As histórias da imprensa de Nelson Werneck Sodré e de José Manuel Tengarrinha: uma comparação
Jorge Pedro Sousa
Universidade Fernando Pessoa e Centro de Investigação Media e Jornalismo
Resumo
Neste trabalho, procura-se apresentar e comparar as histórias
da imprensa brasileira e portuguesa escritas, respectivamente, por Nelson
Werneck Sodré e por José Manuel Tangarrinha, tendo em conta o contexto
histórico da respectiva produção e a história de vida dos seus autores. Constata-se
que, apesar da proximidade ideológica entre Sodré e Tengarrinha, a
historiografia do jornalismo construída pelo primeiro é assumidamente marxista,
enquanto o viés do segundo é, principalmente, económico e sociológico, sendo
discursivamente mais “neutro”. Além disso, Sodré, historiador “por ocupação”, só
implicitamente determina períodos na história da imprensa jornalística no
Brasil, enquanto Tengarrinha, historiador profissional, faz da periodização um
dos seus objectivos principais. Mas ambos atentam nos problemas do
constrangimento e controlo da imprensa e nos atentados contra a liberdade de
expressão e de imprensa, o que, inclusivamente, pode ser lido como um reflexo das
suas histórias de vida – ambos foram presos por causa das suas convicções políticas
e ambos lutaram contra regimes ditatoriais.
Palavras-chave: história
do jornalismo; Portugal; Brasil; Nelson Sodré; José Tengarrinha.
Introdução
Nelson Werneck Sodré e José Manuel
Tengarrinha são dois nomes incontornáveis na história da historiografia do
jornalismo impresso no mundo lusófono. As suas obras seminais História da Imprensa no Brasil, lançada
em 1966, e História da Imprensa Periódica Portuguesa, lançada em 1965, são
exemplos pioneiros de resgate de factos olvidados do jornalismo no espaço
lusófono, por eles recuperados para a memória colectiva. Ambas implicaram
abundante pesquisa em arquivos e intensa consulta documental. Sodré terá
passado cerca de trinta anos a pesquisar os factos que relata na História da Imprensa no Brasil, conforme
é revelado no livro. Mas mais importante do que isso, as duas obras apresentaram
e sistematizaram dados que permitiram pesquisa posterior e providenciaram a
milhares de estudantes e professores um conhecimento referencial sobre o
jornalismo impresso no Brasil e em Portugal.
Face à importância dessas obras, este
trabalho tem por objectivo genérico apresentar e enquadrar, interpretando-as, a
História da Imprensa no Brasil e a História da Imprensa Periódica Portuguesa,
editadas pela primeira vez quase em simultâneo, comparando-as e identificando
eventuais pontos de confluência e divergência entre elas. Materializando esse
objectivo em questões de investigação, podem ser colocadas as seguintes: Como
são e o que narram as histórias da imprensa portuguesa e brasileira escritas
por Tengarrinha e Sodré? Que semelhanças e diferenças apresentam? Qual o seu
enquadramento? Têm antecedentes? As histórias de vida dos seus autores pode
ajudar a explicá-las?
Para a análise das obras, usaram-se as
últimas edições disponíveis, isto porque a edição de 1989 da obra de José
Manuel Tengarrinha é uma edição revista e ampliada e a edição de 1999 do livro
de Nelson Werneck Sodré possui um capítulo inédito, intitulado “O pensamento de
Nelson Werneck Sodré sobre a imprensa e os meios de comunicação de massa no
Brasil nos últimos anos”. Obviamente, a interpretação e o enquadramento que
aqui são desenhados para as obras em causa são pessoais, ainda que tenha sido
nossa pretensão demonstrá-los com provas textuais.
1. Antecessores de
Sodré e Tengarrinha
Não obstante dever ser reconhecido o
carácter pioneiro das duas obras aqui analisadas, e que justifica a presente
pesquisa, é preciso salientar que não há história sem memória. De facto, quando
as histórias da imprensa de Sodré e de Tengarrinha foram lançadas, já existiam,
quer em Portugal, quer no Brasil – e principalmente no Brasil, importantes
fontes secundárias para a produção historiográfica sobre a imprensa. Assim, embora
não desconsiderando o mérito de ambos os autores, há que reconhecer que as
obras de Tengarrinha e Sodré são tributárias de pesquisas anteriores, apesar do
contributo original à historiografia da imprensa que também dão.
1.1 Brasil
No Brasil, Nelson Sodré teve antecessores
na historiografia da imprensa, e que lhe serviram de fonte, conforme se pode
constatar lendo a honesta bibliografia da sua História da Imprensa no Brasil.
Desde logo, em 1865, Moreira de Azevedo
escreveu Origem e Desenvolvimento da
Imprensa no Rio de Janeiro. Em 1898, Xavier Veiga inventariou a evolução da
imprensa mineira, em A Imprensa em Minas Gerais (1807-1897). O nome de
referência da pioneira historiografia da imprensa no Brasil terá sido, no
entanto, Alfredo de Carvalho, que, em 1908, publicou a obra Anais da Imprensa Periódica Pernambucana,
centrada no inventário dos jornais pernambucanos publicados entre 1821 e 1908.
Alfredo de Carvalho, em parceria com João Torres, lançou, ainda, os Anais da Imprensa da Bahia – 1º centenário –
1811 a
1911, em 1911. A
historiografia do jornalismo brasileiro nasceu, assim, sob a forma de uma
historiografia estadual ou mesmo local, continuada em variadíssimas outras
obras, como aquela que Afonso de Freitas editou em 1915, sobre a génese do
jornalismo paulista, intitulada A
Imprensa Periódica de São Paulo desde Seus Primórdios em 1823 até 1914. O
mesmo tema seria, aliás, retomado por Freitas Nobre, em 1950, na História da Imprensa de São Paulo.
Em 1941, Gondim da Fonseca publicou, no
Rio de Janeiro, a Biografia do Jornalismo
Carioca (1808-1809), incidindo no período pré-independência. Trata-se de um
livro que remete para uma historiografia de carácter regional mas também para
um período concreto: o da chegada da Corte ao Rio de Janeiro e do processo que
veio a conduzir à Independência do Brasil. Aliás, já antes, em 1917, Basílio de
Magalhães tinha escrito sobre Os
Jornalistas da Independência, relatando, precisamente, a tumultuosa
vivacidade dos jornais pré e pós Independência. O mesmo tema geral serviu de
mote, também, a Mecenas Dourado, que escreveu, em 1957, a obra Hipólito da Costa e o Correio Brasiliense,
sobre o primeiro jornalista brasileiro. Hélio Viana, na sua Contribuição à História da Imprensa
Brasileira (1812-1869), de 1945, também disseca o jornalismo num período
que se estende da pré-Independência a meados do reinado de D. Pedro II.
Carlos Rizzini, com a sua obra O Livro, o Jornal e a Tipografia no Brasil,
lançada em 1946, também pode ser considerado um dos principais historiógrafos
da imprensa brasileira, entendida em sentido amplo. O autor resgata a evolução
da mídia impressa brasileira e da tipografia. A história que constrói situa-se
entre a inventariação e a narração, mas estende-se dos jornais aos livros e à
tipografia, não se centrando, portanto, no jornalismo. As questões relacionadas
com a introdução da tipografia no Brasil também são abordadas por Alexandre
Passos, no livro A Imprensa no Período
Colonial, de 1952.
Pode igualmente ser relembrado o ensaio de
Wilson Martins intitulado A Palavra
Impressa, de 1957. Embora não se centre especificamente no jornalismo
brasileiro, o seu resgate da história dos livros e das bibliotecas, e as
referências que faz aos jornais, contribuem para lançar luz sobre a emergência
do jornalismo no mundo e no Brasil.
Entre as principais obras sintéticas da
historiografia da imprensa brasileira, merece destaque especial o
extraordinário trabalho de Juarez Bahia, que pode ser comparado ao de Sodré,
embora este último tenha, aparentemente, recorrido a mais fontes primárias documentais
do que Bahia.
A primeira obra de historiografia
sintética de Juarez Bahia intitulou-se Três
Fases da Imprensa Brasileira, sendo referida por Nelson Sodré na
bibliografia da História da Imprensa no
Brasil. Lançado em 1960, Três Fases
da Imprensa Brasileira foi um dos primeiros livros a sugerir uma
periodização para a história da imprensa no Brasil, tendo-se tornado a base do
primeiro volume da obra maior de Bahia Jornal:
História e Técnica, de 1964, já não referenciada na bibliografia de Sodré.
Para Juarez Bahia, pode considerar-se a existência de três períodos no
jornalismo brasileiro: o surgimento, fase marcada pelo jornal como “aventura
individual”; uma fase de consolidação; e finalmente a fase industrial.
Entre as fontes de Sodré, deve ainda ser
destacada a contribuição de Rui Barbosa, o primeiro autor a discutir, com
profundidade, no Brasil, a ética, a legislação e os valores jornalísticos,
defendendo um jornalismo apegado aos valores da verdade e da factualidade, no
livro A Imprensa e o Dever da Verdade,
de 1920. Essa tradição de discussão, identicamente explorada por Barbosa Lima
Sobrinho, em O Problema da Imprensa, de 1932 (obra que Sodré
não refere na bibliografia, apesar de se referir ao autor na História da Imprensa no Brasil), é, de
algum modo, recuperada por Sodré.
Finalmente, uma chamada de atenção para o
facto do interesse pela história do jornalismo brasileiro não se ter restrito
ao Brasil. Por exemplo, em 1929, em Portugal, Alberto Bessa publicou 100 Anos de Vida – A Expansão da Imprensa
Brasileira no Primeiro Século da Sua Existência, e, em 1942, Jaime de
Barros lançou, em Buenos
Aires, o livro Evolución
del Periodismo en el Brasil, decorrente de uma conferência, na qual
discorreu sobre a introdução da tipografia no Brasil, o Brasil holandês, a
chegada de D. João VI e a introdução da imprensa, a imprensa da independência,
etc., assuntos, de resto, comuns a várias obras de síntese sobre a história do
jornalismo brasileiro. Do mesmo modo, a curiosidade brasileira pela história do
jornalismo no mundo também é manifesta em livros como A Imprensa, Ontem e Hoje, no Brasil, na América, Europa, Ásia, África e
Oceânia, de Antônio Cícero, lançado em 1938. Os dois últimos livros aqui
referidos foram usados por Sodré, conforme este reconhece na bibliografia da História da Imprensa no Brasil. E se bem
que Nelson Sodré não tenha usado o livro de Alberto Bessa acima referido (100 Anos de Vida), usou outro do mesmo
autor, com uma importante componente historiográfica: O Jornalismo, de 1904.
1.2 Portugal
O interesse de autores portugueses pela
história do jornalismo, em particular pela história da imprensa, terá começado
em 1857, ano em que Tito
de Noronha escreveu Ensaios Sobre a
História da Imprensa, acerca da introdução e evolução da tipografia em Portugal. Nessa
obra, são apresentados dados sobre as primeiras relações e folhas noticiosas
bem como sobre os primeiros jornais portugueses (onde foram impressos, quem os
imprimiu, etc.).
A partir de meados do século XIX, vários
autores portugueses publicaram obras sobre a história do jornalismo (por
exemplo: PEREIRA, 1895, 1897; BESSA, 1904; CUNHA, 1941; MARTINS, 1942; SALGADO,
1945), sendo a mais importante a de Tengarrinha, dada à estampa pela primeira
vez em 1965 e reeditada em 1989, revista e actualizada.
António Xavier da Silva Pereira é, talvez,
o primeiro caso particular a salientar entre os historiadores portugueses do
jornalismo. Embora cheios de incorrecções, os seus catálogos dos jornais
portugueses (PEREIRA, 1895; PEREIRA, 1897) são o resultado de um esforço
pessoal de inventariação de todos os jornais publicados em Portugal até à data,
com indicações sobre os fundadores, anos de publicação e vários outros dados
hemerográficos. O autor identifica sete períodos na história do jornalismo
português: Infância do Jornalismo Português (1625 a 1750); Época
Pombalina (1750 a
1807); Dominação Estrangeira (1807
a 1820); Lutas entre Absolutistas e Constitucionais (1820 a 1833); Lutas entre
Cartistas e Setembristas (1833
a 1851); Regeneração (1851 a 1861); e Reinado de
D. Luís I (1861 a
1889).
