostos pela mídia moderna. Inclusivamente, esta
resistência à aculturação e socialização seria mais fortes nas sociedades
plurais, que ainda mantêm sistemas comunicativos tradicionais paralelos aos modernos,
do que nas sociedades modernas, marcadas pela complexidade e mudança.
Nota-se,
na obra, que o autor perfilha várias teses do interaccionismo simbólico. Para
ele, as instituições e grupos sociais são as mais básicas estruturas que se
formam entre indivíduos para a satisfação das mais básicas necessidades.
Comunicar, neste contexto, é indispensável. Essas instituições e grupos são
responsáveis pela atribuição dos papéis e estatutos sociais que são
fundamentais para a estabilidade e harmonia da sociedade. Estes papéis são, no
entanto, afectados pela comunicação. José Júlio Gonçalves (1972a, p. 69) afirma,
nomeadamente, que a mídia tem contribuído para a ocorrência de mudanças nas
instituições e grupos sociais, ao nível das posições, estatutos, papéis sociais,
relacionamentos, comportamentos, sentimentos de vinculação, identificação e
participação, algo que se compreende porque as instituições se estruturam ao
redor de “padrões, papéis e relações que os indivíduos realizam segundo
determinadas formas sancionadas e unificadas com o objectivo de satisfazer
necessidades sociais básicas e que os grupos são conjuntos de pessoas em
interacção e comunicação obedecendo a normas, valores e interesses para
concretizarem certos objectivos” (Gonçalves, 1972, p. 71). No contexto
africano, que o autor tem presente, “os meios de comunicação (...) contribuem
para acelerar o processo de destribalização” (Gonçalves, 1972, p. 72) ao
acelerarem os contractos entre sociedades, ao proporem novas formas de encarar
o mundo e de agir e ao facultarem processos de aprendizagem social alternativos
aos tradicionais. Infelizmente, José Júlio Gonçalves refere que,
tendencialmente, a mídia diz o que as pessoas querem ouvir, para captar
audiências, ressentindo-se as mensagens da “mediocridade do gosto popular” (Gonçalves
(1972a: p. 92).
Abordando,
por outro lado, a questão da objectividade jornalística, José Júlio Gonçalves
(1972a, p. 88 e 90) reconhece que não é possível dar informação pura, mas que é possível pugnar por uma informação objectiva (em que existe
vinculação entre o que é dito e a realidade), embora admita que “objectividade
não é sinónimo de verdade”. De qualquer maneira, o autor sugere que o receptor tem
uma lata liberdade interpretativa e de aceitação ou rejeição das mensagens
(Gonçalves, 1972, p. 90).
De
qualquer modo, o autor recorda, finalmente, que os meios propõem modelos
sociais e projectam, frequentemente, estereótipos. Ora, se “noticiar e fazer
reportagem são duas funções primordiais dos meios de comunicação social”
(Gonçalves, 1972, p. 97), então, segundo ele, torna-se necessário que os
jornalistas tenham uma profunda preparação, incluindo uma boa formação, para
não cometerem erros graves nem gerarem efeitos de boomerang. Salienta, por
exemplo, que um vocábulo usado sem problemas na Europa pode ferir
susceptibilidades em África. Contudo, José Júlio Gonçalves, sem desculpabilizar
os erros jornalísticos, também reconhece que “recolher, verificar, seleccionar informações
para fazer notícias (...) não é tarefa fácil” (Gonçalves, 1972, p. 98).
Considerações finais
Podendo
ou não criticar-se o seu percurso de vida ou a sua obra, que tem as marcas
indeléveis do contexto em que foi produzida, o que é certo é que José Júlio
Gonçalves foi um dos autores portugueses que, desde o prisma das ciências
sociais, conseguiu dar um recorte científico à pesquisa em Comunicação e
Jornalismo em Portugal, num tempo em que se considerava que estas matérias não
tinham dignidade académica para serem estudadas autonomamente como cursos superiores
e em que alguns ainda admitiam, inclusivamente, que o jornalismo não poderia
ser aprendido e ensinado como qualquer outra profissão liberal, já que seriam
os “dotes pessoais” que fariam o jornalista (Bramão,
1899, p. 16; Veloso, 1910/1911; Marques Gastão, 1959).
Conclui-se,
ainda, que o autor, vivendo numa potência colonial, se preocupou em
diagnosticar o estado do jornalismo e da comunicação social em geral no mundo
português, incluindo as então colónias africanas e asiáticas, recuperando
factos olvidados pela história, nomeadamente a intervenção portuguesa na expansão
da imprensa e da tipografia. Atentou, também, nos efeitos transformadores que
tinham os modernos meios de comunicação social nas sociedades tradicionais
africanas, cujas hierarquias, laços e valores se recomporiam por acção desses
meios.
José
Júlio Gonçalves também fez um diagnóstico jurídico-sociológico à situação do
jornalismo português de então, insinuando que a censura era um instrumento de
propaganda do Governo, que, como todos os governos, zelava pelos seus
interesses através da política de informação adoptada. Igualmente advoga a
necessidade de os estados seguirem políticas que consagrem a liberdade de
informação, acto corajoso em plena conjuntura repressiva e censória imposta pelo
Estado Novo. E reconhece, a propósito, que nas democracias a educação que é
dada aos indivíduos e a diversidade de fontes informativas dificulta o controlo
da formação de correntes de opinião por uma única entidade.
Escrevendo
em plena Guerra Fria,
num mundo bipolar, José Júlio Gonçalves preocupa-se em comparar o jornalismo no
mundo comunista ao capitalista. Mas sublinha que o jornalismo nos países
capitalistas não é livre, por causa da intenção lucrativa das organizações
noticiosas, dos lóbis políticos e económicos e dos governos que, em conjunto, enviesam
a informação, ao tentarem que esta dê boa conta dos seus interesses. Realça,
ainda, a existência de outros constrangimentos à produção e circulação da
informação, como o custo e o preço da mesma, a disponibilidade de meios
técnicos, financeiros e humanos, etc.
Em
suma, pode afirmar-se que José Júlio Gonçalves estava, nos anos sessenta,
perfeitamente sintonizado com as questões levantadas pelos pesquisadores da
comunicação, da informação e do jornalismo doutras partes do mundo, tendo-se
preocupado em trazê-las para o campo de estudo dos académicos portugueses e em
apresentá-las com recorte objectivo e científico. Tendo-se em consideração o
relativo deserto da produção sociológica portuguesa sobre essas matérias nessa
época, até porque os estudos sociológicos não interessavam ao regime, pode
justamente considerar-se José Júlio Gonçalves um dos pioneiros da introdução da
sociologia da informação e da comunicação em Portugal.
Referências
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VELOSO, R. Jornalistas Portugueses. Famalicão: Tipografia Minerva, 1910/1911.
[1] Trabalho produzido no âmbito do projecto de pesquisa
Teorização do Jornalismo em Portugal: Das Origens a Abril de 1974, referência
PTDC/CCI-JOR/100266/2008, financiado pela Fundação para a Ciência e a
Tecnologia (Portugal).
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O projecto de Teorização do Jornalismo em Portugal: Das Origens a Abril de 1974 é realizado com o apoio financeiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, através de fundos estruturais da União Europeia, designadamente do FEDER, e de fundos nacionais do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.
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