Também deve ser salientado entre os
historiadores da imprensa o nome de Alfredo da Cunha, antigo director do Diário de Notícias. O seu principal livro, Elementos
para a História da Imprensa Periódica Portuguesa 1641 – 1821, editado em
1941, embora tributário, também ele, de obras anteriores, dá a conhecer com minúcia o trajecto da imprensa
periódica portuguesa entre os séculos XVII e XIX (essencialmente até à
Revolução Liberal de 1820 e período subsequente). Interessantemente, Alfredo da
Cunha (1941), tal como Tengarrinha, associa o grau de desenvolvimento do
jornalismo português ao grau de liberdade de imprensa de que beneficiou em cada
época. Este juízo de Alfredo da Cunha pode, inclusivamente, ser lido
como uma crítica indirecta à censura exercida pelo regime ditatorial de
Salazar. Aliás, Alfredo da Cunha (1941, p. 8) faz uma observação curiosa quando
se refere às contradições do uso da expressão “liberdade de imprensa”,
afirmando que “o (...) intuito [do uso dessa expressão] não tem sido outro
senão restringir ou refrear aquela liberdade”.
Entre outras obras relevantes, merece
igual destaque o livro de Joaquim Salgado (1945) intitulado Virtudes e Malefícios da Imprensa.
Embora a história do jornalismo seja o tema principal da obra, o autor
afasta-se dele em numerosas ocasiões, para discorrer sobre a ética
jornalística, tendo mesmo sido o primeiro autor português a usar a palavra
“ética” no título de um livro sobre jornalismo.
Para Salgado (1945, p. 60-61), há a
considerar três períodos na história do jornalismo português: uma primeira de
predomínio do jornalismo noticioso que se arrasta até cerca da Revolução
Liberal; uma segunda que corresponde ao aparecimento, predominância e posterior
crise do jornalismo político e partidário; e a terceira, correspondente ao
aparecimento e gradual predominância dos jornais de informação geral
pertencentes a grandes empresas, no seio do sistema capitalista.
É interessante notar, tal como procurou,
depois, fazer Tengarrinha (1965), que Salgado tenta interpretar o
desenvolvimento da imprensa em função do contexto social, económico, técnico e
cultural de cada época, para o que dá a seguinte justificação: “a imprensa
sofre e beneficia das condições gerais que regulam as sociedades. Se estas são
boas – ela desempenha salutarmente a sua função; se más, ressente-se dos vícios
gerais, e espalha-os, consideravelmente ampliados” (SALGADO, 1945, p. 8). Nos
últimos capítulos do seu livro, o autor salienta que o carácter mercantil e
industrial do jornalismo contemporâneo, que reconhece como necessários, afectam
a independência da imprensa e empurram-na para o sensacionalismo (SALGADO, 1945,
p. 59-88).
Para além dos livros atrás citados, várias
outras obras historiografam o jornalismo português, tendo um carácter colonial,
regional, local e até restrito a um determinado jornal. Várias delas serviram
de fonte secundária a Tengarrinha, conforme o próprio reconhece na bibliografia
da sua História.
2. Os autores
2.1 Nelson Werneck
Sodré
Nelson Werneck Sodré nasceu em 1911 e
faleceu em 1999. Militar de carreira, chegou a general e ensinou História
Militar na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, mas o seu engajamento
político com a esquerda marxista e o PCB valeu-lhe, em algumas ocasiões, a
proibição de circulação de algumas das suas obras e duas prisões, a última das
quais em 1964, por se ter recusado a apoiar o regime militar.
Em 1934, Sodré começou uma longa
colaboração com jornais, inicialmente como crítico literário do Correio Paulistano. Historiador “por
ocupação”, mais do que por formação ou profissão, tentou fazer história de
forma séria e rigorosa, amplamente documentada, ainda que sempre à luz de uma
interpretação marxista e dialéctica da marcha dos tempos. Essa intenção é
notória logo no seu primeiro trabalho historiográfico, intitulado História da Literatura Brasileira – Seus
Fundamentos Económicos, editado em 1938. Prossegue essa orientação em obras
como Panorama do Segundo Império (1939),
Orientações do Pensamento Brasileiro (1942),
Síntese do Desenvolvimento Literário do
Brasil (1943), Formação da Sociedade
Brasileira (1944) e mesmo O que Se
Deve Ler para Conhecer o Brasil (1945).
Quando ingressa no
professorado do Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (IBESP)
– posteriormente renomeado ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros, no
início dos anos 1950, Sodré torna-se conhecido por partilhar as teses
nacionalistas que, desde o início do governo Kubitschek, queriam evitar a
participação de capitais estrangeiros na economia brasileira, preservando o
carácter autónomo do processo de industrialização do Brasil. Acelera, então, a
sua produção intelectual, toda ela enquadrada pelo pensamento marxista, materializada
em livros como As Classes Sociais no
Brasil (1957), História Nova do
Brasil, A Ideologia do Colonialismo (1961),
História da Burguesia Brasileira (1964),
História Militar do Brasil (1965), Evolución Social y Económica del Brasil (1965),
História da Imprensa no Brasil (1966),
Fundamentos da Economia Marxista (1968),
Fundamentos do Materialismo Histórico (1968),
Fundamentos do Materialismo Dialéctico (1968),
Síntese da História da Cultura Brasileira
(1970), História e Materialismo
Histórico no Brasil (1984), entre outros, de carácter puramente político ou
político-historiográfico, vários deles escritos após o golpe militar de 1964
2.2 José Manuel
Tengarrinha
José Manuel Tengarrinha nasceu em 1932.
Exerceu o jornalismo entre 1953 e 1962, colaborando com os jornais República, Diário de Notícias, O Século e
Diário de Lisboa e com as revistas Seara Nova e Vértice. Chegou a chefe-de-redacção do Diário Ilustrado.
Tengarrinha licenciou-se em Ciências
Histórico-Filosóficas, na Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa, tendo, logo na dissertação de licenciatura, intitulada António Rodrigues Sampaio, Desconhecido,
enveredado pelo estudo do jornalismo oitocentista e dos seus cruzamentos com a
política, orientação que seguirá em parte da sua obra historiográfica,
materializada em livros como Da Liberdade
Mitificada à Liberdade Subvertida (1993) e Imprensa e Opinião Pública em Portugal (2006), bem como em dezenas
de artigos científicos. Como historiador, José Tengarrinha lançou ainda várias
outras obras, quer sobre a política oitocentista (compilou e anotou,
nomeadamente, a obra política de José Estêvão e de Manuel Fernandes Tomás),
quer sobre a leitura (A Novela e o Leitor
Português: Estudo de Sociologia da Leitura, 1973), quer ainda sobre o mundo
agrário, tendo, nomeadamente, publicado, neste âmbito, os livros Movimentos Populares Agrários em Portugal
(1994) e Notas Breves sobre a
Historiografia dos Movimentos Agrários (1995). Também é assinalável a sua
obra de intervenção política e cívica, patente em textos como Combates pela Democracia (1976) e Centros e Periferias, Dinamismos e
Bloqueios: Portugal e Espanha na Entrada do Mundo Contemporâneo (1995).
Merece idêntico destaque a sua restante obra historiográfica e de reflexão
historiográfica, materializada em livros como Historiografia Luso-Brasileira Contemporânea (1999), Estudos de História Contemporânea de
Portugal (1983) e E o Povo, Onde
Está? (2008).
Ideologicamente de
esquerda, embora nunca tenha sido militante comunista, José Tengarrinha foi um
dos líderes da oposição democrática durante o período do Estado Novo, tendo,
nomeadamente, participado na fundação da Comissão Democrática Eleitoral, em
1968, e sido candidato a deputado. Perseguido pela ditadura, foi impedido de
leccionar e publicar artigos em jornais. Chegou mesmo a ser preso seis vezes.
Após a Revolução de 25 de Abril de 1974, foi eleito deputado pelo MDP-CDE,
partido próximo do PCP, do qual foi líder, e regressou ao ensino universitário,
tendo concluído o doutoramento em História, em 1993, com uma tese sobre Censura na Política Liberal: Uma Exploração
no Interior da Repressão à Imprensa Periódica de 1820 a 1828.
Actualmente, é professor catedrático jubilado da Universidade de Lisboa.
3. A história da imprensa brasileira de Nelson
Werneck Sodré
Antes de mais, deve observar-se que Nelson
Werneck Sodré se vê a si mesmo como um historiador adversário daquela que ele
considera a “historiografia oficial”, conforme se deduz em várias passagens do
seu livro, o que lhe faculta o posicionamento contra-corrente, potencia a sua
liberdade interpretativa e lhe permite fazer leituras fortemente ideológicas
(marxistas) da história do jornalismo impresso no Brasil.
A imprensa brasileira, segundo Nelson
Sodré, “nasceu com o capitalismo e acompanhou o seu desenvolvimento” (SODRÉ,
1999, p. X). Esta frase simples indicia o enquadramento materialista que Sodré
dá à história da imprensa. Para ele, a infra-estrutura capitalista determinou e
condicionou a génese e evolução dos jornais, no Brasil e não só. O viés é
classicamente marxista: a infra-estrutura determina a super-estrutura. Assim,
para ele, o surgimento e o desenvolvimento da imprensa resultaram da
“necessidade social” da burguesia mercantil em possuir dispositivos técnicos de
disseminação ideológica, crescentemente potentes e aprimorados, que facultassem
a sua “ascensão” à categoria de classe dominante e a prevalência indefinida do seu domínio (SODRÉ, 1999, p. 2-3,
5-6 et passim). Nesse quadro, o
próprio conceito de liberdade de imprensa é encarado por Sodré (1999, p. 2)
como um conceito burguês surgido para subtrair ao Estado e à aristocracia, em
beneficio da burguesia mercantil, o controlo sobre a imprensa, num contexto de
luta de classes.
A História
da Imprensa Brasileira escrita pelo “pai da história nova” (Marques de
Melo, 2007, p. 8) pode, assim, ser lida como uma história particular da luta de
classes no Brasil e das tentativas burguesas de controlo do jornalismo,
vinculadas ao desenvolvimento do capitalismo:
a história da imprensa é a
própria história do desenvolvimento da sociedade capitalista. O controle dos
meios de difusão de ideias e de informações – que se verifica ao longo do
desenvolvimento da imprensa, como reflexo do desenvolvimento capitalista (...)
– é uma luta em que aparecem organizações e pessoas da mais diversa situação
social, cultural e política, correspondendo a diferenças de interesses e
aspirações. Ao lado dessas diferenças, e correspondendo ainda à luta pelo
referido controle, evolui a legislação reguladora da actividade da imprensa
(SODRÉ, 1999, p. 1).
Assim, no diagnóstico que faz, na edição
de 1999, ao estado da imprensa brasileira, Nelson Sodré (1999, p. XI) realça,
logicamente, a estreita relação entre o desenvolvimento da imprensa e o
capitalismo, ao sustentar que não surgem novos grandes jornais no Brasil, e que
os grandes jornais que existem são “sombras do que foram”, porque os avanços
tecnológicos impõem investimentos tão vultuosos que não só desencorajam
investimentos em novos jornais como também colocam as empresas jornalísticas da
imprensa, obrigadas a fazê-los (não os fazerem seria a sua morte), em situação
financeira periclitante (SODRÉ, 1999, p. XI). A mesma razão explicaria os
fenómenos de concentração empresarial no sector da comunicação social e a
falência de muitas empresas jornalísticas da imprensa, incapazes de suportar os
elevados custos de funcionamento e reconversão tecnológica. Por outro lado, a
enorme dependência das receitas publicitárias que as grandes empresas
jornalísticas denotam torná-las-ia frágeis e condicionadas, levando-as a
sintonizarem-se com os interesses e valores do grande capital e não com o seu
público (SODRÉ, 1999, p. XIII-XIV). Por isso, quando a imprensa “preserva e
realça os valores da grande empresa, está realçando os valores do próprio
jornal ou revista. Não mais se limita a servir, serve-se também. A publicidade
atende a um conjunto de interesses a que o jornal ou revista se incorpora.”
(SODRÉ, 1999, p. XIV)
Bem patente, também, no pensamento de
Sodré (1999, p. XIII), classicamente marxista, é a ideia de que quem controla a
comunicação social controla ideologicamente a sociedade. Ele é claro: quem
“controla” a “mercadoria especial que é a informação”, “controla o poder”
(SODRÉ, 1999, p. XV). Mais ainda:
A ligação dialética é
facilmente perceptível pela constatação da influência que a difusão impressa
exerce sobre o comportamento das massas e dos indivíduos. O traço consiste na
tendência à unidade e à uniformidade (...), à (...) universalização de valores
éticos e culturais (...) [e à] padronização do comportamento. As inovações
técnicas (...) influem na tendência à uniformidade. (SODRÉ, 1999, p. 1-2)
Para o referido autor, se no tempo do
colonialismo a ideologia dominante no Brasil radicava nas ideias de que os
negros “inferiores” estavam predestinados a trabalhar para os brancos e de que
nos climas tropicais seria impossível fazer emergir civilizações avançadas, nos
dias que correm a comunicação social brasileira estaria ocupada em fazer
aceitar o domínio inelutável do neoliberalismo, “vinculada ao ritmo de avanço
do capitalismo brasileiro” (SODRÉ, 1999, p. XIII e p. XV-XVI). Porém, embora
claro, Sodré também aparenta alguma contradição no seu pensamento, já que diz
que os jornais são uniformes, que deformam ou escondem a realidade, que
perderam “aquilo que se conhece como credibilidade”, quase se limitando, assim,
a difundir hegemonicamente a ideologia neoliberal, mas ao mesmo tempo,
paradoxalmente, afirma que “existe profundo divórcio entre o que o público
pensa e acredita (...) e aquilo que a grande imprensa veicula” (SODRÉ, 1999, p.
XVI). Em consequência, implicitamente Sodré parece contradizer-se, pois o autor
parece reconhecer que, afinal, o poder da imprensa na definição de uma
ideologia dominante, hegemónica, não é assim tão intenso. No entanto, também é
interessante notar que Sodré não considera a imprensa brasileira um verdadeiro
meio de comunicação de massas, pois não chega à maioria da população (SODRÉ,
1999, p. IX; p. XIV-XV). Assim sendo, teria de ser relativizado o seu poder na
disseminação ideológica hegemónica, quando comparada com outros meios – o que
não significa, para o autor, que esse poder não exista.
Sodré também manifesta um arraigado
nacionalismo “anti-imperialista” quando se refere à imprensa. É este
nacionalismo que o leva a criticar, talvez com excesso, a alegada dependência
que a imprensa brasileira teria do capital estrangeiro e das grandes agências
internacionais de publicidade e de notícias. Os “jornais se assemelham” porque
todos se servem dessas agências, apesar de, “em alguns casos, procuram se
emancipar, mantendo correspondentes no exterior” (SODRÉ, 1999, p. XV).
O livro de Nelson Sodré divide-se em seis
capítulos, dedicados à imprensa colonial, à imprensa da independência, ao
pasquim, à imprensa no Império, à grande imprensa e à crise da imprensa –
constituindo, portanto, uma divisão tão baseada na evolução da organização
política do Brasil quanto o é nas características imanentes à própria imprensa.
a) Imprensa Colonial
Este capítulo é centrado na defesa da tese de
que foi por motivos de manutenção do exclusivo da exploração colonial,
destrutiva das culturas nativas; por considerações de ordem política e
religiosa; e ainda pela “ausência de condições materiais”, “ausência de
capitalismo, ausência de burguesia” (SODRÉ, 1999, p. p. 28), que o Brasil não
teve uma indústria tipográfica e jornalística consolidada antes do século XIX,
ao contrário do que sucedeu noutros países da América Latina. Para Sodré, a
censura administrativa e religiosa portuguesa foi mais intensa no Brasil do que
na própria metrópole, pois teria sido essa a única forma de assegurar o domínio
colonial português, mas as condições materiais, nomeadamente a inexistência,
num país maioritariamente analfabeto, de uma burguesia mercantil com interesses
políticos, também ajudam, segundo o autor, a explicar o retardamento da
implantação da tipografia e do jornalismo no Brasil. De qualquer modo, e
conforme relata Nelson Sodré, a circulação de livros e jornais no Brasil
colónia era vista como suspeita, sendo impostas medidas contra a instalação de
tipografias (como aconteceu no Recife, em 1706, e no Rio, em 1747) e contra a
importação de livros e jornais que pudessem espalhar ideias revolucionárias e
liberais. A situação só começou a mudar com a transferência da Corte de Lisboa
para o Rio de Janeiro, em 1808, e com o início da publicação, a 10 de Setembro
de 1808, do primeiro periódico impresso no Brasil, a “oficial” Gazeta do Rio de Janeiro, pois para
Sodré é discutível considerar-se o Correio
Brasiliense, também de 1808, mas de
1 de Junho, redigido por Hipólito José da Costa, como um periódico brasileiro,
pelo facto de ter surgido e ser mantido “por força (...) de condições externas”,
embora o autor também diga que a Gazeta é
um mero “arremedo de imprensa”[1] (SODRÉ,
1999, p. 20).
O autor sustenta que a “perseguição” com “altos
e baixos” que foi movida ao Correio pelo
Poder Régio resultou, principalmente, do apoio dado por Hipólito à abertura dos
portos brasileiros às nações unidas, que arruinou o monopólio português do
comércio com o Brasil, e assegura, assumindo posição inversa, por exemplo, à de
José Manuel Tengarrinha (1989, p. 91), que “foram repetidos os entendimentos
das autoridades com Hipólito da Costa, mesmo de pessoas acreditadas por D. João
para esse fim. As perseguições (...) não partiram do príncipe, mas de subordinados
seus, inclusive ministros.” (SODRÉ, 1999, p. 27) Além do mais, segundo Sodré, o
Correio teria tido pouca influência
no Brasil, até porque “quando as circunstâncias exigiram, apareceu aqui
[Brasil] a imprensa adequada” (SODRÉ, 1999, p. 28). Aliás, o tom com que Sodré
se refere ao Correio nem sempre é
abonatório – o que talvez esteja relacionado com o facto de o jornal não ter
sido uma iniciativa proletária, mas sim uma espécie de “revista doutrinária”
(SODRÉ, 1999, p. 22) independente e editada em Londres, resultado da iniciativa
privada de um burguês instruído mas exilado, que escrevia sobre os problemas
brasileiros “mais segundo as condições internacionais do que nacionais” (SODRÉ,
1999, p. 21). Atribui-lhe, além disso, “uma finalidade moralizadora, não
modificadora, ética e não revolucionária” (SODRÉ, 1999, p. 23), opções
editoriais que, ideologicamente, são quase irrelevantes para Werneck Sodré,
nomeadamente se comparadas com a autenticidade e capacidade interventiva que
reconhece aos pasquins, conforme se verá a seguir.
Totalmente inverso é o enquadramento que
Sodré sugere para o manifesto político Preciso,
impresso durante a rebelião republicana do Recife (1817), que teve um cunho
mais proletário do que burguês, no qual se “colocava o problema da liberdade,
até aí posto em plano secundário, no processo da Independência” (SODRÉ, 1999,
p. 37) Sodré (1999, p. 37) chega mesmo a afirmar que esse episódio “a rigor,
caracteriza o início da imprensa brasileira”. Aliás, a narração desse episódio
serve a Sodré para, implicitamente, tentar demonstrar a existência, no Brasil
colónia, de uma consciência proletária de classe anti-imperialista e
anti-colonialista.
Nelson Sodré relembra, seguidamente, a gazeta
“oficialista” baiana A Idade de Ouro do
Brasil e os jornais áulicos, subvencionados pelo Poder Régio para combater
a influência do Correio Brasiliense,
embora, para Sodré (1999, p. 34), “considerar essa imprensa áulica – impressa
no Brasil ou fora – como brasileira, e mesmo como imprensa, parece exagero”
São amplamente narradas na História da Imprensa de Sodré, com
suporte documental, as histórias, muitas delas pessoais (frei Tibúrcio,
Evaristo da Veiga, frei Caneca, Manuel António de Castro, padre Inácio José de
Macedo, Diogo de Bivar...), em torno da fundação das tipografias; da criação de
livros e do comércio livreiro; e sobretudo da produção e comércio de jornais. O
autor enfatiza, também, as tentativas de controlo do Poder Régio e
aristocrático sobre todos esses sectores e as reacções, pessoais e de classe,
que isso originou. Isso motiva mesmo Sodré (1999, p. 34) a ajuizar que “o
problema da imprensa é (...), em última análise, político.”
b) Imprensa da Independência
Neste capítulo, também ele ilustrado com
abundantes passagens de documentos e textos de jornais e com a narração das
acções de várias personagens (D Pedro I, padre Venâncio de Resende, Soares
Lisboa, Joaquim Gonçalves Ledo, Januário da Cunha Barbosa, José de Alencar, Luís
May, José Bonifácio...), é enfatizada, mais uma vez, dentro do viés marxista
que Sodré imprime a todo o seu livro, a dialéctica controlo – resistência no
campo do incipiente jornalismo brasileiro. De facto, para esse historiador, a
Independência não trouxe liberdade de imprensa ao Brasil, mas sim a continuação
da censura e da repressão: “É na medida em que compreendem a necessidade de
limitar a Independência que os representantes da classe dominante colonial
opõem restrições à liberdade de imprensa” (SODRÉ, 1999, p. 42 e p. 45). Segundo
Nelson Sodré (1999, p. 42), essa circunstância “reflete bem o temor à liberdade
que a classe dominante (...) conservava” e que a teria levado a publicar
legislação contra as “doutrinas incendiárias e subversivas”. O que, aliás,
merece ao autor o seguinte comentário: “Pela primeira vez na nossa história, e
logo nos primeiros dias de vida política autónoma, aparecia o chavão das
‘doutrinas subversivas’, tão prodigamente utilizados (...) para acobertar os
atentados à liberdade” (SODRÉ, 1999, p. 42). No entanto, para o marxista Sodré
(1999, p. 46), “via de regra, quando as forças retrógradas conseguem paralisar
o avanço, pela força ou pela manobra, provocam inevitável radicalização da etapa
subsequente, processo dialético de que os protagonistas raramente se dão
conta”.
O autor gasta bastantes páginas, neste
capítulo, a procurar demonstrar as condições materiais e políticas que
sustentaram o longo e tumultuoso processo que conduziu à Independência do
Brasil, colocando-o, frequentemente, como uma questão de reacção
anti-colonialista de brasileiros das várias classes sociais, unidas apenas enquanto
isso interessou à “classe dominante colonial” (SODRÉ, 1999, p. 44-45). É nesse
contexto que, para o historiador, devem ser lidos os avanços na liberdade de
imprensa, intensificados pelo triunfo da Revolução Liberal em Portugal, em
1820. Assim, a partir de 1821, começaram a fundar-se novos jornais no Brasil, de
perfil diferente, sendo de destacar o Aurora
Pernambucana, editado no Recife, primeiro periódico que, para Sodré (1999,
p. 50), já não se integra na imprensa áulica, mas sim na imprensa da pré-Independência,
bem como, na mesma cidade, em 1825, o Diário
de Pernambuco, o mais antigo periódico em circulação na América Latina,
orientado não para a política, mas sim para o lucro, promovendo as notícias
comerciais e a publicação de anúncios. De qualquer modo, graças ao
panfletarismo, o debate político entre adeptos da Constituição liberal e seus
adversários transbordou para os novos jornais, fundados com ritmo intenso, mas
permitiu, também, o surgimento da imprensa independentista, da qual o primeiro
exemplo é o Revérbero Constitucional
Fluminense, lançado a 15 de Setembro de 1821.
Ainda assim, conforme realça Sodré, a
Independência não trouxe ao Brasil, num primeiro momento, nem liberdade de
imprensa nem, muito menos, democracia, mas deve ser saudado o “período rico
(...), quando aparecem, e proliferam, os periódicos (...) de combate, de
linguagem virulenta, em que a historiografia oficial tem visto apenas os
aspectos negativos, sem sentir neles o fecundo exemplo (...) de avanço no
esclarecimento da opinião.” (SODRÉ, 1999, p. 82).
c) O pasquim
Este capítulo inicia-se pela apresentação da turbulenta
situação política pós-Independência, tema a que volta repetidamente, sendo enaltecidos
os avanços liberais e progressistas, “quando os valores nacionais se afirmam”, especialmente
quando esses avanços foram de matriz republicana. Pelo contrário, são
criticadas as reacções conservadoras e os subsequentes atentados contra a
liberdade de imprensa. Aliás, o autor sugere que a própria abdicação de D.
Pedro I resultou mais da “separação entre o imperador e largas camadas da
população” (SODRÉ, 1999, p. 86) do que de uma necessidade de regressar a
Portugal para resolver os problemas criados pelo seu irmão, D. Miguel, que
tinha instituído um regime absolutista e despótico e destronado a Rainha
legítima, Dona Maria, filha de D. Pedro. É criticado o próprio Segundo Império,
“em que a historiografia oficial vê sempre a ordem, a democracia, o
desenvolvimento, quando, na verdade, foi a mais (...) atrasada [época] de nossa
história” (SODRÉ, 1999, p. 85).
São os períodos de avanço liberal que, de
acordo com Sodré, permitiram o surgimento do pasquim, “imprensa peculiar, cujos
traços de grandeza e autenticidade são normalmente apresentados como impuros”
(SODRÉ, 1999, p. 85). O autor realça o papel de periódicos doutrinários já
anteriormente referidos, como o Revérbero
ou o Malagueta, mas também o
surgimento de novos jornais combativos, um pouco por todo o Brasil, como o Aurora Fluminense (1827), de Evaristo da
Veiga e José Apolinário, O Compilador
Mineiro (1823), A Sentinela de Serro (1830),
O Farol Paulistano (1827) e O Observador Constitucional (1829). A
fase do pasquim é, assim, encarada por Sodré como a fase de alastramento do
jornalismo pelo território brasileiro, fruto de iniciativas individuais ou de
grupo, normalmente de liberais, de esquerda ou de direita, como Cipriano
Barata, que, aos 60 anos ainda redigiu o Sentinela
da Liberdade na Guarita de Pernambuco (1823), mas também de “imperialistas”
como José da Silva Lisboa, fundador, entre outros periódicos, da Causa do Brasil e do Triunfo da Legitimidade contra Facção de
Anarquistas. Apareceram, também, jornais republicanos com o Repúblico, de 1830. De salientar, ainda,
a reacção do Poder Imperial, através de jornais comprados ou financiados, como
o Diário Fluminense ou a Gazeta do Brasil. São também
apresentadas, negativamente, as prisões de jornalistas doutrinários por crimes
de abuso de liberdade de imprensa ou por se manifestarem contra a ordem
vigente, por vezes no contexto de golpes e rebeliões.
Sodré relembra, ainda, a imprensa em língua
estrangeira publicada no Rio para as comunidades comerciais inglesa (The Rio Herald, The Rio Pocket) e francesa (Courrier
du Brésil), e a diversificação da imprensa brasileira através do
aparecimento de jornais alternativos aos periódicos doutrinários, como o jornal
noticioso Diário do Rio de Janeiro (1821),
primeiro diário brasileiro, inovador pela publicação de anúncios e, em especial, do sucessor do Diário Mercantil (1824), o Jornal do Comércio (1827), de Pierre
Planchet, de matriz económica[2].
Não escapam a Sodré várias passagens dos
pasquins que lhe permitem reforçar as suas teses. Esses excertos de textos são
transcritos e, vários deles, são recorrentemente enquadrados no contexto da
dialéctica marxista e da luta de classes. Um exemplo pode ser dado por uma
transcrição de O Sete de Setembro, de
4 de Novembro de 1845, pasquim no qual se pode ler: “Em todos os países e em
todas as épocas, essas classes privilegiadas (...) sempre procuraram manter-se
em um poder discricionário (...) em guerra permanente com os povos por elas
deserdados e oprimidos.”
Quais as características do pasquim, segundo
Sodré (1999, p. 157)?
Eram vozes (...) bradando em
altos termos e combatendo desatinadamente pelo poder que lhes assegurasse
condições de existência compatíveis ou com a tradição ou com a necessidade. Não
encontrando a linguagem precisa (...), a norma política adequada aos seus
anseios, e a forma e organização a isso necessárias, derivavam para a vala
comum da injúria, da difamação (...). Não podiam fazer uso de outro processo
porque não o conheciam (...) num meio em que a educação (...) estava
pouquissimamente difundida (...), em que os que sabiam ler não tinham atingido
o nível necessário ao entendimento das questões públicas e em que os que haviam
frequentado escolas superiores se deliciavam em estéril formalismo (...), a
única linguagem que todos compreendiam era mesmo a da injúria.
Formalmente, os jornais panfletários, de
periodicidade incerta, tinham poucas páginas e viviam, principalmente, de
artigos. Vários deles nasceram no contexto das revoltas liberais e republicanas
que agitaram o Brasil até à estabilização da situação, já no reinado de D.
Pedro II. Cada número podia conter um único artigo, sendo que no primeiro
número era, por regra, apresentado um “programa” esclarecedor dos motivos pelos
quais um novo periódico vinha a público. Normalmente, tinham vida curta e
muitos apenas publicaram um número. Eram, com frequência, produto do trabalho
de um homem só, mas por isso também eram livres e desassombrados, sendo por
vezes necessário recorrer à força para os silenciar.
Na mesma época, começaram, também, a circular
jornais humorísticos (a caricatura fez a sua aparição no Brasil), como o Lanterna Mágica. Surgiu, ainda, a
importante Revista do Instituto
Histórico.
Quando a imprensa se industrializou e um
homem só deixou de poder publicar um jornal, o jornalismo brasileiro, na versão
de Sodré (1999, p. 180), perdeu também muito da sua democraticidade e da sua
autenticidade.
De realçar que Sodré (1999, p. 180) não
hesita em classificar a época de 1830-1850 como “o grande momento da imprensa
brasileira”, precisamente por causa da autenticidade e liberdade que reconhece
aos pasquins e pela capacidade que estes revelavam de animar o espaço público e
de manter uma estreita vinculação opinativa com a sua audiência – perdida com a
industrialização do jornalismo. E tão grande é o elogio que Sodré lhes faz que,
conforme se verá, sugere que o jornalismo mais autêntico era esse e não o
industrial e informativo, tal como os verdadeiros jornalistas eram os
redactores de pasquins, que se envolviam profunda e tempestuosamente na
discussão coisa pública, chegando, ocasionalmente, ao insulto, porque outra
linguagem não conheciam (SODRÉ, 1999, XV-XVI).
d) A imprensa do império
Segundo Sodré, esta fase da história da
imprensa, aberta pelo golpe da Maioridade, é concomitante à hegemonia dos
grandes latifundiários e da Corte. A “classe dominante” queria a imprensa “em
suas mãos” para contribuir “para a consolidação da estrutura escravista e
feudal que repousa no latifúndio” (SODRÉ, 1999, p. 182). Para alicerçar a tese,
mais uma vez Sodré recorre a documentos vários, incluindo cartas reveladoras
das posições políticas e jornalísticas dos vários actores sociais. Relembra,
nomeadamente, o nascimento de O Brasil,
dirigido por Justiniano José da Rocha, personagem que “tipifica (...) a
conjugação entre imprensa e literatura (...) que (...) vai dominar até quase o
nosso tempo” (SODRÉ, 1999, p. 183) e que caracteriza a imprensa do Romantismo,
que faz declinar a imprensa doutrinária e panfletária. Entre outros nomes,
Sodré (1999, p. 190-191) também evoca José de Alencar, nascido para o jornalismo
no Correio Mercantil, mas cujo
talento “marcante da conjugação da literatura com a imprensa”, enquanto
jornalista e folhetinista, se desenvolveu, predominantemente, no Diário do Rio de Janeiro, bem como
Machado de Assis, colaborador assíduo da imprensa, e Euclides da Cunha, o
militar-poeta-repórter que redigiu Os
Sertões após ter coberto a campanha de Canudos (já em 1896-1897) para O Estado de São Paulo. Foi essa uma
época em que “os homens de letras faziam imprensa e faziam teatro” (SODRÉ,
1999, p. 192).
É de salientar que muitos dos jornais
surgidos no reinado de D. Pedro II, embora não panfletários, eram politicamente
engajados. O Correio Paulistano, um
dos muitos periódicos referidos por Sodré, nascido durante a Conciliação, no
término desta, opta pelo campo liberal, o mesmo onde se haveria de fortalecer o
movimento republicano. Neste campo, apareceu, igualmente, em 1875, A Província de São Paulo, que, a partir
de 1890, se passaria a intitular O Estado
de São Paulo – o grande Estadão
dos dias que correm[3].
De qualquer modo, o principal referente do jornalismo brasileiro na época
continuou a ser o moderado e apartidário Jornal
do Comércio, do Rio de Janeiro, etiquetado, todavia, por Sodré (1999, p.
190), como “conservador”, dado o seu carácter institucional.
Abundantemente contextualizador, Sodré (1999,
p. 186) não deixa de recordar, neste capítulo, o ambiente político, social e
económico do Império, a fortificação da burguesia comercial e mercantil, e os
avanços tecnológicos (cabos submarinos, telégrafo...) que alavancaram a
imprensa. Aproveitando esse ambiente, o
Actualidade, de 1858, seria o
primeiro jornal a ser vendido nas ruas e não exclusivamente por assinatura. A Semana Ilustrada, de 1860, lançada por
Henrique Fleiuss, foi o primeiro periódico regular a recorrer às ilustrações
não só caricaturais no Brasil e abriu caminho a várias outras publicações, como
a Vida Fluminense, de 1868. A Gazeta de Notícias, jornal lançado, em
1874, por Ferreira de Araújo, foi o
primeiro periódico popular e barato do Brasil, exemplo seguido por um primeiro O Globo.
A partir de 1862, nota Sodré (1999, p. 195),
“começaram a repontar os primeiros sinais de agitação política, combatidos pelo
Correio da Tarde, órgão do governo, e
pel’A Cruz, jornal católico”.
Republicanismo, anti-esclavagismo, anti-clericalismo, conservadorismo,
liberalismo... de tudo um pouco surgia na paisagem da imprensa brasileira, cada
vez mais viva e actuante por todo o Brasil. Por exemplo, A República, órgão do Partido Republicano Brasileiro, aparece em 1870, a reboque da
intensificação do descontentamento trazido pela guerra do Paraguai e do
alastramento da ideologia republicana.
e) A grande imprensa
O quinto capítulo da História de Sodré é dedicado à “grande imprensa”, ou imprensa
industrial de massas, que surgiu no Brasil já no período republicano,
beneficiando da revolução tecnológica (rotativas, zincografia, telefone,
telégrafo, fotografia...), do clima económico e da ascensão da burguesia
comercial e mercantil.
A imprensa industrial brasileira foi, porém, em
vários casos, mais um produto da reconversão de jornais existentes do que de
novos projectos. Aliás, na primeira fase da República, de acordo com Sodré, não
surgiram muitos jornais novos. Só em 1891 apareceria o Jornal do Brasil, “montado como uma empresa, com estrutura sólida.
Vinha para durar.” (SODRÉ, 1999, p. 257) De dimensão standard, superior,
portanto, às dimensões usuais da restante imprensa, e com um numeroso corpo de
correspondentes, espalhados pela Europa e Estados Unidos, o JB fez escola no
Brasil. Na dobragem do século, já tirava 50 mil exemplares, tornando-se o
periódico de maior circulação na América do Sul, e conquistava os leitores mais
jovens, graças à publicação de uma história policial em quadrinhos. Mas
foi A Notícia, em 1895, o primeiro
periódico a usar o serviço telegráfico; a Gazeta
de Notícias, o primeiro a
recorrer à zincografia; e a revista O
Mercúrio, a primeira a usar a ilustração a cores (SODRÉ, 1999, p. 266-267).
Na viragem do século XIX para o XX,
consolida-se, assim, o jornal-empresa. “O jornal como empreendimento individual
(...) desaparece nas grandes cidades. Será relegado para o interior, onde
sobreviverá (...). Uma das consequências (...) desta transição é a redução no
número de periódicos. (...) É agora muito mais fácil comprar um jornal do que
fundar um jornal; e é ainda mais prático comprar a opinião do jornal do que
comprar o jornal.” (SODRÉ, 1999, p. 276)
De notar que a República não trouxe uma mais
ampla liberdade aos jornais. O jornal liberal A Tribuna, por exemplo, foi
depredado, em 1890, pelas forças republicanas, por fazer acusações insultuosas
contra o Presidente Deodoro, algo que valeu o protesto da generalidade da
imprensa, até porque causou a morte a um revisor. Casos como esse, bem como a
facilidade com que se comprava uma empresa jornalística – ou de comprar quem num
jornal fazia opinião (SODRÉ, 1999, p. 276) – levam o autor a concluir que a
imprensa brasileira tinha “um traço burguês”, sendo, no entanto, devido às
fragilidades de uma burguesia que ainda estava em ascensão, forçada “a
acomodar-se ao poder político, que não tem ainda conteúdo capitalista, pois o
Estado servia principalmente a estrutura pré-capitalista tradicional” (SODRÉ,
1999, p. 276).
Um artigo de 1889 do jornalista francês Max Leclerc,
de visita ao Brasil para reportar a implantação da República, permite a Sodré (1999,
p. 252-253) evocar a situação da imprensa brasileira nos primeiros tempos da
República: os jornais prósperos (encabeçados pelo Jornal do Comércio e pela Gazeta
de Notícias – periódico no qual colaboram os escritores portugueses Eça de
Queirós e Ramalho Ortigão) eram politicamente independentes e apartidários,
obedeciam a uma organização empresarial, tinham o lucro por objectivo,
ancoravam a sua estratégia comercial à captação de anúncios publicitários e
propunham linhas editoriais predominantemente noticiosas; a par desses,
existiam os jornais de partido, que viviam dos apoios dos mesmos, sendo lidos, predominantemente,
por aqueles que apoiavam o partido ou o líder político em causa. Sodré
inventaria com minudência uns e outros, tendo como pano de fundo a situação
política e social do Brasil e as histórias pessoais dos muitos protagonistas
que construíram a política e o jornalismo brasileiros. A agitação inicial da República,
inclusivamente, é vista por Sodré como um combate que opunha os republicanos
que queriam reformar o país aos latifundiários, para os quais o novo regime
apenas representou uma forma de, livres do Imperador, ocuparem por inteiro a
direcção do Estado. Na versão de Sodré (1999, p. 263), a República das
oligarquias venceu: “os senhores das terras continuavam a dominar o poder; o
café (...) fazia os presidentes”.
A imprensa reflectiu as tensões e o combate
político. Mas por narrar ou até ao se engajar nos combates políticos, segundo
Sodré, sofreu censura e repressão. Jornais de partido de campos opostos
engalfinharam-se no combate político. Vários foram atacados e enfrentaram
suspensões administrativas e apreensões. Mas apesar da conjuntura desfavorável,
muitos homens de letras notabilizaram-se na imprensa da altura, juntando-se, no
panteão das Letras brasileiras, a Machado de Assis ou Euclides da Cunha, destacando
Sodré nomes como o de José Veríssimo – o idealizador da Academia Brasileira de
Letras – sob cuja direcção renasceu a Revista
Brasileira, ou Lima Barreto, este
já em pleno século XX. O folhetinismo, aliás, não foi alheio à valorização dos escritores de jornal. O próprio anúncio
publicitário evoluiu e tornou-se mais literário, graças à colaboração de
escritores famosos, ou até mais persuasivo, devido ao recurso aos testemunhos
de personalidades famosas, que apregoavam as virtudes de um produto ou serviço.
As agências publicitárias fariam, aliás, na mesma época, a sua estreia no
Brasil. No entanto, a mistura entre jornalismo e literatura também teve
consequências menos agradáveis: “o noticiário era redigido de forma difícil,
empolada.” (SODRÉ, 1999, p. 283)
Como curiosidade, num tempo em que ainda não
existia editoria de esportes, todos os jornais do Rio, com excepção “do (...)
circunspecto Jornal do Comércio”
(SODRÉ, 1999, p. 272), davam destaque aos resultados e palpites para o jogo do
bicho e alguns chegavam a esperar pelos resultados para serem impressos – como
os vespertinos Cidade do Rio e A Notícia, que lutavam permanentemente
por serem os primeiros a sair em cada início de tarde.
Nos primeiros tempos do século XX, a pequena
burguesia urbana encontrou uma voz no Correio
da Manhã, um jornal politicamente engajado, mas também apartidário, que colidiu
com a placidez com que os restantes se acomodavam à situação política da jovem
República (SODRÉ, 1999, p. 287-288). Seguindo-lhe o exemplo – decalcado do que
se passava noutros países, como os Estados Unidos ou a França – o Jornal do Brasil haveria de fazer uma
campanha contra os métodos usados pela polícia (SODRÉ, 1999, p. 285), enquanto
o Correio a faria contra os processos
usados pelas autoridades para imporem um programa de vacinação obrigatória
(SODRÉ, 1999, p. 325). A grande imprensa brasileira, a partir da viragem do
século, deu aliás, crescente atenção à política, não apenas nos conteúdos mas
também na intervenção na arena pública, como se fosse a voz representativa dos
cidadãos, ou, em concreto, da pequena burguesia que a lia, ou de determinados
partidos burgueses. Mas isso provocou, não raras vezes, a cólera e os ataques,
verbais, legais e violentos, contra os jornais, até porque o próprio clima
político era turbulento, sucedendo-se as revoltas militares (SODRÉ, 1999, p.
325-355).
Gradualmente, a grande imprensa tornou-se
menos literária (SODRÉ, 1999, p. 323), até porque surgiu uma imprensa especificamente
literária, apesar dos folhetins, que eram uma mais-valia para os periódicos
generalistas, se manterem em lugar de destaque nas páginas dos grandes jornais
(SODRÉ, 288-305 et passim). Ainda
assim, conforme revela Sodré (1999, p. 341-34 et passim), jornalistas escritores como Lima Barreto ou mesmo
Monteiro Lobato (este de forma esporádica) e políticos jornalistas como Rui
Barbosa, ao mesmo tempo que faziam análises e opinavam nas páginas dos jornais,
sobre política nacional mas também sobre a situação internacional – por
exemplo, sobre a I Guerra Mundial – tinham liberdade para dotar os seus textos
de elevação estilística.
Salienta, a propósito, Nelson Sodré (1999, p.
331):
A linguagem (...) era
violentíssima. Dentro de sua orientação (...) pequeno burguesa, os jornais
refletiam a consciência dessa camada, para a qual, no fim de contas, o regime
era bom, os homens do poder é que eram maus; com outros homens, o regime
funcionaria às mil maravilhas (...). Assim, todas as questões assumiam aspectos
pessoais.
Por ocasião da viragem do século XIX para o
XX, os jornalistas brasileiros começaram a ver-se a si mesmos como uma classe
profissional autónoma que necessitava de se organizar (SODRÉ, 1999, p. 307). A
fundação da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) foi um primeiro passo.
Nessa mesma época, surge no Brasil aquela que
Sodré (1999, p. 306) denomina por imprensa proletária (também ela
pormenorizadamente inventariada), para dar voz ao crescimento do proletariado,
devido ao desenvolvimento do capitalismo e à promoção social e reconfiguração
da burguesia. O tempo era de combate político e, por vezes, físico. Penetravam
no Brasil as ideias socialistas, anarquistas e sindicalistas, as mesmas que,
aliás, tinham facultado a fundação da ABI.
De acordo com Sodré (1999, p. 355-389), na
década de vinte, o jornalismo brasileiro já era decididamente um negócio
industrial e a imprensa artesanal não era mais do que um arcaísmo. Mas isso não
evitou que, por vezes, a imprensa industrial não tivesse lançado sobre si mesma
o opróbrio de dar voz a campanhas difamatórias de determinados políticos, como
a que afectou aquele que viria ser o Presidente Artur Bernardes quando era
candidato, devido à publicação de cartas falsas por alguns jornais. Aliás,
embora industriais, vários dos grandes jornais tornaram-se vozes partidárias,
quase repetindo uma situação comum na fase da imprensa artesanal, pelo que,
devido à inconstância da turbulenta situação política, aos golpes e
contragolpes, e mesmo às revoltas militares, não raras vezes tornaram-se
vítimas de censura, de julgamentos arbitrários por abuso de liberdade de
imprensa, de proibições de circulação, de ataques às instalações e de
variadíssimos outros constrangimentos – sendo o livro de Sodré (1999) pródigo a
narrá-los.
É por essa altura – relembra Sodré (1999, p.
368 et passim) que entra em cena
outro personagem fundamental para a imprensa brasileira – Assis Chateaubriand.
Em 1924, com o controlo de O Jornal, Chateaubriand começou a
construir aquele que viria a ser o maior grupo de comunicação do Brasil – o
grupo Diários Associados, responsável, nomeadamente, pela introdução da
televisão no país. Esse grupo, conforme também é destacado por Sodré, reuniu
periódicos como o Diário de Pernambuco,
o Jornal do Comércio e o Diário da Noite. Controverso, inimigo de
personagens como Rui Barbosa, acusado de chantagear empresas para obter
publicidade para os seus jornais, Chateaubriand também manteve, segundo Sodré
(1999, p. 393), uma polémica, mas lucrativa, amizade com o Presidente Getúlio
Vargas, que transbordou, aliás, para as páginas dos seus jornais, em benefício
mútuo.
Em 1928, surgiu a revista O Cruzeiro, fundada por Carlos Malheiro
Dias. Preparado o seu lançamento com uma forte campanha publicitária, logrou
tornar-se na primeira revista brasileira ilustrada de circulação nacional e
aquela que mais importância deu ao fotojornalismo. Acabou integrada no grupo
dos Diários Associados, de Chateaubriand. Em 1954, cobrindo o suicídio do
Presidente Vargas, tirou 720 mil exemplares, marca nunca alcançada até então.
A ditadura direitista de Vargas e o Estado
Novo (1937-1945), que segundo Sodré (1999, p. 395) foram hegemonicamente
embalados pela imprensa, merecem-lhe comentários depreciativos (SODRÉ, 1999, p.
380 et passim). O autor não deixa de
recordar a censura, a repressão sobre os jornalistas e a prisão de muitos deles;
a corrupção dos restantes, com dinheiro e benesses; os jornais fechados ou
apreendidos; a intervenção no Estado de
São Paulo, que se prolongou até 1945, e que incluiu a desapropriação do
jornal; a acção do Departamento de Imprensa e Propaganda, chefiado por Lourival
Fontes, encarregado de subvencionar jornalistas e jornais fiéis ao regime, de
lançar novas publicações governistas, do exame prévio aos conteúdos dos jornais
e das rádios e da promoção do Estado Novo, etc. O que parece um pouco
contraditório é que Sodré, ao mesmo tempo, realce a oposição jornalística ao
Estado Novo e releve que este foi um “monstro que ela [imprensa] embalara”
(SODRÉ, 1999, p. 395).
Os comentários políticos depreciativos de
Sodré estendem-se, de resto, ao Governo de Eurico Gaspar Dutra, “cheio de
violências, (...) prolongamento natural da ditadura”. O autor, conforme, aliás,
faz por várias vezes ao longo do seu livro, realça mesmo questões marginais à
história da imprensa, como a forma como a Constituição de 1946 impediu a
reforma agrária, embora também restringisse a propriedade dos meios de comunicação
no Brasil a brasileiros (SODRÉ, 1999, p. 387-388 e p. 396). De qualquer modo,
Nelson Sodré relembra, sobretudo, o refrear do ritmo de criação de novos
jornais desde o Estado Novo e a intensificação dos processos de concentração da
propriedade dos meios de comunicação social:
A concentração tomaria aspectos
mais acentuados com o desenvolvimento do rádio e da televisão: a tendência às
grandes corporações, de que os Diários
Associados constituem o primeiro exemplo, agravar-se-ia com a constituição de
corporações complexas, reunindo jornais e revistas, emissoras de rádio e de
televisão. (SODRÉ, 1999, P. 388)
Um outro fenómeno emergiu à época: as
revistas de grande circulação em todo o Brasil. Nelson Werneck Sodré (1999, p.
388) evoca, a propósito, o surgimento da Manchete,
em 1953. E diz:
Se não atingiríamos ainda a
etapa do jornal nacional, já chegáramos à da revista ilustrada nacional, que
passaria a encontrar, assim, centenas de milhares de leitores. (...) Os jornais
não alcançaram essa dimensão, mas completam-se com suas estações de rádio e de
televisão, que exploram a informação instantânea e têm extraordinária força de
penetração (...), superando a barreira (...) do público analfabeto. (SODRÉ,
1999, p. 388)
A concentração, segundo Sodré (1999, p.
388-389), dá aos conglomerados mediáticos um grande poder, mal usado:
A época é das grandes
corporações que manipulam a opinião, conduzem as preferências, mobilizam os
sentimentos. Campanhas gigantescas, preparadas meticulosamente, arrasam
reputações, impõem notoriedades, derrubam governos. A concentração (...)
reduziu as possibilidades de multiplicação de jornais, como das emissoras de
rádio e de televisão (...). A empresa jornalística (...) tem já dimensões e
complexidades tais que o capital para montá-la está ao alcance de poucos. No
Brasil, (...) desapareceu a pequena imprensa. (SODRÉ, 1999, p. 389)
Fundar jornais seria, então, quase inviável.
Os grandes grupos mediáticos teriam, pelo contrário, uma estratégia de compra
de veículos já existentes. No entanto, os grandes interesse do capital nem
sequer necessitariam de chegar à compra dos jornais para veicular a opinião,
pois conseguiriam comprar os opinadores por valores muito mais razoáveis
(SODRÉ, 1999, p. 389)
Finalmente, reportando-se, de forma muito
negativa, à situação do jornalismo brasileiro dos anos sessenta, o autor sugere
que os grandes oligopólios mediáticos brasileiros seriam “gigantes com pés de
barro”, já que estariam dependentes de “duas forças não nacionais, e quase
sempre antinacionais: as agências de notícias e (...) as agências de
publicidade” (SODRÉ, 1999, p. 390) e, no caso dos jornais, do papel importado e
dos capitais estrangeiros. A dependência conduziria à crise da imprensa, tema
do capítulo com que Sodré encerra o seu livro.
f) A crise na imprensa
O último capítulo do livro de Sodré narra as
vicissitudes da imprensa brasileira na segunda metade do século XX (até aos
anos sessenta), que correspondem “ao avanço das relações capitalistas” no
Brasil e à consequente “ascensão da burguesia” (SODRÉ, 1999, p. 391). Para ele,
a crise do capitalismo, derivada da “economia predatória” internacional que
este sistema alegadamente comporta, seria responsável pela crise da imprensa
brasileira ao tempo em que ele escreveu o seu livro. Essa crise resultaria, a
seu ver, da crescente necessidade de capital que as empresas jornalísticas brasileiras
denotavam, para sustentar a importação de papel e maquinaria e para prover às
necessidades de uma força de trabalho cada vez maior e mais especializada. Por
isso, a imprensa brasileira perderia sempre quando comparada com a imprensa de
países onde o capitalismo estivesse mais desenvolvido e as disponibilidades de
capital fossem maiores. (SODRÉ, 1999, p. 392-393) O autor realça, nomeadamente,
o New York Times, que apelida de universidade impressa (SODRÉ, 1999, p.
393). Algo paradoxal é Sodré elogiar, afinal, aquele que é um genuíno produto
do sistema capitalista, que ele tanto critica, embora se perceba a sua intenção
de ancorar o desenvolvimento da imprensa em cada país às respectivas condições
materiais.
Salienta ainda Sodré (1999, p. 396-397 e
410-449) a inocuidade dos preceitos constitucionais que restringiam a
propriedade de meios de comunicação aos brasileiros, já que não só os veículos
“não poderiam sobreviver sem as substanciais contribuições proporcionadas pela
propaganda comercial fornecida pelas grandes empresas estrangeiras” como também
haveria lugar à utilização de testas-de-ferro brasileiros por parte dos grandes
grupos internacionais interessados na propriedade da mídia brasileira.
O imperialismo reflectir-se-ia, ainda,
segundo Sodré (1999, p. 396-397), na dependência que a mídia brasileira
denotaria das grandes agências noticiosas internacionais, pois essa dependência,
segundo o autor, tornaria permeável a opinião brasileira à influência
estrangeira. Para Sodré (1999, p. 400-401), um exemplo concreto dessa
permeabilidade, agudizada pela dependência que a imprensa brasileira teria do
fluxo publicitário das agências de publicidade internacionais, teria acontecido
com o petróleo. A exploração petrolífera como monopólio de estado foi, segundo
Sodré (1999, p. 401), apresentada hegemonicamente pela imprensa brasileira como
sendo uma opção de comunistas, “e sendo os comunistas bandidos depravados, não
deviam ter o direito a exteriorizar as suas opiniões”. Somente o jornal Última Hora apoiou, diz Sodré, as
intenções do Presidente da República, Getúlio Vargas, no tocante à
nacionalização da exploração do petróleo, talvez porque se tratava de um jornal
sustentado financeiramente por Vargas, então na sua segunda presidência,
através do Banco do Brasil.
A Petrobrás, criada sob o slogan “o petróleo
é nosso”, acabaria, contudo, por ver a luz do dia, em 1953. Mas Vargas não
resistiria à “desmoralização” provocada pela imprensa (Sodré, 1999, p. 401), após
a alegada tentativa de assassinato de um seu opositor político, o jornalista
Carlos Lacerda, por membros da sua guarda pessoal, e cometeria suicídio.
O relato de episódios de censura e a
resistência à censura também é repetitivo neste capítulo da obra de Sodré. Um
dos casos relatados, por exemplo, foi o da resistência da imprensa à censura
promovida pelos golpistas de Agosto de 1961, que tentavam impedir que o
vice-presidente João Goulart assumisse a Presidência da República, após a renúncia
do Presidente Jânio Quadros. Nessa altura, alguns jornais saíram com espaços em
branco, “forma de resistência e de denúncia” da censura que sobre eles imperava
(SODRÉ, 1999, p. 409).
De facto, o autor volta ciclicamente ao tema
da liberdade de imprensa, mas por vezes num tom crítico. Por exemplo,
referindo-se às campanhas pela liberdade de imprensa “que periodicamente surgem
(...) não apenas nos jornais e revistas” mas também pela voz de “numerosas
organizações e forças estranhas à imprensa”, o autor explica que o seu sentido é
“liberal”, já que, normalmente, visariam “somente a exclusão do poder
governamental, a interferência do poder público”. (SODRÉ, 1999, p. 407). Nessas
campanhas, o Estado seria apresentado como o único “obstáculo à liberdade de
imprensa (...), particularmente através da censura”, ignorando as limitações à
liberdade de imprensa que partem dos detentores do capital, que teriam tornado
o jornalismo em veículo da sua “opinião”, “em instrumento de alienação” e não
de “esclarecimento”, em parte devido às pressões que os proprietários da mídia
exerceriam sobre os jornalistas (possibilidade de demissão, política salarial,
interferências directas, etc.). (SODRÉ, 1999, p. 407-421)
Nelson Werneck Sodré (1999, p. 412 et passim) regista, igualmente, aquelas
que para ele eram (outras) formas encobertas de controlo da imprensa, como o
fim dos preços subsidiados do papel importado, que tornou a publicação de
jornais um negócio exclusivo dos maiores detentores de capital (ele nomeia
Assis Chateaubriand, Roberto Marinho, Júlio de Mesquita Filho, Paulo
Bittencourt e Nascimento Brito), e a já referida influência das agências de
publicidade, que, através da pressão financeira, controlariam os conteúdos dos
jornais, tarefa para a qual também contribuiriam as agências internacionais de
notícias, das quais os jornais brasileiros estariam dependentes.
Apesar de tudo, Sodré (1999, p. 394)
descreve, no último capítulo da sua História
da Imprensa, a universalização das técnicas de expressão jornalística, como
a técnica do lead, que a imprensa
brasileira teria importado da norte-americana, e que ele vê como um avanço.
Apesar da divisão da sua História da Imprensa no Brasil em seis
capítulos, Nelson Sodré não esboça uma verdadeira tentativa para periodizar a
história da imprensa brasileira. Dito de um modo mais preciso, Sodré (1999, p.
XIII) apenas sugere, implicitamente, a existência de dois períodos na evolução
da imprensa brasileira, sem nunca o afirmar com clareza: o período da imprensa artesanal; e o período da imprensa industrial. Diz ele:
a imprensa artesanal vivia da
opinião dos seus leitores e buscava servi-la; na imprensa industrial já isso
não acontecia, o jornal dispensa, no conjunto, a opinião dos leitores e passa a
servir aos anunciantes, predominantemente. A diferença é progressiva e existe
uma relação dialética entre a imprensa e o público. (SODRÉ, 1999, p. XIII)
No global, a imprensa artesanal
caracterizar-se-ia, explica Sodré (1999, p. XV e p.4), pela “linguagem literária”,
pelo facto de os jornalistas não apresentarem ainda “fisionomia profissional” e
por uma certa indiferenciação entre livro e jornal. A imprensa industrial, por
seu turno, ter-se-ia emancipado da linguagem literária “e firmara a diferença
entre literatura e jornalismo”, sendo que os jornalistas “já apresentavam
fisionomia profissional”. Com a industrialização do jornalismo, o jornal tornou-se
algo significativamente diferente do livro.
Já em pleno período da imprensa
industrial, teria ocorrido, segundo Sodré (1999, XV-XVI) uma desproletarização das
empresas jornalísticas, motivada pela extinção das gráficas de linotipia, onde
trabalhavam operários tipográficos:
A mudança mais importante foi
operada no nível das oficinas. (...) A oficina (...) resume-se em gigantesca
impressora (...). Ela fabrica o jornal até o empilhamento (...). Não são
operários os que a operam, são engenheiros. (...) Antes, (...) a direção era
recrutada na burguesia; a redação, na camada social média ou pequena burguesia;
e a oficina, no proletariado. Desaparecida a oficina tradicional, o
proletariado está excluído da imprensa. A redação obedece a uma hierarquia nova
(...), daqueles que ingressam na profissão através de cursos académicos (...).
A figura mítica do jornalista foi extinta (...), a atividade do jornalista está
em extinção. Ganhou
espaço a reportagem (...), e nessa área é que aparecem agora valores (...). A
imprensa de hoje (...) não é elaborada por jornalistas (...).
Neste passo da obra, desponta mais uma vez
a ideia marxista clássica, oitocentista, de divisão da sociedade entre
burguesia e proletariado, sem ser equacionada a possibilidade dessa estrutura ter
mudado entre o século XIX e a actualidade.
Pode concluir-se, em suma, que a História da Imprensa no Brasil de Sodré
é um trabalho minucioso, mas ideologicamente enquadrado por um referencial
marxista e nacionalista (anti-imperialista). A história da imprensa brasileira de
Sodré metamorfoseia-se, assim, numa história da luta de classes no Brasil e
numa história das lutas pela salvaguarda daqueles que, para Sodré, são os
interesses económicos da Nação Brasileira, contra a qual investiriam os
interesses capitalistas estrangeiros. Não obstante, conforme explica José Marques
de Melo (2007, p. 8), “o livro (...) contém o mais bem documentado inventário”
da imprensa brasileira até hoje publicado, tratando, em especial, dos diários,
tendo servido de fonte secundária aos estudos historiográficos posteriores
sobre o jornalismo no Brasil.
4. A história da imprensa portuguesa de José
Manuel Tengarrinha
O livro de José Manuel Tengarrinha (1965) História da Imprensa Periódica Portuguesa,
reeditado em 1989, é a obra de
referência de todos os que se propõem estudar o jornalismo português durante a
Monarquia. De facto, embora as últimas referências do livro se refiram à I
República e ao Estado Novo, o trabalho mais relevante do autor diz respeito ao
período monárquico. Apesar de existirem outras histórias do jornalismo
português anteriores ao livro de Tengarrinha, nenhuma atingiu o detalhe nem o
nível de interpretação e contextualização do tema evidenciados por este autor.
O livro de Tengarrinha não é um inventário
de jornais, opção que o autor recusa desde o início: “Houve especial
preocupação em não cair na enumeração excessivamente longa de periódicos (...),
que parece ser (...) característica dominante dos trabalhos até agora
efectuados” (TENGARRINHA, 1965, p. 24). Assim, o autor, embora dando sempre as
necessárias referências hemerográficas e autorais (mencionando, nomeadamente, o
nome de vários jornalistas e outros intervenientes no processo jornalístico),
tentou contextualizar a génese e desenvolvimento do jornalismo português em
função das circunstâncias históricas (culturais, económicas, tecnológicas...)
de cada época, merecendo-lhe particular atenção os mecanismos de controlo da
imprensa, nomeadamente a censura e o licenciamento, que, no seu juízo, quando
aplicados, retardaram não apenas o desenvolvimento do jornalismo nacional mas
também o do próprio país, conforme sucedeu durante o Estado Novo:
Em contraste com a relativa
facilidade com que dantes se fundava um jornal, exigem-se agora [Estado Novo]
(...) pesados investimentos de capitais, cujos interesses, depois, é necessário
defender. Esta circunstância e os obstáculos de ordem legal (...) (entre os
quais avultam a censura prévia, as dificuldades na obtenção de alvarás e o
rigor no reconhecimento da “idoneidade intelectual e moral dos responsáveis
pela publicação”) reduzem a liberdade de movimentos da nossa imprensa actual a
limites muito estreitos.
Vemos, assim, como a compressão
ou a libertação da imprensa é determinada por factores profundos, acompanhando
a compreensão ou a libertação da actividade humana nas suas diversas
manifestações. E vemos, também, como a evolução do jornalismo se enquadra num
amplo conjunto de circunstâncias que, por um lado, o determina e sobre o qual,
por outro lado, ele age. (...) A história da imprensa portuguesa não poderá ser
observada como um fenómeno isolado e sui
generis, mas como um dos aspectos (...) da história da nossa cultura.
(TENGARRINHA, 1965, p. 248)
Tengarrinha divide a história da imprensa
portuguesa em três períodos: 1) Os primórdios da imprensa periódica em Portugal
(até cerca de 1820); 2) A imprensa romântica ou de opinião (1820 em diante); 3)
A organização industrial da imprensa, marcada pela fundação do Diário de Notícias (1865; 1864, caso se
considerem os números experimentais). A sua periodização decorre, portanto, das
mudanças observadas na própria imprensa e não da evolução da organização
política do país, ao contrário do que sucede na História de Sodré.
Sobre o primeiro período, o autor relembra
que, considerando a periodicidade uma das marcas do jornalismo impresso, então
a primeira publicação jornalística portuguesa é a Gazeta “da Restauração”, que propagandeava a causa independentista
portuguesa e tinha um carácter noticioso. Diz que as técnicas jornalísticas
eram rudimentares e que os autores escreviam, frequentemente, baseados nas
crenças, rumores e boatos e não verificavam as informações. Realça que a
censura e o licenciamento constituíram travões ao desenvolvimento do jornalismo
português. No entanto, descreve a diversificação do panorama jornalístico
nacional graças ao aparecimento de publicações literárias, científicas e de
ideias, no século XVIII. Relembra, igualmente, o papel dos relatos noticiosos
ocasionais (TENGARRINHA, 1989, p. 29) e dos pasquins (TENGARRINHA, p. 74-83). Explicita,
no entanto, que antes de se estender “aos jornais de baixa qualidade e pouca
moral”, o conceito de pasquim referia-se a um “pequeno texto, com mais
frequência manuscrito, contendo acusação directa e simples, sem fundamentação.”
(TENGARRINHA, 1989, p. 75). Neste ponto, transparece da prosa de Tengarrinha
uma certa crítica ao estilo dos pasquins, pouco nítida em Sodré, que prefere
salientar os seus traços de autenticidade e o esforço que faziam para
alimentarem e liderarem livremente as correntes de opinião. Mas Sodré
concordaria, certamente, com o seguinte juízo de Tengarrinha (1989, p. 75): um
pasquim era “um barómetro muito expressivo do estado de tensão social”.
O aparecimento dos primeiros diários
portugueses, no início de Oitocentos; a imprensa da primeira emigração,
impressa no estrangeiro mas que circulava clandestinamente no país e colónias,
incluindo no Brasil; e a imprensa clandestina autóctone, quer durante as
invasões francesas, quer durante o período anterior à Revolução Liberal de
1820, são também recordadas por Tengarrinha. Interessante é o juízo que este
faz sobre o papel de Hipólito José da Costa no jornalismo da primeira emigração,
diferente da apreciação de Sodré:
O primeiro,
e sem dúvida o mais importante, foi o Correio
Brasiliense, redigido pelo grande jornalista Hipólito José da Costa, que se
distinguiu pela sua combatividade e larga visão política. (...) Ao longo dos
175 números, defendeu a Monarquia Constitucional e a liberdade contra as
instituições anacrónicas, o despotismo dos governantes e a censura, contra a
opressão, a corrupção e o servilismo (...), batendo-se por que o comércio e o
crédito fossem disciplinados, incrementada a navegação, abolidos os monopólios
e moralizadas as finanças públicas; afirmando que as revoluções devem caber aos
governos, reprova a rebelião republicana em Pernambuco, embora aprove depois a
Revolução Liberal de 1820; era a princípio partidário da unidade da pátria
portuguesa, opondo-se obstinadamente à separação do Brasil, mas em Julho de
1822 adere ao movimento independentista. (TENGARRINHA, 1989, p. 86)
Interessantes são também os cálculos
financeiros que José Manuel Tengarrinha faz para chegar à conclusão de que o
empreendimento de Hipólito José da Costa teria sido financiado por alguém,
conjecturando que, podendo ter resultado em fiasco as tentativas de compra da
opinião de Hipólito pelo Governo de Portugal e do Brasil, esse alguém poderia
ter sido o Governo britânico, “interessado no desenvolvimento das
potencialidades que se lhe abriam com o contestado tratado de comércio firmado
em 1810 com Portugal.” (TENGARRINHA, 1989, p. 91) Portanto, a hipótese de
Tengarrinha é diferente da suposição de Sodré (1999, p. 27) de que teria havido
entendimentos entre D. João VI e Hipólito José da Costa.
O segundo período identificado por
Tengarrinha na história da imprensa periódica portuguesa é a do aparecimento e
crescimento da imprensa política, permitido pela Revolução Liberal de 1820,
acontecimento que fez disparar o ritmo da publicação de periódicos em Portugal
e que permitiu a circulação legal daqueles que eram publicados no estrangeiro
pelos primeiros emigrados, como o Correio
Brasiliense de Hipólito José da Costa.
Classicamente, o autor relembra, seguidamente,
os constrangimentos à imprensa durante o período miguelista e a segunda emigração
liberal, que induziu uma nova vaga de publicação de jornais portugueses no
estrangeiro que entravam e circulavam clandestinamente em Portugal. Findo o
Miguelismo e triunfando os liberais na guerra civil, apesar das convulsões que
o país sofreu até à Regeneração, a imprensa pôde desenvolver-se.
A organização do jornal e a situação do
jornalista no jornalismo da segunda metade de Oitocentos também não passam
despercebidas a Tengarrinha, que as descreve assim:
um jornal de certa importância
era, em geral, constituído por um editor (responsável perante as autoridades),
por um redactor-responsável (ou chefe da redacção), por um ou dois
noticiaristas encarregados da tradução das folhas estrangeiras e da informação
nacional (...) e um folhetinista (...). Uma secção que toma então grande
desenvolvimento é a de «cartas ao redactor», através da qual se estabelece uma
comunicação íntima e constante entre o jornal e o leitor. (...) O chefe da
redacção era o verdadeiro espírito e a alma da publicação. O jornal,
geralmente, era um homem, mais até do
que um partido. (...) Sendo o jornal todo, nele se concentravam não apenas as
funções de redacção, mas também (...) as de direcção e administração. (...)
Além dos elementos da redacção, o jornal contava com colaboradores eventuais,
mais ou menos identificados com a linha política do jornal. (TENGARRINHA, 1965,
p. 153-154)
Ortodoxamente, Tengarrinha refere, ainda,
as restrições à liberdade de imprensa do final da Monarquia, sem se esquecer de
abordar o aparecimento da imprensa ilustrada, o surgimento da imprensa operária
e revolucionária, a evolução da tipografia e a introdução das rotativas, os
movimentos reivindicativos dos tipógrafos, as formas de distribuição dos
jornais nessa altura (por correio, por caminho-de-ferro, por assinaturas e
através dos ardinas[4])
e a sua influência na opinião pública. Sobre esta última temática, escreve
Tengarrinha (1965, p. 174-177), realçando a ideia de agendamento que já vinha de autores como Gabriel Tarde:
Qual seria, efectivamente, o
grau de influência dos jornais na opinião pública? (...) É claro que (...) esse
grau de influência varia (...) de época para época, de acordo com as suas
condições específicas (...). Do que não resta dúvida (...) é que foi nesta 2ª
época [final da Monarquia] que o jornalismo exerceu mais vincada influência na
opinião pública. O âmbito dos leitores alargou-se (...) até à pequena
burguesia. (...) Os jornais (...) eram (...) o centro da vida política e
social. Por eles se liam os debates nas câmaras, se conheciam as disposições
oficiais, se discutiam as directrizes do partido ou da facção expressas nos
artigos de fundo, se sabiam os principais acontecimentos (...), se adquiriam
conhecimentos (...), se dispunha de um meio de distracção e divertimento. Essa
influência é tanto mais evidente quanto é certo que os leitores se agrupavam em
torno dos jornais com que se identificavam (...), sendo de admitir (...) que as
opiniões expostas (...) fossem reforçar ou corrigir as suas ideias. (...) Mas
neste ponto da questão não podemos esquecer a esclarecida afirmação de R.
Manevy: “A imprensa faz a opinião
(...) na medida em que esta se quer deixar fazer”.
O autor evoca, igualmente, ao longo das
páginas dedicadas ao segundo período do jornalismo português, os grandes nomes
de políticos e escritores que se viam a si mesmos como jornalistas e que
colaboraram, como folhetinistas e redactores (articulistas), nessa que
Tengarrinha denomina de “imprensa romântica”.
O terceiro período, de industrialização da
imprensa, de acordo com Tengarrinha, fez esmorecer a imprensa opinativa e
promove a imprensa informativa, o noticiário,
a reportagem e, consequentemente, a
figura do repórter.
Esta preferência que o público
mais largo manifesta pela informação
objectiva (e não pela opinião), e
até pelo pendor sensacionalista que a
informação começa a tomar, só pode compreender-se por uma nova atitude mental da pequena e média
burguesia (...) especialmente permeável aos relatos de aventuras ou de
histórias de amor, como que buscando uma fuga emocional à estreita rotina do
dia a dia. (...) Na necessidade de encontrar um público mais largo, o jornal
procura manter uma atitude imparcialmente objectiva, dirigindo-se assim a todos (...) os que sabem ler, cujo
número vai crescendo gradualmente. Embora sem esquecer a camada mais instruída,
que forma (...) o grosso dos assinantes, dirige-se assim ao novo público, menos
abastado e instruído, com gostos menos exigentes e requintados. (TENGARRINHA,
1965, p. 194)
Que influência passa, então, o jornal
informativo a exercer sobre o público neste terceiro período da imprensa
periódica portuguesa? José Manuel Tengarrinha (1965, p. 194-196) tenta
responder à questão, embora numa perspectiva extremamente negativa:
não distribuindo senão uma
informação fragmentária, superficial e sem continuidade, a imprensa (...)
noticiosa, se é certo que pode esclarecer o leitor acerca de determinado
acontecimento, não o ajuda a formar uma posição crítica em face dele. Atendo-se
a dados meramente objectivos, não se
identifica com o pensamento do leitor nem pretende, pelo menos aparentemente,
exercer qualquer influência sobre ele. (...) O jornal agora (...) tem de
procurar o público, descer ao seu nível, adivinhar-lhe os gostos e apetites
(...), ir ao encontro da sua mentalidade. Perde assim completamente o seu valor
formativo. Com efeito, na medida em que os jornais deixavam de apoiar-se em
facções políticas para serem mantidos por grupos financeiros, a imprensa
transformou-se numa indústria (...). O jornal passa a ser (...) uma mercadoria (...), apenas com valor
durante algumas horas.
A transformação industrial da imprensa,
recorda Tengarrinha, trouxe modificações nas redacções. Por um lado, a chefia
de redacção passa a ter mais funções de coordenação e supervisão do que de
redacção. O secretário de redacção torna-se fulcral para a organização diária
do trabalho, numa redacção que comporta dezenas de jornalistas. O novo
jornalista assalariado da imprensa industrial pode até não se identificar com o
que escreve, mas, segundo Tengarrinha (1965, p. 208), tem de o escrever, pois:
é apenas o operário
de uma mercadoria que é necessário vender o mais possível e com a qual não
está ligado nem pelas ideias nem pelos interesses, pois não participa nos
lucros e recebe um salário fixo que lhe permite viver exclusivamente dessa
actividade.
Apesar de tudo, e tal e qual como surgiram
jornais noticiosos em plena época de domínio da imprensa partidária, no final
da Monarquia, num período de crescente domínio da imprensa informativa,
apareceu, diz Tengarrinha (1965, p. 211), uma imprensa combativa revolucionária,
de cariz republicano, por um lado, ou de cariz anarquista ou socialista, por
outro. Por isso, multiplicaram-se as tentativas de controlo da imprensa durante
este terceiro período da história do jornalismo em Portugal.
Conclusões
Os dados apresentados permitem concluir o
seguinte:
1.
A obra de Nelson Werneck Sodré historiografa um
intervalo de tempo mais amplo, estendendo-se até 1966, enquanto a obra de
Tengarrinha enfatiza o período monárquico e queda-se pela I República, que
começa em 1910 e se prolonga até 1926. De qualquer modo, pode dizer-se,
apreciando o trabalho de ambos os historiadores, que após 1820, e pelo menos até
cerca de 1930, o jornalismo português e o brasileiro evoluíram mais ou menos a
par, sendo profundas as suas intercepções entre 1808 e 1822 ou mesmo mais além
(Hipólito da Costa, por exemplo, é importante como “jornalista” português e
brasileiro). De facto, a leitura das histórias da imprensa de Tengarrinha e de
Sodré permite verificar que, quer em Portugal, quer no Brasil, até meados do
século XIX surgiram periódicos doutrinários, artesanais, produto de um homem
só, exacerbados na sua linguagem, mas significativamente livres, muitas vezes
silenciados através do recurso à violência e a leis constrangedoras da
liberdade de imprensa. Esses periódicos superaram, em número e em leitores, os
jornais noticiosos, que também existiam. Mas quer em Portugal, quer no Brasil,
a imprensa industrial do final do século XIX liquidou esses pasquins, que
entretanto também tinham evoluído para jornais de grupo ou de partido, o que já
lhes exigia uma infra-estrutura condigna. Interessantemente, um dos pontos de
confluência entre Sodré e Tengarrinha é o elogio que fazem a esses jornais que
animavam o espaço público e que mantinham estreita vinculação opinativa com a
sua audiência, significativamente segmentada – ao contrário do que, segundo os
autores, sucederia com a imprensa industrial, que por se dirigir a públicos
mais vastos, não ofereceria esse vínculo entre a opinião emitida no veículo e a
opinião de todo o respectivo público, até porque o jornalista, de certa forma,
teria a sua opinião, ou a sua neutralidade opinativa, comprada por quem lhe
paga o salário. No entanto, Tengarrinha é crítico da linguagem rasteira e da
baixa moral dos mesmos, aspectos quase irrelevantes para Sodré.
2. Tengarrinha e Sodré podem considerar-se
ideologicamente próximos, devido à sua militância esquerdista e trajectória de
vida, que, inclusivamente, os levou à prisão, embora José Manuel Tengarrinha
nunca tenha militado no Partido Comunista Português. As suas histórias de vida
terão tido, certamente, repercussão na forma como pensaram a historiografia. No
entanto, apesar da proximidade ideológica, há algumas diferenças de perspectiva
entre as obras emblemáticas sobre a história da imprensa em Portugal e no
Brasil que eles produziram. Da obra de Tengarrinha, redigida num tom sociológico,
desponta a concepção da imprensa como instituição
social, que evolui em estreita correlação com o desenvolvimento económico,
político-legal, técnico e cultural da sociedade e com as mudanças nas ideias e
mentalidades. Mesmo os “jornais artesanais de um homem só” são apresentados por
Tengarrinha mais como o resultado das circunstâncias históricas de cada momento
do que como o resultado de acções individuais, embora se observe que ele admite
que estas também tenham o seu peso na história. Já da obra de Nelson Werneck
Sodré assoma uma história da imprensa ancorada à sua versão da história
material do desenvolvimento do capitalismo no Brasil e aos conflitos políticos
e militares que se estendiam à imprensa, permanentemente dividida, e que
constituem, com as evocações literárias e outras, o pano de fundo de toda a
narrativa werneckiana. Mas, curiosamente, tal como acontece, de forma pontual, na
obra de Tengarrinha, emerge da História
de Sodré uma narrativa em que as acções dos indivíduos fazem a história do jornalismo, embora quase sempre desde a
perspectiva da dialéctica da luta de classes ou da oposição entre campos
políticos. Isto é, na História da Imprensa
de Sodré, os indivíduos agem, essencialmente, como membros de classes
sociais e de facções políticas, sendo condicionados nas suas acções individuais,
constantemente relevadas na obra, pelos interesses, valores e ideologia da sua
classe ou facção. De qualquer modo, a obra de Sodré é, talvez, menos
materialista e mais idealista do que se poderia pensar, tendo em conta a
assumida filiação ideológica do autor, sem ser por inteiro uma coisa nem outra,
pois se bem que nela seja evidenciada a maneira como, de acordo com a visão do
autor, as circunstâncias materiais moldaram a história do jornalismo
brasileiro, também nela são salientadas as formas como vários agentes
individuais da história do Brasil moldaram o jornalismo do país em função das
suas ideias próprias e pessoais e da sua iniciativa.
3. Tengarrinha tenta fazer sínteses
generalistas sobre as características da imprensa em cada período que
identifica, sobre o aparecimento e organização das empresas jornalísticas e
sobre as transformações que o conceito de “jornalista” enfrentou em cada momento
histórico. O seu objectivo historiográfico principal é o de periodizar a
história da imprensa portuguesa, sem fazer da mesma um inventário de jornais. Pelo
contrário, a periodização da história da imprensa brasileira não é um grande
objectivo de Nelson Werneck Sodré. A sua obra é marcada, ao invés, por uma
narrativa em que se cruzam as histórias pessoais e a inventariação minuciosa
dos jornais que surgem e desaparecem, tendo como pano de fundo a apresentação,
pormenorizada, das posições político-ideológicas e até literárias em confronto
em cada momento e as tentativas dialécticas de controlo da imprensa (poder vs. opositores), para o que o autor
recorre a abundantes excertos de textos de jornais e documentos.
Diga-se que, ainda que embora a periodização
não seja um objectivo explícito de Sodré, implicitamente, o autor admite,
essencialmente, dois grandes períodos na história do jornalismo impresso
brasileiro, à semelhança da proposta de Tengarrinha para a história da imprensa
periódica portuguesa: o período da imprensa
artesanal; e o período da imprensa
industrial.
4. Ambos os autores reflectem sobre o impacto
que a imprensa tem, ou teve, sobre a formação de correntes de opinião pública
em cada momento. No entanto, Tengarrinha, mais sociológico, não admite uma
subordinação directa das correntes de opinião aos interesses de classe dos
proprietários dos meios de comunicação. Inclusivamente, ele releva, conforme se
referiu, que a opinião só se faz na medida em que se deixa fazer, ou seja, para
ele a adesão de um cidadão a opiniões veiculadas na comunicação social depende,
em certa medida, da predisposição desse cidadão. Já Sodré, tal como se verifica
pela perspectiva extremamente negativa com que encara os fenómenos de
concentração mediática, vê no controlo da propriedade dos veículos uma forma de
controlo da opinião por eles veiculada, que seria “transmitida” à sociedade.
Ele procura mesmo explicitar os mecanismos de dominação ideológica da sociedade,
frequentemente desde uma perspectiva dialéctica. No entanto, a luta ideológica
apresentada por Sodré é, muitas vezes, personalizada, ao contrário do que seria
de supor num comunista crente no papel do colectivo. Contudo, as acções dos
indivíduos no jornalismo e através do jornalismo são vistas por
Nelson Sodré sobretudo como produto do ambiente político e da luta ideológica e
como produtoras dos mesmos, simultaneamente. As condicionantes legais e
económicas ao desenvolvimento do jornalismo, também destacadas por Sodré, são,
assim, perspectivadas como imposições da classe dominante, mais até do que como
uma faceta do ambiente político, minuciosamente caracterizado, em que o
jornalismo se move e sobre o qual influi.
Em consequência de tudo isso, a história do
jornalismo brasileiro, tal como é observada por Sodré, é menos uma história de
períodos do que uma história de continuidades, unidas simbolicamente, na sua
obra, por uma narrativa contínua. A narrativa de Sodré, ao contrário da de
Tengarrinha, é, na realidade, mais uma narrativa de evolução, em que a história
flui como num romance, do que um diagnóstico de fracturas temporais que
determinem períodos históricos.
5. Apesar das diferenças entre elas, notam-se
em ambas as obras as influências da concepção marxista da história e da maneira
de a fazer e interpretar, principalmente no que se refere à inscrição dos
factos históricos no âmbito de um sistema configurado pelas relações de
produção, entendidas num sentido amplo, em que a infra-estrutura material surge
quase sempre como condicionante da super-estrutura, apesar de, ocasionalmente, nas
duas Histórias, ser também sugerido o
contrário, isto é, que por vezes as ideias e os indivíduos também mudam a
infra-estrutura.
6. Também é perceptível, em ambas as obras, uma
certa concepção positivista da história, em que os factos valem por si, tendo
valor de prova mais do que valor de possibilidades ou de hipóteses. Dito de
outra forma, embora emirja das obras uma concepção complexa da história da
imprensa, vista como o resultado do cruzamento de variáveis pessoais, económicas,
políticas, sociais, culturais e das ideias e mentalidades, não é menos verdade
que os autores convocam factos históricos, que não discutem, para fazerem prova
dos seus argumentos e interpretações para o que ocorreu.
7. É mitificador considerarem-se ambas as
obras como tendo crescido em terreno virgem, por muito que ambos os autores –
Sodré até fala em 30 anos – se tenham embrenhado nos arquivos. Pelo contrário,
quer a História de Tengarrinha, quer
a História de Sodré, beneficiaram de
relevantes pesquisas anteriores no campo da historiografia da imprensa, que
lhes terão servido de fontes secundárias. No caso brasileiro, essa tese é,
aliás, mais perceptível, dada a abundante produção historiográfica já existente
na altura em que foi lançada a primeira edição da História da Imprensa no Brasil.
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[1] Merece
consideração a dúvida: será que Sodré consultou as colecções da Gazeta e de outros jornais antes de lhes
tecer críticas tão cáusticas?
[2] Entre
1890 e 1915, sob a direcção de José Carlos Rodrigues, e com a colaboração de
personalidades como Rui Barbosa e do barão do Rio Branco, o jornal
converter-se-ia num dos mais importantes do país.
[3] O Província de São Paulo (depois
transformado no Estado de São Paulo) deveu parte do seu sucesso ao facto de
ser vendido nas ruas e não exclusivamente por assinatura, algo que,
inclusivamente, foi ridicularizado pelos seus competidores, Correio Paulistano, O Ipiranga e Diário de São
Paulo. Para vender A Província...,
o imigrante francês Bernard Gregoire percorria São Paulo a cavalo e tocando uma
corneta. O símbolo do Estado de São Paulo
evoca, precisamente, essa táctica de vendas.
[4]
Termo usado em Portugal para referir os vendedores ambulantes de jornais.